Cada vez que eu
me despeço de uma pessoa
pode ser que essa
pessoa esteja me vendo pela última vez.
A morte, surda,
caminha ao meu lado
e eu não sei em
que esquina ela vai me beijar.
Canto para a minha morte – Raul Seixas
O
velho Ary morreu. “Ary com ípsilon”, como gostava de se apresentar e de ser
apresentado. Morreu de velho, como quase todo velho, embora essa evidência não
seja suficiente para saciar a curiosidade mórbida da maior parte das pessoas.
—
Morreu de que, hein?
—
Morreu de morte, oras! — Dá vontade de responder.
No
caso da morte do velho Ary não houve no bairro quem não comentasse o que se
tornou um acontecimento, pois seu corpo foi encontrado quatro dias depois de inerte,
e mesmo assim porque de sua casa exalava mau cheiro.
—Viveu
como um porco, dizia maldosamente a vizinha, enquanto se desfazia de tristeza
pelo trágico passamento do “pobre homem”.
—
Uma criatura incapaz de fazer mal a uma mosca, disse outra na mesma rodinha de
marocas da rua.
O
odor despertou a atenção do vizinho dos fundos que avisou o único parente com o
qual o velho mantinha relação. O parente — um sobrinho — abriu a casa e
encontrou o corpo estirado sobre a cama. Dai em diante a entrada em cena do
Instituto Médico Legal e dos demais personagens e procedimentos de praxe para a
ocasião. Não se sabe se houve velório e tampouco onde foi o sepultamento. Não
que fizesse alguma diferença, mas sempre motivo a mais para alimentar os comentários
da gentinha de costume.
Como
morrer de morte não tem graça, pois não alimenta o espírito dos vulgares ávidos
por desgraças, o povo não tardou a imaginar razões. A mais criativa naquela
manhã de sábado foi que ele havia se pendurado com uma corda em torno do
pescoço. Suicídio, portanto. Claro que isso fermentou o burburinho em torno da causa mortis. Solidão foi a mais
escolhida dentre os hipócritas que pareciam se importar com o velho.
Compreensível se lembrado que todo morto se torna ente querido depois de, como
dizia a minha avó, ser recolhido pelo Senhor. Nessa circunstância até a mais odienta
das pessoas ascende a essa condição sublime.
—
Ele tinha suas manias, mas era boa pessoa.
Boa
pessoa é o termo genérico empregado na busca de algum mérito, principalmente
quando não ocorre nenhum. É o emprego da lei da compensação identificada pela
presença da conjunção adversativa “mas”.
—
Era estranho, mas...
Até
que não houve muito disso nas rodas de conversas sobre o velho Ary, mas na ausência
do saber a especulação ganhou asas. Passou para a memória do bairro como um
coitado que morreu só, como se alguém morresse acompanhado. Os poucos que
sabiam alguma coisa, ou que diziam saber, rapidamente se tornaram alvo das
atenções dos curiosos. Críticas, sim, para os parentes, que de acordo com as
bocas venenosas o deixaram por anos no abandono.
—
Morreu à míngua, sentenciou a mulher da rua ao lado, a das feiras das quartas, emoldurada
por expressões e gestos teatrais de indignação e inconformismo.
Ora,
o velho não estava no abandono, pois o mesmo sobrinho que foi localizado para
abrir a casa quando de seu desaparecimento, por lá passava vez ou outra para
levar roupas para lavar e recolher algumas contas para pagamento. Eu sei, agora,
pois já o havia visto por lá, inclusive quando o velho Ary quebrou a perna. Afinal
eu morava na casa em frente e também só. Não havia, portanto, nenhum abandono,
mas a maioria não se conforma com velho morando só, e noto isso comigo.
—
Onde está seu acompanhante?
—
Não tenho.
—
Nossa! Que perigo.
O
velho Ary passava dos noventa anos, e eu cruzava com ele duas ou três vezes por
semana. Eu voltando do almoço do restaurante a quilo que ficava na praça, e ele
na direção contrária, trazendo na mão um pequeno saco plástico que não ocultava
a guarda de uma quentinha fornecida por alguém das redondezas. Devia conter o de
costume: arroz, feijão, bife e salada.
—
Hora de papar, me dizia toda vez que nos cruzávamos nessas caminhadas para as
refeições.
Naquela
movimentada manhã vi por lá a dona do restaurante a quilo dizer aos presentes que
costumava mandar um empregado levar-lhe um prato feito. Bem, eu nunca vi.
Algumas
vezes o encontrava encostado no balcão da padaria em torno de um pingado grande,
servido em copo reaproveitado de requeijão, e acompanhado de um pão francês que
trazia um ovo frito como recheio. Um sanduíche de ovo.
—
Hora de papar, repetia com o sorriso de costume e que lhe dava a ver os dois ou
três únicos dentes.
Uma
vez encontrei-me com ele no supermercado. Lembro-me que carregava um fardo de
rolos de papel higiênico, e com andar muito lento caminhava na saída para um
dos caixas.
—
Um pouco sempre tem que gastar, disse-me.
O
dono da padaria também registrou presença naquela manhã, assim como o gerente
do supermercado. O episódio abriu oportunidade para ações de marketing.
Na
grande maioria das vezes sentava em cadeira de alumínio — que lembrava aquelas
de praia — que ficava na área externa da entrada de sua casa. Ali ficava a
maior parte do dia. Um tipo inconfundível: magro, estatura média, muitos
cabelos, brancos e emplastados por gordura natural ou artificial. Talvez por um
pouco de cada. Um homem branco, euro descendente e de olhos acinzentados.
Eu
nunca tinha visto tamanho movimento na rua como naquele sábado. O entra e sai
de curiosos na casa do velho Ary certamente era maior do que o de um museu de
arte. Romaria para visitação, com direito a fila e disciplina de fluxo para
entrada e saída. O sobrinho teria feito dinheiro se cobrado ingresso. A
concentração era tamanha que um pipoqueiro estacionou seu carrinho sobre a
calçada. Tinha até pipoca com queijo. Notei que havia gente de fora quando dois
estranhos apareceram no meu portão perguntando se podiam usar meu banheiro. O
azar de ser vizinho muito próximo ao local da tragédia me tornava uma espécie
de fonte para informações fartas e confiáveis. Só faltou um cordel alusivo ao
episódio:
Vou contar com precisão
Para quem quer a verdade
Sobre a vida e sobre a morte
De um homem sem vaidade
Foi grande guardião do bem
E viveu com lealdade
Desprovido
de sensibilidade para as sutilezas, pobre adora emoções contrastadas: tragédias
soterradas por mistérios e romances afogados por água açucarada.
A TV Ilustração de Maristela Bleggi Tomasini |
Meses
depois estava eu na calçada com um dos vizinhos, quando notei que a casa do
velho Ary continuava com a mesma antena VHF e comentei a conversa próxima
passada.
—
Mãe? Exclamou o vizinho com ar de discreta zombaria de minha ignorância. A mãe
dele morreu faz tempo. Pelo menos trinta anos, concluiu.
Fiquei
quieto e me esforcei para não demonstrar perplexidade. O vizinho foi delicado e
nada disse além daquilo. Creio que essa foi a primeira informação que obtive
sobre a vida do velho Ary. Outras poucas foram surgindo ao longo do dia e
sempre de forma incidental.
Soube,
em outra ocasião, que fora o alfaiate do bairro, e que herdara a alfaiataria do
velho Giacomo, italiano que fizera nome nas redondezas. Ary foi seu empregado
por décadas. Dizem que seu único emprego, onde começara ainda adolescente como
ajudante, e assim até aprender a arte do ofício. Com o passar do tempo, porém,
fechou as portas da pequena alfaiataria. A chegada das lojas de roupas feitas determinou
o fim da era dos alfaiates. Foram-se, assim como relojoeiros, ourives,
sapateiros e tantas outras profissões “de ofício”. Parece que o velho Ary foi o
último a baixar as portas.
Essa informação explicava o fato de ele estar sempre
vestido de camisa social branca de mangas longas, paletó e calça de cor azul
claro, sapatos sociais e meias de cores escuras combinando com o calçado. Roupas
com corte e tecidos de boa qualidade. Só não vestia terno pela ausência de
gravata. Vinha dai, portanto, a elegância no trajar, embora as roupas fossem
poucas e estivessem puídas. Elegância, inclusive, nos modos e nos gestos,
embora visivelmente judiado pela falta de algum dinheiro. Um banho com shampoo,
bom sabonete, barbeiro e finalizado por roupas melhor conservadas, dariam ao
velho Ary um aspecto melhor, embora, certamente, ele não estivesse com isso
preocupado. Ele tinha certa altivez. Parece que disso tinha consciência e com
isso estava satisfeito. Vivia para si e não para os outros.
A velha casa Ilustração de Maristela Bleggi Tomasini |
A
movimentação na rua aumentava. Agora, além de pipoqueiro havia também um
carrinho de sorvetes. O aglomerado atraia mais pessoas e a massa aumentava em
volume.
—
O que está acontecendo, hein?
Interessante
era ver e ouvir o que um ignorante dos fatos informava a outros.
—
Um homem se matou na casa com tiro na cabeça.
—
Um sujeito matou a mulher e depois se enforcou.
—
Um homem matou a mulher e os filhos.
Os
recém-informados compartilhavam as notícias pelo WhatsApp. Aliás, junto com
Facebook um aplicativo perfeito para o uso desse tipo de gente.
Não
havia mais onde estacionar, nem mesmo nas ruas próximas. Os equipamentos de
vídeo dos celulares funcionavam a todo vapor. Não faltou nem mesmo a reportagem
da TV local, e tampouco os dispostos a conceder entrevistas, ainda que nada
soubessem.
—
Era uma pessoa querida por todos, declarou uma mulher à reportagem, depois de
passar um pente pelos cabelos e um batonzinho básico, naturalmente. Detalhe: os
vizinhos não sabiam quem era a mulher.
Patética
foi a batalha pela propriedade da alma do velho Ary. Primeiro chegou o padre da
paróquia próxima, ladeado por algumas fiéis. O pobre homem nem mesmo sabia ao
certo o que havia ocorrido:
—
Onde está o corpo?
Um
pouco melhor informado entrou na casa e fez a curta peregrinação dos curiosos.
Em seguida chegaram os pastores, facilmente reconhecidos pelos ternos baratos,
sempre de um número menor, pela bíblia na mão e pela empáfia de quem pretende
demonstrar intimidade com o altíssimo. Cinco pastores, cada qual representando as
denominações presentes na praça. Bizarro ninguém saber da religião do morto.
Aliás, nem mesmo se tinha religião. Definitivamente, aquilo havia se
transformado em circo. Talvez em hospício.
Conheci
o sobrinho quando bateu em minha porta pedindo para usar meu banheiro. Afinal,
a casa do tio tinha sido invadida. Explicou minha escolha pelo fato de eu morar
só e estar rente à casa do falecido.
—
Claro que sim, respondi. O senhor deve estar exausto com esse entra e ai de
pessoas.
Enquanto
usava o banheiro fiz um pouco de café e deixei em bandeja junto com água. Ao
sair do sanitário pedi para que sentasse em uma poltrona e se servisse de água
e café. Agradeceu e fez uso da oferta sem nenhuma cerimônia. Perguntou se eu
conhecia o velho Ary.
—
Só de vista.
Depois
disso, e sem que eu perguntasse, passou a falar do tio. Nascera no bairro, bem
como a irmã mais nova, da qual o sobrinho sentado a minha frente era filho. O
pai morreu quando Ary era ainda adolescente, e ele ficou com a mãe e a irmã.
Foi jovem trabalhar em alfaiataria e lá ficou até a aposentadoria por falta de
fregueses. A irmã não tardou para arranjar marido para sair de casa, nela
ficando apenas o velho Ary e a mãe.
Segundo
o sobrinho a velha era insuportável, e esse teria sido o motivo maior para sua
mãe se refugiar no casamento.
O velho Ary Ilustração de Maristela Bleggi Tomasini |
—
Amor só de mãe.
—
Mãe é uma só.
Afinal,
quem nunca leu essas pérolas em para-choque de caminhão ou em alguma tatuagem?
Novidade, ao menos para mim, foi saber que Ary mantinha a casa do mesmo jeito
que ela estava desde a morte da mãe, e à velha referir-se como se ainda estivesse
viva. Havia nisso uma dose de patologia.
Descansado,
e sabendo que eu nunca tinha estado na casa do velho Ruy, o sobrinho
convidou-me para conhecê-la. Afinal, bastaria atravessar a rua.
—
Não quero incomodar, eu disse.
—
Incomodar? Perguntou o sobrinho rindo. Já não me sinto incomodado nem pelas
centenas de estranhos que desde a manhã de hoje invadem a casa, concluiu.
E
foi assim que, a convite, entrei pela primeira vez no espaço do velho Ary.
Aliás, pelo que soube o único na condição de convidado.
Foi estranho passar
pelo portão de ferro que por teimosia se mantinha preso ao muro baixo de
alvenaria, encimado por uma grade de ferro comida pela ferrugem. Foi estranho
pisar naquele terreno plano que não tinha sequer um capim. Um chão árido,
desértico como tudo mais no exterior da casa. O sobrinho fez questão de me
acompanhar.
A
casa era exatamente como eu imaginava. Afinal, também sou filho de operário e
morei na infância e parte da adolescência em casa similar. Um retângulo de duas
águas que abrigava dois dormitórios, uma sala de estar, e uma cozinha com
espaço para mesa de refeições e que se compunha com um banheiro. Tudo isso em
aproximados noventa metros quadrados. O tanque para lavagem de roupas ficava em
pequena cobertura externa nos fundos, exatamente na saída da cozinha para o
quintal. Um clássico da arquitetura operária da São Paulo de início até meados
de século.
A
construção além de sólida era saudável. O pé direito alto trazia conforto
térmico, além de quantidade maior de ar em ambiente confinado. Com exceção da
entrada e da área que abrigava cozinha e banheiro que ficavam por aterro acima
do nível do solo, as demais dependências eram dele isoladas por assoalhos de
madeira sustentados sobre caibros, evitando umidade e assegurando passagem de
ar pelo que ficava sendo um porão, ainda que sem outra utilidade. As construções
eram, portanto, altas em relação ao solo. Havia uma escada para subir até o
piso, e outra, no fundo, para descer até o solo. A casa do velho Ruy era
exatamente assim.
Subi
a meia dúzia de degraus que me levou até a área de entrada. Degraus e a própria
área revestidos por lajotas de cimento pigmentado, formando desenhos
geométricos, e que eram comuns naquela época. Já estavam bastante desgastadas
pelo uso e pela ação das intempéries. Também sujos. Dali, para a sala, uma
porta de folha dupla que se abria ao meio, e também gasta. Não era de duvidar
que ao longo do tempo tivesse recebido uma demão de tinta a óleo de cor cinza.
Afinal, as tintas eram quase sempre poucas, assim como as cores. Todas as
janelas, batentes e portas estavam no mesmo estado e, considerada a falta de
manutenção, pareciam ser de madeiras de boa qualidade. O tabuado do assoalho da
sala e dos dormitórios, certamente de peroba, também estava gasto e sujo, mas
firme, pois não se movia ou rangia com a passagem de toda aquela gente por ele
andando. No passado foi tratado com cera, mas seguramente não via esfregão,
palha de aço e cera fazia muito tempo.
Igualmente bem conservado o forro de madeira,
escurecido talvez pela aplicação original de linhaça, pois era mais barata do
que tinta a óleo e esmalte, se é que já existisse a última. A alvenaria
consistia de tijolos grandes, assentados inteiros e revestidos por argamassa de
cal e areia. Não se usava cimento. Um ou outro descascamento por onde saber que
as paredes haviam sido caiadas mais de uma vez. Já foram de cor rosa, amarela,
azul e por último de cor branca, embora esse nome não fizesse jus ao seu estado
atual. As ferragens estavam razoavelmente conservadas, embora atacadas por
oxidação.
Curiosos
a meu redor expressavam suas dúvidas e certezas:
—
Como o assassino podia viver nesse chiqueiro?
—
Só mesmo um doente para morar nisto.
—
Deve ter matado a mãe porque a coitada queria limpar esta imundice.
—
Tenho certeza de que a mãe deu boa educação para esse animal.
—
Mas ele matou a mãe ou a esposa?
Eu
e o sobrinho do velho trocávamos sorrisos discretos, mas nada dizíamos. Afinal,
o que dizer daquele surrealismo? Tudo aquilo era patético, mas muito
pedagógico, ao menos para mim que aprendia mais sobre as ilimitadas fronteiras
do moralismo e justiceirismo presentes na mentalidade dos imbecis. Afinal,
acreditam ser importante opinarem sobre tudo, inclusive sobre o que
desconhecem. Quando nos afastamos um pouco dos intrusos eu disse em voz baixa
ao sobrinho do velho:
—
A história está ficando cada vez mais escabrosa com a passagem dos minutos.
Ele
concordou com movimento de cabeça.
A
casa era literalmente um retorno ao passado. Os objetos internos eram todos
muito velhos, e estavam degradados. Fossem para algum depósito de lixo e teriam
melhor destino. Nada que prestasse para uso ou mesmo para decoração. Objetos de
segunda categoria mesmo quando novos e comprados de algum mascate que servia o
bairro com vendas a prestação. Lembro-me do tipo ainda em minha infância: o
turco.
Na
sala um sofá e uma poltrona revestidos de courvin, o couro dos pobres, material
moderno para a época, além de prático, econômico e funcional. Os tecidos
estavam rasgados, rotos, descoloridos e sujos, deixando o estofado à mostra em
vários lugares. Certamente ainda em uso, pois os pés de madeira que haviam se
quebrado foram substituídos por alguns tijolos empilhados uns sobre os outros, tendo
à frente o televisor de tubo, à válvula, dentro de um gabinete de madeira
revestido de laminado de cerejeira. Ainda que funcionasse, não poderia ser
convertido para nenhuma tecnologia digital.
Também na sala, um rádio valvulado
com três faixas de onda, igualmente instalado dentro de um gabinete.
Possivelmente funcionando, pois o cabo de energia se encontrava ligado. No
centro do teto o que um dia foi um pequeno lustre, e com uma lâmpada.
Fiquei
imaginando o velho Ary sentado na poltrona que parecia a mais usada, com a
perna direita repousando sobre o joelho esquerdo, assistindo TV ou ouvindo
rádio.
Quando
me perguntou pelo conversor digital, disse que na TV tinha interesse apenas em
jogos de futebol. Talvez gostasse de rádio. Eu não teria como saber, mas
ficou-me a fantasia dele sentado ouvindo programas de emissoras AM. Enquanto eu
imaginava, os invasores tudo fotografavam com seus celulares, inclusive com
direito a selfie com poses. Bem, ao
menos até onde observei, nenhum deles deixou parede pichada: “Zé esteve aqui”.
Eu não duvidaria.
O
quarto da frente parecia ter sido o aposento da mãe. Nele uma cama patente, tal
como ficou conhecida a cama tubular metálica com estrado fixo, de molas,
inicialmente criada para uso em enfermarias de hospitais. Foi muito popular
pela praticidade e resistência. Aquela, de casal, estava armada, e sobre seu
estrado de molas um colchão de palha enrolado e amarrado com barbante grosso.
Fazia tempo que estava daquele jeito. Aliás, ao que eu soube possivelmente como
desejo da mãe quando ainda em vida. Havia também um guarda-roupas barato, de
três portas, e que estava fechado. Eram sempre iguais: duas gavetas, dois ou
três maleiros, uma sapateira e porta cabides. O espelho ficava na face interna
da porta do meio. Imaginei que as coisas da mãe ainda estivessem ali guardadas.
Por fim um pequeno oratório, pregado na parede, com uma imagem da Menina
Izildinha,
ladeada por dois pequenos vasos de louça barata, e cada um deles
ornado por uma rosa de plástico. Tudo
sujo e empoeirado.
Menina Izildinha Ilustração de Maristela Bleggi Tomasini |
—
Mas Menina Izildinha não é imagem santificada em Portugal? Perguntei ao
sobrinho.
—
Sim. Minha avó era portuguesa. Meu avô italiano.
Os
intrusos adoravam fotogravar a gravura, mesmo não tendo a menor ideia de quem
fosse a Menina Izildinha, também conhecida como Santa Izildinha.
O
quarto da frente só poderia ser o do velho Ary. Nele também uma cama patente,
agora de solteiro, com igual colchão de palha, mas com roupas de cama
desarrumadas sobre ela. É onde deve ter morrido, pensei. Um guarda-roupas igual
ao da mãe, mas com apenas duas portas. Também estava fechado e ao certo nele guardava
alguma roupa de cama e de banho, além das poucas peças de uso pessoal. Havia
também uma cadeira, e isso era tudo.
Na
cozinha no fundo da casa, um fogão a gás de quatro bocas e forno, cuja
mangueira já havia sido retirada e o esmaltado corroído pela ferrugem. Havia um
velho refrigerador desligado, certamente com motor queimado, e que agora servia
para a guarda de meia dúzia de panelas também em desuso. Uma pequena mesa muito
rústica e uma cadeira, que fazia par com a que estava no dormitório do velho
Ary. Sobre a tampa da pia creio que a única peça em uso na cozinha: um filtro
de barro com uma caneca de alumínio lhe cobrindo a boca. O velho Ary bebia água
filtrada em moringa com caneca de alumínio. Não vi pratos nem talheres. No banheiro,
apenas o lavatório, o vaso sanitário também de cerâmica e um chuveiro pendurado
em um cano de ferro galvanizado. Isso era tudo.
Descendo
alguns degraus que se projetavam da porta dos fundos, cheguei a um tanque de
cimento que parecia em desuso, e nisso se resumia o morar físico do velho Ary.
Desse
dia resultou a história de Ary no bairro, e nas mais diferentes versões. Homicida,
suicida, solitário, abandonado, sujo, etc. Histórias fantásticas. Não duvido
que cultor do Demônio, pedófilo, e do que mais estiver em evidência nas mídias
sensacionalistas. Para mim, o dia serviu apenas para reafirmar minha convicção
na imbecilidade resultante das aglomerações humanas. Quanto ao velho Ary com
ípsilon, com exceção do fato de se referir à mãe como se ainda estivesse viva,
nada houve que mudasse meu conhecimento sobre ele. Idiossincrasias? Quem não as
tem? Era um homem em paz consigo mesmo e com os outros e que se bastava com a
própria companhia. Um homem que vivia para si e não para os outros, de onde a
irrelevância do estado e funcionalidade das coisas à sua volta. Como sei disso?
Também sou assim. Certamente ele concordaria com meu lema: “cada vez mais,
menos”.
Ele tinha mais coisas do que precisava. Sua sobrevida caberia em um
quartinho com uma cama, um filtro de barro, uma caneca de alumínio, um vaso
sanitário, um lavatório e um cano de água para banho. O restante era luxo, de
onde não importar se fosse lixo. Sua vida, porém, não estava ao alcance do que
podia ser visto e inventariado. Eu sabia quem era Ary com ípsilon, pois aprendera
a observar além do que as aparências estampam para iludir os idiotas.
Com
restrições financeiras e imensa simplicidade, Ary com ípsilon era um cavalheiro,
e confesso que, com toda a minha idade, conheço poucos.
Rogério Centofanti
São Paulo, janeiro de 2020.