quinta-feira, 26 de setembro de 2019

O vampiro dos Campos Elíseos


Há um vampiro pelas ruas 
Porque hoje é sábado. 
O dia da criação – Vinícius de Moraes



Engana-se quem pensa que Drácula é personagem de ficção gótica, criado pelo escritor irlandês Bram Stoker. Não, não... Deve estar em seu castelo, no alto das montanhas dos Cárpatos, nos limites entre a Transilvânia, Bucovina e Moldávia, no centro oeste do que é hoje a Romênia.

Drácula, na verdade Vlad Dracul, foi príncipe da antiga Valáquia, província histórica da Romênia, ao norte do Danúbio, onde ficou conhecido como Vlad Empalador pela prática de empalar seus inimigos. Liderou lutas de resistência contra tentativas de invasão pelos turcos, otomanos, em meados de 1400, na qualidade de membro da Ordem do Dragão, Dracul, a serviço do cristianismo representado pela Igreja Católica Ortodoxa.

Em dado momento, entretanto, os turcos espalharam falsa notícia sobre a sua morte em combate. O boato chegou aos ouvidos de sua amada Elisabeta que, em desespero, saltou para a morte do alto da torre do castelo. Vlad ficou inconsolável quando soube do ocorrido  revoltou-se contra a Igreja e mesmo contra deus ao ser informado de que religiosos ortodoxos negaram à sua mulher um funeral digno, pelo fato de ela haver atentado contra a
Elisabeta
Ilustração de Maristela Bleggi Tomasini
própria vida.

Pelas blasfêmias por ele proferidas na forma de desabafo por sentir-se injustiçado depois de tantas lutas contra os otomanos em defesa do cristianismo, Drácula foi excomungado pela Igreja e condenado por deus à eternidade, mas longe da luz do Sol, de onde ser conhecido como Príncipe das Trevas. Não sendo senão um simulacro da vida dos mortais, mas lembrando de que sangue é vida, Drácula passou a se nutrir do sangue dos vivos, transformando em súditos de seu reinado, seletivamente, e a seu critério, os inoculados por suas presas. Reinado do terror, um império maligno no dizer dos moralistas que gravitam em torno do maniqueísmo.

Sua alteza acompanha a história dos homens por aproximados seiscentos anos. É testemunha dessa trajetória, e não mero papagaio que desconhece a própria origem, e que apenas repete os que antes dele contaram ou escreveram como se tivessem alguma vizinhança com o que imaginam compreender e mesmo julgar. Sua alteza viu as guerras, conspirações, governos, movimentos significativos do pensamento e das artes, das ciências e das tecnologias, ainda que com o distanciamento complacente de quem se sabe eterno. Não tem emoções, exceto as que envolvem lembranças de Elisabeta, sua amada e para sempre companheira do que lhe restou de humanidade. São aproximadamente seiscentos anos de tédio na vida modorrenta e entregue ao vagar solitário pelos corredores e aposentos das inexpugnáveis muralhas de pedra de seu castelo sombrio. Raras as pessoas que desafortunadamente entraram no covil do vampiro. A maioria de lá não saiu com vida, e os poucos que escaparam a esse destino se tornaram mortos vivos, na condição de servos dos interesses e caprichos do príncipe empalador. Nunca, porém, alguém ali entrou que não fosse a convite e consentimento do Senhor das Trevas. Nunca!

- Bobagens. Crendices – disse-me um amigo que se considera um modelo de racionalidade, mas incapaz de ao menos desconfiar de que também ela é crendice, valor, e de que dela é literalmente um escravo. 

Mera presunção egocêntrica, mera arrogância, pois universaliza a racionalidade a partir do que lhe parece como tal. Nem mesmo suspeita de que é vampirizado por essa crença, por essa ilusão. Ele é incapaz de compreender o simbolismo de seja lá do que for. Nessa medida, não entende que vampiro é o que lhe consome energia, vida, e que suas limitações interiores são seu mais poderoso vampiro. É sugado por seus medos e pela rigidez de valores e costumes que impõe a si próprio. Gente que incapaz de prazer se devota de corpo e alma ao dever.

O Príncipe da Escuridão tem plena consciência de si, de suas necessidades fundamentais, dos próprios desejos, e dos elementos que ameaçam a sua eternidade. Precisa de sangue humano, mas obtido em meio a requintes de beleza, elegância, refinamento e, ao mesmo tempo, de volúpia. Não se interessa por qualquer pescoço, tampouco por sangue obtido de qualquer jeito. Assim fosse, e se contentaria com assalto a um banco de sangue. Conde Drácula é nobre, aristocrata, dotado de hábitos sofisticados e de sensualidade refinada. Sempre que possível sacia-se em mulheres jovens, belas, saudáveis, colo alvo e pele lisa, de cujo decote as jugulares se oferecem à saciação dos desejos. Não é um gesto meramente nutricional comum a qualquer morcego. É exercício de prazer. É exercício sexual, ainda que não genital. Drácula não invade os pescoços pela força, mas pelo magnetismo da sedução, o que lhe é facilitado pela altura acima da média, uma magreza elegante, esbelteza e palidez bem cuidadas, que lhe servem de moldura ao conjunto imponente em meio a gestos delicados, embora enérgicos. Literalmente um cavalheiro vestido de roupas escuras, discretas e muito bem talhadas. Uma presença que jamais passaria despercebida por uma mulher minimamente dotada de alguma sensualidade de alma.

Tem perfeita consciência do que pode lhe representar risco de extinção ou sofrimento. Sabe que se desintegra, caso exposto à luz do sol e também às águas límpidas e correntes de um riacho. Não sobreviverá a ferimentos mortais sofridos por balas, flechas, lanças, punhais, espadas ou por qualquer outro objeto contundente feito de prata. Sucumbirá diante de uma estaca de madeira cravada em seu coração, ou pela separação da cabeça do restante do corpo pela ação de uma lâmina. Sofrerá queimaduras com qualquer objeto de prata ou alho em contado com a pele. O mesmo ocorre se em contato direto com símbolos religiosos, e sente imenso desconforto e fraqueza quando exposto a eles.

Sua imagem não se reflete em espelhos e tampouco se faz registrar em fotografias. Sua presença se faz sentir por animais de todas as espécies e lhes causa medo, exceto cães de linhagem próxima à dos lobos, que uivam quando de sua proximidade.  “Crianças da noite”, diz Drácula referindo-se aos lobos que em matilhas ocupam as florestas dos Cárpatos. As plantas se ressentem quando em presença de sua alteza.

Ele sabe o que lhe produz prazer, desprazer e perigos, e não se ocupa de devaneios sobre suas razões, tão necessários para alimentar as crenças dos autoproclamados racionais, mas que desconhecem a si, pois iludidos pelo poder prestidigitador das palavras. Sua alteza pouco fala, embora dotado de imensa sabedoria. É absolutamente sensitivo e intuitivo. Extremamente expressivo pelo conjunto de modos, hábitos e gestos que lhe estampam a autenticidade da fidalguia. Nada lhe sabe a plebeu ou a pequeno burguês. Nada nele tem tamanho, cor ou cheiro de vulgaridade.

Apesar de viver à margem das mudanças incessantes da história, algumas vezes é por elas afetado, como com o rareamento das jovens montanhesas outrora abundantes nas proximidades de seu castelo. Migraram para os empregos urbanos e com isso a região, sempre inóspita, tornara-se agora desabitada. Essa condição alterou hábitos centenários de sua alteza, que passou a viajar com maior frequência a países próximos, com preferência aos do leste europeu. De qualquer modo sempre foi necessário contornar problemas de ordem logística: a restrição imposta pela luz do sol e a necessidade, quando fora de seu castelo, de repousar dentro de um esquife contendo no interior uma pequena camada de chão de sua terra natal. Diante disso resolveu comprar algumas propriedades urbanas na Romênia e em países próximos, desde que com traços arquitetônicos e culturais que denunciassem tradição. Nada que fosse moderno. Nada que não tivesse um pé na aristocracia. Dos novos ricos lhe interessava o sangue, e mesmo assim, seletivamente. Como esses imóveis são facilmente encontrados na maioria dos países europeus, resolveu-se satisfatoriamente o problema da escassez de jugulares.

Sua alteza, entretanto, sempre nutriu curiosidade sobre o viver nos trópicos, no Novo Mundo, e isso desde as grandes navegações. Afinal, leu livros de viajantes já à época do descobrimento das Américas, mas nunca teve simpatia pelos Estados Unidos e seu povo. Quanto mais leu ao longo dos séculos, mais lhe pareceu se tratar de terra e de gente grosseira, tosca, vulgar. Gostava da história dos países da América Central e do Sul pelo contraste da realeza dos conquistadores com a vida simplória dos silvícolas conquistados, e, com o advento da aviação comercial e respectivo encurtamento das distâncias, passou a ponderar sobre a possibilidade de conhecer alguns países do continente americano. Imaginou também que do caldeamento das raças pudesse resultar um sangue mais rico em nutrientes, o que poderia ser saudável para seu estado geral. 

Foi assim que o Brasil entrou em seu foco de interesse e, no Brasil, em São Paulo, pois cosmopolita. Afinal, em nada lhe interessava praia, areia, selva e muito menos sol. Era curioso quanto às diversidades existentes na capital dos paulistas, de brancos a negros, de miseráveis a milionários, de eruditos a analfabetos, mas em meio à intensa vida cultural, às vezes de muita sofisticação, residindo ao lado da pobreza estética da maioria da população. Gostava da ideia da cidade que nunca dorme. E foi com esse pensamento que pôs seus procuradores para localizar e adquirir um imóvel em São Paulo, desde que estivesse dentro de suas preferências estéticas e existenciais. Foi quase impossível fazer os corretores paulistas entenderem o desejo do Conde, pois incomum à compreensão de todos eles.

Comprou um belíssimo casarão assobradado, em razoável estado de conservação, no
Ilistração de Maristela Bleggi Tomasini
bairro Campos Elíseos – em alusão aos Champs-Élysées dos parisienses - e que pertenceu, no passado, a um cafeicultor e aristocrata. Um palacete, na verdade. O bairro entrou em decadência na década de 30 quando da falência dos negócios do café, estava deteriorado quanto da compra e frequentado por usuários de crack, mas perfeito para as necessidades do conde: imóvel grande, sem vizinhos de paredes, dotado de história, com origem aristocrática e idealizado por arquitetos de renome que lhe deram estilo e assinatura com nome e sobrenome, como bem merecido pela condição de arte. O que mais poderia desejar sua alteza em terra nova? Foi mobiliado com objetos antigos que vieram da Europa e parte adquirida junto a antiquários paulistas. Dentre as obras de arte, tapetes persas e dois grandes quadros a óleo, retratando antepassados do príncipe, e que ficaram expostos no hall de entrada do casarão. A partir de croquis, o próprio Drácula, da Transilvânia, determinou onde desejava cada objeto. 


Dotou o palacete de nobreza. O sótão, tornado dormitório, foi protegido internamente contra a entrada da luz do sol, nele instalado um esquife com pouco de terra trazida do castelo de Drácula, na Transilvânia, e as demais janelas cobertas por cortinas escuras de veludos pesados. Procuraram e removeram eventuais símbolos religiosos, espelhos, frestas por onde pudessem passar raios de luz, todos os objetos de prata, reduziram drasticamente número e intensidade das lâmpadas e eliminaram todas as externas. Além de apresentar fotofobia diante de luz artificial intensa, o Senhor das Trevas não precisa de luz para guiar-se na escuridão, pois é funcionalmente aparentado aos morcegos. Morcegos, aliás, em quantidade ocuparam o forro e o porão do palacete tão logo foi habitado por sua alteza. Nos poucos reparos autorizados pelo Príncipe, nada de plástico, aço, alumínio e porcelanato.

Se chegaram os morcegos, foram-se os pássaros, bem como os gatos. Com a ida dos gatos vieram os ratos. A nova morada não deixava muito a desejar às demais do leste europeu. Desse modo, e graças aos esforços da logística, Conde Drácula chegou ao Brasil e se instalou nos Campos Elíseos dos paulistas. Embora fosse verão e o palacete estivesse todo fechado, a temperatura caiu significativamente no seu interior e nos arredores do palácio paulista do Príncipe das Trevas.  

E foi em uma noite de sábado, com óculos escuros para suportar a intensidade das luzes artificiais de alguns edifícios, que sua alteza se aventurou em passeio pelos arredores do palacete. Caminhou pelo bairro da Luz, notou o jardim embora fechado em virtude do horário, a imponente estação ferroviária, seus frequentadores humildes, as velhas prostitutas e os pequenos e deprimentes comércios populares.

- Gente feia e vulgar, ponderou sua alteza, já pouco animada com a ideia de que, do caldeamento, pudesse resultar algo de belo e saudável. 

Não tardou a entender que estava na área degradada da região central. Caminhou entre os noias, os papeleiros, os pedintes, os travestis e demais classes de pessoas que frequentam aquela região. Ocorreu-lhe que deveria trazer Igor para cuidar, no palacete, de pequenos afazeres de que cuidava no castelo. Igor é um servo de Drácula, tornado vampiro de segunda classe há dois séculos. Afinal, a sociedade de vampiros é composta de poucos nobres, como o Conde, e muitos miseráveis, como Igor, e que reproduzem como os ratos de cujo sangue se alimentam. Aquela gente da Luz seria para Igor uma excelente pastagem, pensou sua alteza. Para Drácula interessava outro tipo de pessoas. Ainda assim, notou a existência da Pinacoteca, Museu da Língua Portuguesa e Museu da Arte Sacra. Começava a explorar e descobrir a cidade. Com o avançar da madrugada retornou ao palacete para repouso em seu esquife instalado no sótão.

No início da noite de domingo, entretanto, aconteceu algo inimaginável. O Conde ouve baterem na porta do palacete que dá acesso ao amplo hall de entrada e, sem Igor ou outro servo para atender, resolve ele mesmo se prestar a essa atividade vassala. Mal abriu completamente a porta e uma mulher sem se anunciar entra às pressas e se posta no meio do hall, olhando tudo em sua volta com muita curiosidade. Drácula, que nunca tinha visto isso em toda a sua vida, ficou parado, paralisado, segurando a maçaneta da porta ainda semiaberta. Uma invasão? Fosse o que fosse certamente uma indignidade.

- Como é grande e alta esta sala, disse a mulher que continuava curiosa com os olhos e com as mãos que corriam em tudo, e sem ao menos se virar para sua alteza. Comportava-se como ele não existisse ou fosse apenas o porteiro.

O primeiro impulso do Príncipe das Trevas foi o de tomar a intrusa pelo pescoço e repelir a invasão. De empalar aquela figura abjeta, como fizera com turcos e demais inimigos no passado guerreiro. Lhe ocorreu de imediato, porém, que talvez fosse conveniente, antes, saber de quem se tratava.

- A senhora não se importa de apresentar-se, perguntou o Conde com delicadeza na voz e nas atitudes.

- Nossa! Que grosseria a minha. O que o senhor vai pensar de mim? Sou a Tetê. Vizinha de algumas casas na rua ao lado.

- E a que devo a honra de sua presença, senhora Tetê?

- Curiosidade. Sempre tive curiosidade de saber como é esse casarão por dentro. A maioria dos vizinhos têm a mesma curiosidade. Fala-se muito sobre ele. Até que é moradia de fantasmas e de vampiros. Ignorância dessa gente.

O Conde fechou a porta atrás de si e aproximou-se do centro do hall, ficando de frente e próximo à mulher.

- Espero que tenha satisfeito a sua curiosidade e notado que não é moradia de fantasmas e tampouco de vampiros, disse-lhe sua alteza com a delicadeza de costume, imaginando que agora a invasora se fosse. 

Não foi. Ao contrário, acomodou-se sem convite em uma das duas poltronas Bergere que ficavam no centro do hall sobre um dos tapetes persas. Não bastasse essa completa ausência de respeito, apontou para a poltrona a sua frente e disse à sua alteza:

- Senta ai! Vamos jogar um pouco de conversa fora.

Foi difícil para o Conde controlar a fúria empaladora, mas se conteve e sentou-se. Para manter a fleuma, cruzou as pernas, direita sobre a esquerda, apoiou os cotovelos sobre os braços da poltrona, entrecruzou os dedos sobre o peito, e ficou em postura de ouvinte. Percebeu, mais tarde, que um ouvinte era tudo o que ela desejava na vida. Ele não ouvia o que ela falava destemperadamente e sem parar. Apenas observava e analisava o patético espetáculo que aquela figura grotesca apresentava diante de seus olhos.

Velha para o padrão dos mortais, a mulher era feia. O conjunto era feio, e os comportamentos grosseiros ainda mais feios do que ela. Falava alto, não olhava diretamente para seu interlocutor, tinha gestos e movimentos rudes, e nada nela lembrava algo que se pudesse denominar de harmonia. Tudo nela sabia a desequilíbrio, a começar pela forma como se apresentava: mal vestida, descabelada, e visivelmente tomada por rompantes de histeria. Tudo nela lembrava um dramalhão de quinta categoria. Pele feia, como se fosse a de uma galinha depenada. No rosto a aparência da superfície da um maracajá secando. Continha todos os ingredientes da vulgaridade: no trajar, no falar, no agir, no sentir e no pensar. Tinha uma expressão que não variava: a mesma voz, o mesmo timbre, e o mesmo volume, mesmo quando esse papel não cabia. Era um personagem canastrão que tem a mesma interpretação para todos os enredos. Visivelmente perturbada.  

Sem que o Conde lhe fizesse qualquer pergunta desandou a falar sobre a própria vida, e desde a infância. Falou dos pais, dos irmãos, dos sobrinhos, dos filhos e dos netos. Todos lindos e maravilhosos e ela no centro do carrossel familiar ocupando a personagem de mentora e gestora desse universo de sucesso e felicidade. Qualquer comentário elogioso a outrem era sempre um elogio a si mesma, uma vez que os méritos dos outros dependeram e dependem de suas ações. Nem mesmo Deus reclamaria para si tanta onipresença, onisciência e onipotência. O notório autoritarismo e centralismo se fazia diluir no discurso de amor ao próximo, da ajuda desinteressada aos necessitados, sempre com desejo de fazer o bem. Era tão alienada que se mostrava incapaz de perceber a inconsistência entre as palavras e os gestos.

A criatura falou sem parar por aproximadamente uma hora, e por mais que falasse sobre os outros, era sempre ela a heroína de todas as histórias. Em nenhum momento falou de ideias. Nem mesmo de coisas, que é a segunda temática evolutiva no caminho que conduz criaturas à condição de pessoas, sendo ideias exclusivas instância superior dos viventes. O Conde permaneceu do jeito que estava desde que se sentou, e não moveu um músculo. Finalmente cansada de falar de si e dos outros, a criatura resolveu ir-se. O Príncipe das Trevas a acompanhou até a porta e despediu-se. Ela foi sem ao menos perguntar o nome de sua alteza. Lado bom de falar apenas de si mesma, e interessada unicamente em um par de ouvidos, é que não fazia perguntas, e diante das poucas que formulou, se contentava com qualquer esquiva. Afinal, só ouvia a si mesma.

- Necessário trazer Igor com urgência, pensou Drácula.

Com a ida da inoportuna, Drácula saiu para flanar, desta vez portando uma bengala de madeira com cabo feito de chifre de rena, o que o tornava figura ainda mais circunspecta. O que ninguém suspeitaria é que se tratava de espada com fina lâmina do mais puro aço, oculta dentro do valiosa invólucro. Acompanhava sua alteza há mais de trezentos anos e sofrera apenas uma pequena alteração, que foi a oportuna colocação de uma discreta base de borracha em sua ponteira, e que fora adicionada por um artesão londrino - em passado distante - que cuidou de seu restauro. O Conde aprovou a mudança, pois lhe dava mais estabilidade ao nela apoiar-se.

Nesta noite o Príncipe das Trevas caminhou pela Avenida Rio Branco, depois pela Ipiranga até a Praça da República, e dali para o Viaduto do Chá e Praça da Sé. Encantou-se com o que via. Evidente que ainda estava no centro velho, mas agora com menor decadência do que a Luz. Restaurantes com certa elegância, edifícios antigos e igualmente dotados de estilo. Visitou o Terraço Itália e encantou-se com a vista noturna da capital, toda ela desenhada pelas luzes das ruas e dos apartamentos. Agora havia riqueza de diversidade. Viu o edifício do Teatro Municipal e à distância o da Catedral da Sé. Viu um cinema, sempre oportuno para as suas investidas noturnas em ambientes socais. Viu também bares e casas noturnas. Havia grande variedade de pessoas e de diversas classes sociais. Gente bonita, mulheres jovens e atraentes, e muitas oportunidades para investidas. Deduziu que teria noites de prazer com os paulistanos. Alguns moradores de rua o abordaram, mas ele afastou a todos, um a um, com simples, mas significativo olhar. Mulheres se ofereceram, mas o Conde limitou-se a cumprimentá-las por meio de elegantes e delicados gestos.

Sua alteza
Ilustração de Maristela Bleggi Tomasini
Na terceira noite Drácula ouve baterem na porta de entrada do palacete. Imaginou quem poderia ser e foi preparado para dizer que iria sair em seguida para um compromisso inadiável. Não teve tempo, pois nem bem abriu a porta e a intrusa, como da vez anterior, adiantou-se até o meio do hall, e desta vez, com a iniciativa ousada de sentar-se na mesma poltrona. Igor já havia sido chamado telepaticamente – por falta de termo mais adequado -, pois era a forma de comunicação do mestre com seus servos, mas nem mesmo havia ainda conseguido sair do castelo pelas dificuldades com documentos.

- Lhe trouxe um presente de boas vindas, disse a criatura mostrando um pequeno prato de sobremesa coberto por um guardanapo de pano. Tenho certeza de que vai adorar, pois é uma de minhas especialidades: pãozinho feito em casa, e acaba de sair do forno.

Mais uma vez sem ação, pois absolutamente perdido diante de tamanha impertinência, Drácula aproximou-se do centro do hall, sentou-se na poltrona disponível e delicadamente recebeu o pequeno prato. Agradeceu o presente, disse que parecia muito apetitoso, e levou um dos pequenos pães à boca. Nem mesmo chegou a mordê-lo e sentiu queimadura na boca apenas pelo contato. Foi tamanha a dor que sua alteza correu para o lavabo onde se livrou do alimento e lavou a boca por diversas vezes. Ao voltar ao hall, constrangido com a reação deselegante, a intrusa perguntou:

- Nossa! Estava muito quente? Havia muito sal?

Desculpou-se o Príncipe pela indelicada reação, e explicou que é alérgico a muitos ingredientes. Talvez o pão contivesse um deles.

- Imagina, disse a mulher como que se isentando de alguma responsabilidade pelo incidente. Um pão de alho feito com muito carinho, completou. O melhor dos Campos Elíseos, e nunca fez mal a ninguém.

Drácula entendeu o que havia acontecido, e com a boca ainda em chamas por conta da queimadura produzida pelo contato com alho, disse que era alérgico exatamente àquele ingrediente.

- Como é que eu podia saber, rebateu a criatura, que passou a comer os pãezinhos restantes. 

Mais do que horrorizado pela cena dela ingerir alho em sua presença, Drácula deparou-se com algo ainda mais escandaloso: a criatura falava ao mesmo tempo em que comia. Mastigava palavras junto com os alimentos, e ainda o fazia de boca aberta.

O Conde retomou a fleuma, embora sentindo dores por conta da queimadura, e voltou ao aspecto de ouvinte atento enquanto a mulher dava continuidade ao monólogo do encontro anterior. Desta vez o assunto eram seus insucessos durante a vida. O que não pode fazer pelo pai, mãe, irmãos, sobrinhos, filhos, netos, carreira e sonhos de consumo. Notou o príncipe algo interessante no discurso sempre dramático da criatura, entre alternâncias de euforia e depressão: ela está presente e é responsável direta na história de sucesso dos próximos, e de certo modo eles responsáveis diretos ou indiretos pelos insucessos dela. Ela é sempre vítima de sujeitos ocultos – “um”, “outro”, “eles”. Pior: sente-se injustiçada, uma vez que os que ela sempre beneficiou, a preço do que chama de prejuízo próprio, não reconhecem e tampouco retribuem suas ações. Sempre, é claro, a juízo do que ela idealiza como reconhecimento e retribuição. Toda ação “desinteressada” foi anotada em um pequeno caderno imaginário, e agora é cobrada com juros e correção. Nada tem no presente que não seja amargura, e no futuro, que não seja vingança. O Conde já tinha visto isso muitas vezes, principalmente em mulheres que envelhecem e tomam consciência de que não há mais tempo para recomeçar a busca do que almejaram. Foi-se a juventude, o viço, a energia, e nada lhes restou que não fosse frustração no caminho para a decrepitude e morte. 

A essas mulheres resta a trilha da vingança contra os que elas elegem como a razão de suas desventuras. A mulher desprezível a sua frente era apenas mais um caso dentre milhares e milhares de outros. Já disseram ao Príncipe que quem cuida dos outros não tem tempo para cuidar de si. Pensa o Príncipe de outra maneira: quem não sabe cuidar de si precisa meter-se a cuidar dos outros. Quem não é dono de si se arvora a condutor da vida dos outros. Ali estava um bom exemplo. Quase sempre em nome da moral, do bem e dos bons costumes.

Também naquela noite Drácula incursionou pela cidade depois que a mulher se foi.  Desta vez embarcou em metrô na Praça da República e foi conhecer a Avenida Paulista. Ah, outra gente, outra condição social e econômica e outros apelos. Viu o MASP, edifícios de escritórios, bares, lojas, o Edifício Nacional e mulheres bonitas. Também um bom lugar para explorar com calma, e com boas perspectivas para relacionamentos. Voltou a pé descendo a Rua da Consolação e encontrou um pequeno grupo de jovens ao lado do muro do enorme cemitério do mesmo nome. Vestiam-se de preto e roxo e se identificavam como góticos. Se interessaram pelo cavalheiro pálido, amigável, e que lhes parecia profundo conhecedor das práticas e valores góticos. Drácula interessou-se igualmente por eles, e principalmente pela moça de cabelos tingidos de vermelho, corpo coberto por tatuagens e um olhar insinuante.  Foi ali, sob a discrição de uma árvore sob a calçada do cemitério, que o Senhor das Trevas colheu os frutos que a jovem generosamente lhe ofereceu. Fartou-se até sentir o último suspiro da jovem, e saciado voltou lentamente ao palacete, recolhendo-se ao esquife, antes que os primeiros raios do sol da manhã despontassem no céu. Definitivamente, ponderou Drácula, São Paulo era uma cidade promissora.

Na entrada da quarta noite, e estranhando que a intrusa não houvesse ainda batido à porta, o Príncipe resolveu descer da sala de leituras, que ficava no andar superior do palacete e dava para o mezanino, e dele, por escada, para o saguão de entrada. Pois não é que, superando todas as audácias imagináveis, a tal Tetê estava calmamente sentada na mesma poltrona, que já tomava como dela?

- Como a senhora entrou? – indagou o príncipe já dos primeiros degraus da escadaria que descia ao hall.

Sem demonstrar nenhum constrangimento e sempre sem olhar para o interlocutor, respondeu a mulher que a porta estava fechada sem chave, e ainda recomendou ao vampiro que procurasse um chaveiro.

- Eu já sou da casa, respondeu-lhe a desaforada, mas podia ter sido um vagabundo ou ladrão. O senhor precisa ter mais cuidado, sentenciou.

Drácula não acreditava no que acabara de ouvir, e o impulso empalador foi contido a muito custo.

- Igor. Preciso de você, Igor, pensou sua alteza, até mesmo para que o servo saísse durante o dia à procura de um chaveiro.

- Estava olhando este saguão, continuou a mulher, e não sei como o senhor pode viver no meio de tanta velharia.

- Velharia, exclamou o Conde indignado. São antiguidades, senhora.

- Dá na mesmo, arrematou a mulher com ares de segurança de quem sabe o que diz.

Percebeu o príncipe que seria uma discussão sem proveito. Afinal, como pretender que aquela mulher nascida na ignorância soubesse diferenciar o que é velho do que é antigo? O que poderia ter de antiguidade em uma família formada em torno de pais analfabetos, possivelmente sem conhecimento da própria origem? Devia chamar de antiga uma pequena toalha de mesa que era da avó, talvez o guardanapo de pano como o que cobriu o pão de alho, e que fora bordado pela mãe. Talvez algum bibelô de porcelana barata sobre o que chamavam de cristaleira e que nunca hospedou um cristal. O pinguim da geladeira. Talvez a foto de família que foi pintada em cores sobre a original em preto e branco e exposta em moldura envidraçada que já era espetáculo de mau gosto nas salas de operários em sua época de modernidade. Aliás, a criatura era a encarnação do mau gosto no vestir, no falar, no dispor do corpo e nos modos, mas que imaginava como requinte. Prova disso a insistência com que falava do pai na qualidade de figura culta, dizendo que apreciava música clássica. Queria dizer erudita, mas como velho e antigo, não saberia nunca a diferença. Se a ela se perguntasse pelos “clássicos” iria citar os comuns – Mozart, Vivaldi, etc. -, mas não saberia nomear uma única peça desses músicos.

- Digo isso para o seu bem: doe tudo isso para o pessoal do Exército da Salvação e eles vêm retirar. Depois, vá a uma casa de móveis e compre tudo novo. Nas Casas Bahia ainda compra a prestação. Tudo novo e cheirando a novo. Se o senhor quiser eu vou junto e ajudo a escolher. A gente sai logo depois do almoço...

- Senhora, suspirou o Conde, certamente sua casa está decorada a seu modo, e eu gosto da minha do jeito que é e está.  Estranho a senhora não entender isso.

- Eu entendo, mas quero o seu bem. Estas coisas fazem mal. Um ambiente escuro, cheio de pó... Fazem mal. O senhor precisa de mais luz, ar fresco e cores.

Dito isso se pôs a andar pelo saguão e criticar mobília por mobília. O que ela sugeria como
Dona Tetê
Ilustração de Maristela Bleggi Tomasini
substituição ia formando um arranjo de coisas desconexas, horrorosas, desencontradas, como que fazendo do ambiente o de uma loja de móveis de péssimo gosto, e não o do interior de uma casa minimamente cuidada. Tecidos os mais diversos em meio à imitação de couro barato, madeiras e aglomerados tratados da mesma forma, vidros e metais, etc. Cada mobília pensada isoladamente, e sem nenhuma relação estética e funcional umas com as outras. Fez as mesmas sugestões para a reforma: substituir a escadaria de madeira do mezanino por outra de alvenaria e coberta de mármore; substituir o piso de tábuas maciças de ipê por um piso laminado; substituir piso de mármore por porcelanato; adornos de alumínio no lugar dos de cobre e mesmo bronze; substituir as portas de madeira maciça por sanfonadas de plástico, e por aí foi. Sua alteza nem mais tinha qualquer reação diante de tantos disparates. Ela queria transformar o palacete a sua imagem e semelhança, isto é, na mais completa amorfia que o dinheiro poderia comprar. Ela representava o lumpesinato do novo-riquismo. A mulher tinha uma alma tosca. Igor, apesar de coxo e corcunda, era dotado de uma elegância de espírito infinitamente superior à dela.

Para tornar tudo ainda pior, se apresentava como a decoradora da família. Foi ela que escolheu os móveis da casa dos pais, em Sertãozinho, depois da última reforma. Também fez sugestões para a casa dos irmãos, sobrinhos e filhos. Também falava de si como gênio do paisagismo e jardinagem. Aliás, nesses quesitos ofereceu sugestões ao quintal do palacete de sua alteza, que nessa altura do monólogo da criatura estava absolutamente pasmo com as coisas que ouvia. Foi difícil convencê-la de que ele gostava das coisas do jeito que estavam e naquela noite, quando pensou que nada mais pudesse lhe acontecer de mal, – embora em nome do bem –, viu-se diante do engano. Ela deixou-lhe um embrulho contendo presente para contribuir na decoração, mas pediu para ser aberto depois que se fosse. Sua alteza agradeceu e só abriu o embrulho depois de fechar a porta. Jogou o presente longe, depois da emissão espontânea de um grito de pavor: era a pintura de um crucifixo e sem ao menos algum toque de arte. Naquela noite sua alteza não saiu do palacete. Faltou-lhe disposição e alegria.

Na quinta noite de Drácula na capital dos paulistas e lá estava a criatura sentada na poltrona do saguão antes que sua alteza descesse as escadas do mezanino.

- Gostou do desenho? Perguntou ao Príncipe antes dele chegar ao saguão.

- Gostei, respondeu sua alteza, mesmo com vontade de dizer que se tratava de uma pintura e não de um desenho.

- E o senhor pendurou onde, indagou.

- É destaque em parede de dependência íntima do palacete, respondeu o Príncipe.

Ela se contentou com a informação. Na verdade sua alteza havia incinerado e jogado as cinzas no vaso sanitário de um dos banheiros. Alho, imagem de cruz... Quais outros perigos essa mulher poderia representar? Animadora era a notícia de que Igor havia obtido o passaporte e em breve estaria em São Paulo para proteger seu mestre.

- Foi desenhado pela Mercedes. Ela gosta de desenhar crucifixos e pombas da paz. Tem vários na igreja do bairro. É boa desenhista, mas deixa a desejar como pessoa. É separada, como eu, mas não se dá o respeito. Não é boa bisca.

De todos os pecados que reservou à Mercedes, o capital era o de não ser mãe. Apontou nominalmente várias outras estigmatizadas pelo mesmo pecado. Para ela, e certamente para um exército de mulheres como ela, parir filhos tem a mesma importância do que a criação da Mona Lisa para Leonardo da Vinci, A Divina Comédia para Dante Alighieri e a Penicilina para Alexander Fleming. Apenas “pariram”, e nisso a condição de iguais.

Falava em ventre sagrado, vocação da mulher para a maternidade, realização da mulher pelo útero, e outras pérolas que afrontavam a inteligência de sua alteza, mas que continuava a fingir atenção e se esforçava para não expressar inconformismo nem mesmo nos músculos da face. Em oposição à prostituta falava em mulher honesta, do lar, de família. Ela era separada, mas do lar, honesta e mãe. Aliás, não fosse o ex-marido, e certamente ela teria sido um sucesso nas ciências e nas artes. Não exerceu todos os seus talentos porque dedicou os melhores anos de sua vida para cuidar do ex-marido e dos filhos “dele”. O ex-marido, por sua vez, entregou-se a uma vida de prazeres com as vagabundas. Como tantas outras, ela é uma vítima das circunstâncias.

- São sempre atrizes de um mesmo enredo, pensou sua excelência. Passam os séculos, mas a mesmice da mediocridade é inalterada, concluiu.

Foi noite de críticas aos próximos: vizinhos e principalmente fornecedores, isto é, aos que eram pagos para lhe prestar serviços. Quanto mais falava, mais ficava claro que se indispunha com quase todos, e também o motivo principal para gostar ou desgostar da pessoa: dar ou não ouvidos a seus monólogos autorreferentes. A pessoa que ouvisse suas histórias cansativas era reconhecida pela competência, dedicação e comprometimento. Os verdadeiramente profissionais eram depreciados sob os mais diversos argumentos. Estava claro que vivia sem ninguém por perto, e que pagava para ter ouvintes e não para ter bons serviços. Nessa medida, para os obedientes e ouvintes tudo, e para os profissionais nada.  Para os amigos tudo e para os inimigos a morte.

Depois de muito monólogo, perguntou a sua alteza se podia tirar com ela uma selfie. Desconhecendo o significado da palavra, Drácula quis saber do que se tratava.

- Como não sabe? Logo mais vai dizer que não tem Facebook, WhatsApp, Instagram...

Drácula disse que não sabia o que eram essas coisas, que não tinha nenhuma delas, e essa informação foi o suficiente para que ela se levantasse e fosse sentar no braço esquerdo da poltrona em que estava o vampiro para mostrar-lhe as maravilhas tecnológicas em seu tablet, sempre à mão, que sua alteza não sabia o que era e nem para que servia. Sempre em meio a frases do tipo “interessante”, “que bom”, etc., o Príncipe acompanhava as explicações e demonstrações, embora centrado em seu próprio entendimento e conclusões, na certeza de que a figura não tinha a menor condição de compreender o valor e alcance daquela tecnologia. O que ela queria, de fato, era mostrar sua página no Facebook com respectivas atividades e “amigos”. Lá estavam os de sempre: irmãos, sobrinhos, filhos, netos. Havia uma tal de Maria Amélia - amiga - que vista pelas costas, com aquele traseiro volumoso e dianteiro proporcional aos braços, fez sua alteza se lembrar de um hipopótamo adornado com o que de pior se podia comprar. Tamanho, cor e cheiro de uma matrona comum. Com igual destaque, no grupo das domésticas, a amiga chamada Dora. 

- Ela foi falsa comigo, mas eu perdoei. Afinal ela é mãe, e está com doença ruim. Sou solidária com quem sofre. Um gesto de amor, concluiu a criatura com ar de superioridade  moral no gesto do perdão.

Apresentou mais alguns com as devidas referências: 

- Este é Pedro. Preto, mas honesto.

- Este é Jean. Gay, mas discreto.

- Esta é Dolores. Mãe solteira, mas sabe se por em seu lugar.

Referências, é claro, a altura de quem gostava de dizer-se "despida de qualquer tipo de preconceito".
Inicialmente sua alteza surpreendeu-se com algumas das postagens, imaginando que fossem criações dela e dos tais “amigos”, mas soube de que nada era produto próprio. Tomavam uns dos outros, sem que se soubesse originalmente de quem, e praticavam o que chamavam de “compartilhamentos”. Eram imagens e mesmo frases de terceiros, que nem mesmo eles conheciam. Descobriu o Príncipe que aquilo era uma espécie de baile de máscaras, onde as pessoas se apresentavam como gostariam de ser vistas pelas outras. Isso era evidente na “página” de dona Tetê, que nada tinha em comum com a pessoa que ele conhecia apesar do pouco tempo de convivência. De igual a única coisa que ela não conseguia disfarçar, que era a mais completa ausência de estilo que pudesse representá-la. Certamente deveria ser essa a característica de seus “amigos” e de seus “grupos”. Uma rede de fúteis e apenas isso.

Em dado momento a mulher aproximou-se do Conde, pediu para ele olhar para o aparelho, de onde saiu um raio de luz que assustou e cegou sua alteza por certo tempo. Era o flash do tablet compensando a pouca luminosidade do ambiente. Assustado e confuso quis o Príncipe saber o que havia ocorrido. Ela falou do flash e notou algo para ela incompreensível: a imagem de sua alteza não figurava na foto. Como se ele não existisse. Diante disso a mulher preparou-se para nova tentativa, mas foi desencorajada pelo argumento de que seria melhor deixar para um momento com mais claridade.

- Que pena, disse ela. Queria colocar nossa selfie no WhatsApp e Facebook.

O Conde continuava vendo pontos de luz por todos os lados, mesmo depois dela ter-se ido. De bom, naquela noite, foi saber que Igor tinha obtido passaporte e se preparava para vir a São Paulo. O servo fazia mais e mais falta a cada dia, e a paciência de Drácula já havia passado de quase todos os limites. A mulher tirava qualquer um do eixo. Não era sem razão que vivia as voltas com amigos virtuais, pois presencialmente era abominável.

Recuperada a visão e Drácula saiu para um passeio pela noite paulistana. Desta vez em incursão por um Shopping, Foi proveitosa, pois se fez acompanhar no cinema por uma jovem que por ele se interessou. Muito apropriada a sala escura e as poltronas confortáveis para momentos de extremo prazer nas veias pronunciadas dos seios de sua generosa companhia. Exceto pela criatura de aldeia e subúrbio, e São Paulo era mesmo uma cidade com grandes atrativos.

A anunciada a chegada próxima de Igor animava sua alteza, que dava como certo o fim do reinado de terror daquela mulher insuportável. Antes disso, porém, não faltaram episódios grotescos. Foi assim, por exemplo, que em nome de dar um pouco de vida ao palacete ela mais uma vez presenteou o Príncipe, desta vez com um grande vaso contendo uma muda viçosa de comigo-ninguém-pode, planta famosa por afastar energias negativas no ambiente. Pois bem: mal a mulher passou com o vaso pela porta de entrada e a planta secou por completo, como se estivesse morta havia tempo.

- Nossa! Falta de água ou de adubo?

O Príncipe agradeceu e pediu para que ela não se incomodasse com o incidente.

- Coisas que acontecem, disse em sinal de consolo.

Na linha dos presentes, trouxe para sua alteza alguns talheres de  prata que por sorte não usou. Na saga de proporcionar um pouco de vida ao palacete, trouxe um filhote de gato, que ao se deparar com Drácula eriçou todos os pelos, bufou, mostrou unhas e dentes e saltou pela janela, levando junto inclusive a vidraça que estava fechada. Quase exterminou o Conde que se viu exposto à luz do sol quando abriu a porta do sótão, onde repousava em seu esquife, pois a megera havia removido as cortinas do mezanino para lhes passar aspirador de pó. Também por sorte o Príncipe fechou a porta de imediato quando notou e sentiu os primeiros raios de luz.

- Esse pó não é bom para a sua saúde. Alergia, problemas respiratórios... Cortinas de veludo vermelho e grosso: onde já se viu?

Drácula se perguntava quantos outros males viriam em nome do bem. Sempre em nome do bem. Veio mais um, mas esse superou toda a capacidade de tolerância de sua alteza.

Ao descer o mezanino depois de seu repouso diurno, o Conde se vê diante de uma cena jamais imaginada: os retratos de seus ancestrais estavam descoloridos e praticamente apagados. Drácula não acreditava no que seus olhos viam, não era capaz de suspeitar dos motivos daquela desgraça, e foi quando a criatura apareceu. Ela tinha ido ao palacete à tarde e se dedicado à limpeza dos quadros.

- Estavam muito sujos. Passei água e detergente com esponja. Como a sujeira não saiu, voltei para casa, trouxe solvente e passei com vontade sobre a tela. Limpou, mas se quiser a Mercedes vem dar uns retoques e fica novo.

Além de não crer no que estava vendo, Drácula não acreditava no que estava ouvindo.  Um atentado contra mais de seis séculos de memória e tradição dos Dracul, uma desonra à Ordem do Dragão. Irremediavelmente danificados, perdidos. Sem nada dizer, sua alteza foi ao porão, de onde voltou com uma estaca de madeira, e, a um único golpe, cravou-a certeiro no coração da megera, sob o olhar assustado da criatura. Não deu um grito sequer. Drácula ficou olhando o corpo caído ao chão, mas tamanha era a ignomínia da megera, que pareceu necessário assegurar seu extermínio. Retornou ao porão, de onde desta vez surgiu com um sabre, com o qual separou a cabeça do restante do corpo da serpente. Nem ele saberia explicar, mas aquele sangue no chão lhe causava repulsa. Sentia vergonha perante os antepassados, e lamentava aquela criatura chegar até onde chegou por conta de sua omissão.

- Tudo isso para ser diplomata com vizinhos, mas não é prudente tratar os diferentes como se iguais fossem, pensou. Estava arrependido de não ter se livrado antes da criatura desprezível.

Igor chegou no dia seguinte e deu destino aos restos da bruxa. Fácil imaginar a reação das pessoas no Aeroporto de Guarulhos, quando diante de um Igor baixo, torto, corcunda, coxo e  vesgo. Literalmente horroroso, estranho, sinistro. No palacete ele separou o corpo e o lançou por partes nos rios imundos que cortam a capital dos paulistas: Tamanduateí, Tietê e Pinheiros. Mais tarde limpou o chão e removeu os vestígios da morte da nefasta. Agora o chaveiro não tinha a menor importância. Disse Igor, mais tarde, que imaginou ter ouvido a bruxa reclamar quanto a cabeça foi lançada na água, e mesmo depois de imersa. Reclamava, reclamava, reclamava por bolhas de ar que chegavam à superfície.

Embora aliviado, o Príncipe não estava bem. Tinha pesadelos com a tal Tetê.  Sonhava com aquela cabeça fora do corpo olhando para o nada, com singular mono expressão doentia dos histéricos, e falando sem parar, sem parar, sem parar...  Perdera até mesmo o apetite pelas rondas noturnas. Diante desse quadro desolador, resolveu voltar para seu castelo nos Cárpatos, e é o que fez.

Ah, como lhe fez bem olhar ao redor e ao interior de seu castelo. Voltar para casa era reencontrar-se com tudo aquilo que estava no mesmo lugar há centenas de anos. O frio, o vento, sentir os cheiros e ouvir o uivo dos lobos nas madrugadas. Como lhe fez bem o ar rarefeito da altitude e os sons suaves e discretos. O rumor de um riacho que corria por meio das pedras soava como música, e nada de vozes e de intrusos. Drácula estava em companhia de si mesmo, e assim se bastava por séculos.

A seu pedido, e pela primeira vez, Drácula recebeu a visita de médico para consulta em seu próprio castelo. Um paciente incomum, e com história incomum para um vampiro, Drácula relatou seus sintomas. Ao médico pareceu um caso típico de desgaste emocional. Recomendou repouso, receitou um calmante, mas fez coleta de sangue para análise, prometendo regressar em breve com os resultados. Resultados, aliás, que nem mesmo o médico soube compreender. O Conde havia sido exposto à contaminação por inveja, ignorância, burrice, futilidade, vulgaridade, amargura, insegurança, hipocrisia, despeito, angústia, dor, violência, amargura, despeito, rancor, raiva, melancolia, depressão, medo, frustração, tristeza, solidão, vingança e por altas taxas de ódio. Tudo isso, entretanto, sem que sua alteza tivesse tido contato íntimo com sangue de pessoa que aparentasse ser portadora de tais moléstias. Ah, embora sem proximidade íntima com sangue, lembrou-se que esteve exposto a uma criatura que tinha essas e outras moléstias de alma: a tal Tetê. Todas as perigosas doenças, aliás, dissimuladas ao olhar dos ingênuos sob o manto discursivo do bem. Era da classe de gente que não consegue fazer mal a si, sem também fazer mal aos outros. Era do tipo que se arvora a cuidar da existência alheia, pois não consegue cuidar da própria. Gente vazia de paz interior. Gente que não tolera em outros o que não consegue produzir em si mesma: entrega ao prazer. O médico concordou com contaminação pelo espírito.

- Pior do que pelo corpo.

Manteve a recomendação de repouso, a prescrição de calmante, e sugeriu a sua alteza que buscasse ajuda com alguma forma de terapia comportamental. Drácula aceitou a sugestão e passou a ser atendido por uma jovem psicóloga duas vezes por semana em seu castelo.  As sessões, porém, não foram além de cinco. Motivo? Na quinta e última, sua alteza reparou no pescoço esguio da jovem, emoldurado pelos longos e sedosos cabelos loiros que lhe escorriam até a altura dos ombros, e não se conteve.

O que se sabe é que sua alteza está recuperada. Talvez desintoxicada pelo passar do tempo. Talvez pelas sessões terapêuticas. Diz Igor que pelo efeito do delicioso pescoço da jovem e bela psicóloga. 

Quem sabe?


Rogério Centofanti