segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Tributo a Ary com ípsilon


Cada vez que eu me despeço de uma pessoa
pode ser que essa pessoa esteja me vendo pela última vez.
A morte, surda, caminha ao meu lado
e eu não sei em que esquina ela vai me beijar.

Canto para a minha morte  – Raul Seixas

O velho Ary morreu. “Ary com ípsilon”, como gostava de se apresentar e de ser apresentado. Morreu de velho, como quase todo velho, embora essa evidência não seja suficiente para saciar a curiosidade mórbida da maior parte das pessoas.
— Morreu de que, hein?
— Morreu de morte, oras! — Dá vontade de responder.

No caso da morte do velho Ary não houve no bairro quem não comentasse o que se tornou um acontecimento, pois seu corpo foi encontrado quatro dias depois de inerte, e mesmo assim porque de sua casa exalava mau cheiro.
—Viveu como um porco, dizia maldosamente a vizinha, enquanto se desfazia de tristeza pelo trágico passamento do “pobre homem”.
— Uma criatura incapaz de fazer mal a uma mosca, disse outra na mesma rodinha de marocas da rua.

O odor despertou a atenção do vizinho dos fundos que avisou o único parente com o qual o velho mantinha relação. O parente — um sobrinho — abriu a casa e encontrou o corpo estirado sobre a cama. Dai em diante a entrada em cena do Instituto Médico Legal e dos demais personagens e procedimentos de praxe para a ocasião. Não se sabe se houve velório e tampouco onde foi o sepultamento. Não que fizesse alguma diferença, mas sempre motivo a mais para alimentar os comentários da gentinha de costume.

Como morrer de morte não tem graça, pois não alimenta o espírito dos vulgares ávidos por desgraças, o povo não tardou a imaginar razões. A mais criativa naquela manhã de sábado foi que ele havia se pendurado com uma corda em torno do pescoço. Suicídio, portanto. Claro que isso fermentou o burburinho em torno da causa mortis. Solidão foi a mais escolhida dentre os hipócritas que pareciam se importar com o velho. Compreensível se lembrado que todo morto se torna ente querido depois de, como dizia a minha avó, ser recolhido pelo Senhor. Nessa circunstância até a mais odienta das pessoas ascende a essa condição sublime.

— Ele tinha suas manias, mas era boa pessoa.
Boa pessoa é o termo genérico empregado na busca de algum mérito, principalmente quando não ocorre nenhum. É o emprego da lei da compensação identificada pela presença da conjunção adversativa “mas”.
— Era estranho, mas...
Até que não houve muito disso nas rodas de conversas sobre o velho Ary, mas na ausência do saber a especulação ganhou asas. Passou para a memória do bairro como um coitado que morreu só, como se alguém morresse acompanhado. Os poucos que sabiam alguma coisa, ou que diziam saber, rapidamente se tornaram alvo das atenções dos curiosos. Críticas, sim, para os parentes, que de acordo com as bocas venenosas o deixaram por anos no abandono.
— Morreu à míngua, sentenciou a mulher da rua ao lado, a das feiras das quartas, emoldurada por expressões e gestos teatrais de indignação e inconformismo.

Ora, o velho não estava no abandono, pois o mesmo sobrinho que foi localizado para abrir a casa quando de seu desaparecimento, por lá passava vez ou outra para levar roupas para lavar e recolher algumas contas para pagamento. Eu sei, agora, pois já o havia visto por lá, inclusive quando o velho Ary quebrou a perna. Afinal eu morava na casa em frente e também só. Não havia, portanto, nenhum abandono, mas a maioria não se conforma com velho morando só, e noto isso comigo.
— Onde está seu acompanhante?
— Não tenho.
— Nossa! Que perigo.

O velho Ary passava dos noventa anos, e eu cruzava com ele duas ou três vezes por semana. Eu voltando do almoço do restaurante a quilo que ficava na praça, e ele na direção contrária, trazendo na mão um pequeno saco plástico que não ocultava a guarda de uma quentinha fornecida por alguém das redondezas. Devia conter o de costume: arroz, feijão, bife e salada.
— Hora de papar, me dizia toda vez que nos cruzávamos nessas caminhadas para as refeições.
Naquela movimentada manhã vi por lá a dona do restaurante a quilo dizer aos presentes que costumava mandar um empregado levar-lhe um prato feito. Bem, eu nunca vi.
Algumas vezes o encontrava encostado no balcão da padaria em torno de um pingado grande, servido em copo reaproveitado de requeijão, e acompanhado de um pão francês que trazia um ovo frito como recheio. Um sanduíche de ovo.
— Hora de papar, repetia com o sorriso de costume e que lhe dava a ver os dois ou três únicos dentes.

Uma vez encontrei-me com ele no supermercado. Lembro-me que carregava um fardo de rolos de papel higiênico, e com andar muito lento caminhava na saída para um dos caixas.
— Um pouco sempre tem que gastar, disse-me.
O dono da padaria também registrou presença naquela manhã, assim como o gerente do supermercado. O episódio abriu oportunidade para ações de marketing.

Na grande maioria das vezes sentava em cadeira de alumínio — que lembrava aquelas de praia — que ficava na área externa da entrada de sua casa. Ali ficava a maior parte do dia. Um tipo inconfundível: magro, estatura média, muitos cabelos, brancos e emplastados por gordura natural ou artificial. Talvez por um pouco de cada. Um homem branco, euro descendente e de olhos acinzentados.

Eu nunca tinha visto tamanho movimento na rua como naquele sábado. O entra e sai de curiosos na casa do velho Ary certamente era maior do que o de um museu de arte. Romaria para visitação, com direito a fila e disciplina de fluxo para entrada e saída. O sobrinho teria feito dinheiro se cobrado ingresso. A concentração era tamanha que um pipoqueiro estacionou seu carrinho sobre a calçada. Tinha até pipoca com queijo. Notei que havia gente de fora quando dois estranhos apareceram no meu portão perguntando se podiam usar meu banheiro. O azar de ser vizinho muito próximo ao local da tragédia me tornava uma espécie de fonte para informações fartas e confiáveis. Só faltou um cordel alusivo ao episódio:

Vou contar com precisão
Para quem quer a verdade
Sobre a vida e sobre a morte
De um homem sem vaidade
Foi grande guardião do bem
E viveu com lealdade

Desprovido de sensibilidade para as sutilezas, pobre adora emoções contrastadas: tragédias soterradas por mistérios e romances afogados por água açucarada.
Certamente se tratava de um homem simples, mas dotado de certa elegância. Falei com ele demoradamente apenas uma vez. Pediu-me um pequeno favor. Foi quando os canais
A TV
Ilustração de Maristela Bleggi Tomasini
da TV aberta não mais seriam acessados por antena VHF, obrigando usuários de TV analógica a que instalassem decodificador e antena digital. Como também eu havia recém migrado, soube dizer-lhe até o preço dos equipamentos, mas sugeri que perguntasse antes para algum técnico a fim de certificar-se dessa possibilidade em seu televisor. Recomendei que avaliasse a conveniência de comprar uma TV digital, mas disse-me que a mãe não aprovaria a aquisição. A mãe? Não imaginei que pudesse ter mãe ainda com vida.

Meses depois estava eu na calçada com um dos vizinhos, quando notei que a casa do velho Ary continuava com a mesma antena VHF e comentei a conversa próxima passada.
— Mãe? Exclamou o vizinho com ar de discreta zombaria de minha ignorância. A mãe dele morreu faz tempo. Pelo menos trinta anos, concluiu.
Fiquei quieto e me esforcei para não demonstrar perplexidade. O vizinho foi delicado e nada disse além daquilo. Creio que essa foi a primeira informação que obtive sobre a vida do velho Ary. Outras poucas foram surgindo ao longo do dia e sempre de forma incidental.
Soube, em outra ocasião, que fora o alfaiate do bairro, e que herdara a alfaiataria do velho Giacomo, italiano que fizera nome nas redondezas. Ary foi seu empregado por décadas. Dizem que seu único emprego, onde começara ainda adolescente como ajudante, e assim até aprender a arte do ofício. Com o passar do tempo, porém, fechou as portas da pequena alfaiataria. A chegada das lojas de roupas feitas determinou o fim da era dos alfaiates. Foram-se, assim como relojoeiros, ourives, sapateiros e tantas outras profissões “de ofício”. Parece que o velho Ary foi o último a baixar as portas. 

Essa informação explicava o fato de ele estar sempre vestido de camisa social branca de mangas longas, paletó e calça de cor azul claro, sapatos sociais e meias de cores escuras combinando com o calçado. Roupas com corte e tecidos de boa qualidade. Só não vestia terno pela ausência de gravata. Vinha dai, portanto, a elegância no trajar, embora as roupas fossem poucas e estivessem puídas. Elegância, inclusive, nos modos e nos gestos, embora visivelmente judiado pela falta de algum dinheiro. Um banho com shampoo, bom sabonete, barbeiro e finalizado por roupas melhor conservadas, dariam ao velho Ary um aspecto melhor, embora, certamente, ele não estivesse com isso preocupado. Ele tinha certa altivez. Parece que disso tinha consciência e com isso estava satisfeito. Vivia para si e não para os outros.

A velha casa
Ilustração de Maristela Bleggi Tomasini
A sua casa, antiga no estilo, nos materiais e nas técnicas construtivas devia ser ainda original, e do tempo que o bairro foi ocupado por imigrantes italianos e armênios no início do século passado. Isso ficava claro pelos nomes das ruas e avenidas. O pai deve ter sido operário italiano que trabalhava na ferrovia ou nas fábricas da cidade, hoje tornada parte da Grande São Paulo, e o bairro uma área residencial perto do centro. Os terrenos eram imensos e foram sendo fatiados pelos filhos na medida em que se casavam. O de Ary, por exemplo, devia ser um quarto do que um dia fora a totalidade, e os outros três quartos ocupados por construções modernas. Nessa medida, a casa de Ary era verdadeiramente um mergulho na memória do bairro. Não tinha valor arquitetônico, pois apenas uma casa comum de operário de periferia.

A movimentação na rua aumentava. Agora, além de pipoqueiro havia também um carrinho de sorvetes. O aglomerado atraia mais pessoas e a massa aumentava em volume.
— O que está acontecendo, hein?
Interessante era ver e ouvir o que um ignorante dos fatos informava a outros.
— Um homem se matou na casa com tiro na cabeça.
— Um sujeito matou a mulher e depois se enforcou.
— Um homem matou a mulher e os filhos.

Os recém-informados compartilhavam as notícias pelo WhatsApp. Aliás, junto com Facebook um aplicativo perfeito para o uso desse tipo de gente.
Não havia mais onde estacionar, nem mesmo nas ruas próximas. Os equipamentos de vídeo dos celulares funcionavam a todo vapor. Não faltou nem mesmo a reportagem da TV local, e tampouco os dispostos a conceder entrevistas, ainda que nada soubessem.
— Era uma pessoa querida por todos, declarou uma mulher à reportagem, depois de passar um pente pelos cabelos e um batonzinho básico, naturalmente. Detalhe: os vizinhos não sabiam quem era a mulher.

Patética foi a batalha pela propriedade da alma do velho Ary. Primeiro chegou o padre da paróquia próxima, ladeado por algumas fiéis. O pobre homem nem mesmo sabia ao certo o que havia ocorrido:
— Onde está o corpo?
Um pouco melhor informado entrou na casa e fez a curta peregrinação dos curiosos. Em seguida chegaram os pastores, facilmente reconhecidos pelos ternos baratos, sempre de um número menor, pela bíblia na mão e pela empáfia de quem pretende demonstrar intimidade com o altíssimo. Cinco pastores, cada qual representando as denominações presentes na praça. Bizarro ninguém saber da religião do morto. Aliás, nem mesmo se tinha religião. Definitivamente, aquilo havia se transformado em circo. Talvez em hospício.

Conheci o sobrinho quando bateu em minha porta pedindo para usar meu banheiro. Afinal, a casa do tio tinha sido invadida. Explicou minha escolha pelo fato de eu morar só e estar rente à casa do falecido.
— Claro que sim, respondi. O senhor deve estar exausto com esse entra e ai de pessoas.
Enquanto usava o banheiro fiz um pouco de café e deixei em bandeja junto com água. Ao sair do sanitário pedi para que sentasse em uma poltrona e se servisse de água e café. Agradeceu e fez uso da oferta sem nenhuma cerimônia. Perguntou se eu conhecia o velho Ary.
— Só de vista.
Depois disso, e sem que eu perguntasse, passou a falar do tio. Nascera no bairro, bem como a irmã mais nova, da qual o sobrinho sentado a minha frente era filho. O pai morreu quando Ary era ainda adolescente, e ele ficou com a mãe e a irmã. Foi jovem trabalhar em alfaiataria e lá ficou até a aposentadoria por falta de fregueses. A irmã não tardou para arranjar marido para sair de casa, nela ficando apenas o velho Ary e a mãe.
Segundo o sobrinho a velha era insuportável, e esse teria sido o motivo maior para sua mãe se refugiar no casamento. 

O velho Ary
Ilustração de Maristela Bleggi Tomasini
O velho Ary, ao que parece, caiu na teia da velha manipuladora. Ele nunca teve sequer uma namorada, pois a mãe não queria para ele uma mulher, mas para ela uma criada. Ary nunca lhe deu a criada, mas passou a vida sem mulher. Eu podia imaginar os discursos:
— Amor só de mãe.
— Mãe é uma só.
Afinal, quem nunca leu essas pérolas em para-choque de caminhão ou em alguma tatuagem? Novidade, ao menos para mim, foi saber que Ary mantinha a casa do mesmo jeito que ela estava desde a morte da mãe, e à velha referir-se como se ainda estivesse viva. Havia nisso uma dose de patologia.

Descansado, e sabendo que eu nunca tinha estado na casa do velho Ruy, o sobrinho convidou-me para conhecê-la. Afinal, bastaria atravessar a rua.
— Não quero incomodar, eu disse.
— Incomodar? Perguntou o sobrinho rindo. Já não me sinto incomodado nem pelas centenas de estranhos que desde a manhã de hoje invadem a casa, concluiu.
E foi assim que, a convite, entrei pela primeira vez no espaço do velho Ary. Aliás, pelo que soube o único na condição de convidado. 

Foi estranho passar pelo portão de ferro que por teimosia se mantinha preso ao muro baixo de alvenaria, encimado por uma grade de ferro comida pela ferrugem. Foi estranho pisar naquele terreno plano que não tinha sequer um capim. Um chão árido, desértico como tudo mais no exterior da casa. O sobrinho fez questão de me acompanhar.
A casa era exatamente como eu imaginava. Afinal, também sou filho de operário e morei na infância e parte da adolescência em casa similar. Um retângulo de duas águas que abrigava dois dormitórios, uma sala de estar, e uma cozinha com espaço para mesa de refeições e que se compunha com um banheiro. Tudo isso em aproximados noventa metros quadrados. O tanque para lavagem de roupas ficava em pequena cobertura externa nos fundos, exatamente na saída da cozinha para o quintal. Um clássico da arquitetura operária da São Paulo de início até meados de século.

A construção além de sólida era saudável. O pé direito alto trazia conforto térmico, além de quantidade maior de ar em ambiente confinado. Com exceção da entrada e da área que abrigava cozinha e banheiro que ficavam por aterro acima do nível do solo, as demais dependências eram dele isoladas por assoalhos de madeira sustentados sobre caibros, evitando umidade e assegurando passagem de ar pelo que ficava sendo um porão, ainda que sem outra utilidade. As construções eram, portanto, altas em relação ao solo. Havia uma escada para subir até o piso, e outra, no fundo, para descer até o solo. A casa do velho Ruy era exatamente assim.

Subi a meia dúzia de degraus que me levou até a área de entrada. Degraus e a própria área revestidos por lajotas de cimento pigmentado, formando desenhos geométricos, e que eram comuns naquela época. Já estavam bastante desgastadas pelo uso e pela ação das intempéries. Também sujos. Dali, para a sala, uma porta de folha dupla que se abria ao meio, e também gasta. Não era de duvidar que ao longo do tempo tivesse recebido uma demão de tinta a óleo de cor cinza. Afinal, as tintas eram quase sempre poucas, assim como as cores. Todas as janelas, batentes e portas estavam no mesmo estado e, considerada a falta de manutenção, pareciam ser de madeiras de boa qualidade. O tabuado do assoalho da sala e dos dormitórios, certamente de peroba, também estava gasto e sujo, mas firme, pois não se movia ou rangia com a passagem de toda aquela gente por ele andando. No passado foi tratado com cera, mas seguramente não via esfregão, palha de aço e cera fazia muito tempo. 

Igualmente bem conservado o forro de madeira, escurecido talvez pela aplicação original de linhaça, pois era mais barata do que tinta a óleo e esmalte, se é que já existisse a última. A alvenaria consistia de tijolos grandes, assentados inteiros e revestidos por argamassa de cal e areia. Não se usava cimento. Um ou outro descascamento por onde saber que as paredes haviam sido caiadas mais de uma vez. Já foram de cor rosa, amarela, azul e por último de cor branca, embora esse nome não fizesse jus ao seu estado atual. As ferragens estavam razoavelmente conservadas, embora atacadas por oxidação.

Curiosos a meu redor expressavam suas dúvidas e certezas:
— Como o assassino podia viver nesse chiqueiro?
— Só mesmo um doente para morar nisto.
— Deve ter matado a mãe porque a coitada queria limpar esta imundice.
— Tenho certeza de que a mãe deu boa educação para esse animal.
— Mas ele matou a mãe ou a esposa?
Eu e o sobrinho do velho trocávamos sorrisos discretos, mas nada dizíamos. Afinal, o que dizer daquele surrealismo? Tudo aquilo era patético, mas muito pedagógico, ao menos para mim que aprendia mais sobre as ilimitadas fronteiras do moralismo e justiceirismo presentes na mentalidade dos imbecis. Afinal, acreditam ser importante opinarem sobre tudo, inclusive sobre o que desconhecem. Quando nos afastamos um pouco dos intrusos eu disse em voz baixa ao sobrinho do velho:
— A história está ficando cada vez mais escabrosa com a passagem dos minutos.
Ele concordou com movimento de cabeça.

A casa era literalmente um retorno ao passado. Os objetos internos eram todos muito velhos, e estavam degradados. Fossem para algum depósito de lixo e teriam melhor destino. Nada que prestasse para uso ou mesmo para decoração. Objetos de segunda categoria mesmo quando novos e comprados de algum mascate que servia o bairro com vendas a prestação. Lembro-me do tipo ainda em minha infância: o turco.
Na sala um sofá e uma poltrona revestidos de courvin, o couro dos pobres, material moderno para a época, além de prático, econômico e funcional. Os tecidos estavam rasgados, rotos, descoloridos e sujos, deixando o estofado à mostra em vários lugares. Certamente ainda em uso, pois os pés de madeira que haviam se quebrado foram substituídos por alguns tijolos empilhados uns sobre os outros, tendo à frente o televisor de tubo, à válvula, dentro de um gabinete de madeira revestido de laminado de cerejeira. Ainda que funcionasse, não poderia ser convertido para nenhuma tecnologia digital. 

Também na sala, um rádio valvulado com três faixas de onda, igualmente instalado dentro de um gabinete. Possivelmente funcionando, pois o cabo de energia se encontrava ligado. No centro do teto o que um dia foi um pequeno lustre, e com uma lâmpada.
Fiquei imaginando o velho Ary sentado na poltrona que parecia a mais usada, com a perna direita repousando sobre o joelho esquerdo, assistindo TV ou ouvindo rádio.
Quando me perguntou pelo conversor digital, disse que na TV tinha interesse apenas em jogos de futebol. Talvez gostasse de rádio. Eu não teria como saber, mas ficou-me a fantasia dele sentado ouvindo programas de emissoras AM. Enquanto eu imaginava, os invasores tudo fotografavam com seus celulares, inclusive com direito a selfie com poses. Bem, ao menos até onde observei, nenhum deles deixou parede pichada: “Zé esteve aqui”. Eu não duvidaria.

O quarto da frente parecia ter sido o aposento da mãe. Nele uma cama patente, tal como ficou conhecida a cama tubular metálica com estrado fixo, de molas, inicialmente criada para uso em enfermarias de hospitais. Foi muito popular pela praticidade e resistência. Aquela, de casal, estava armada, e sobre seu estrado de molas um colchão de palha enrolado e amarrado com barbante grosso. Fazia tempo que estava daquele jeito. Aliás, ao que eu soube possivelmente como desejo da mãe quando ainda em vida. Havia também um guarda-roupas barato, de três portas, e que estava fechado. Eram sempre iguais: duas gavetas, dois ou três maleiros, uma sapateira e porta cabides. O espelho ficava na face interna da porta do meio. Imaginei que as coisas da mãe ainda estivessem ali guardadas. Por fim um pequeno oratório, pregado na parede, com uma imagem da Menina Izildinha,
Menina Izildinha
Ilustração de Maristela Bleggi Tomasini
ladeada por dois pequenos vasos de louça barata, e cada um deles ornado por uma rosa de plástico.  Tudo sujo e empoeirado.
— Mas Menina Izildinha não é imagem santificada em Portugal? Perguntei ao sobrinho.
— Sim. Minha avó era portuguesa. Meu avô italiano.
Os intrusos adoravam fotogravar a gravura, mesmo não tendo a menor ideia de quem fosse a Menina Izildinha, também conhecida como Santa Izildinha.

O quarto da frente só poderia ser o do velho Ary. Nele também uma cama patente, agora de solteiro, com igual colchão de palha, mas com roupas de cama desarrumadas sobre ela. É onde deve ter morrido, pensei. Um guarda-roupas igual ao da mãe, mas com apenas duas portas. Também estava fechado e ao certo nele guardava alguma roupa de cama e de banho, além das poucas peças de uso pessoal. Havia também uma cadeira, e isso era tudo.

Na cozinha no fundo da casa, um fogão a gás de quatro bocas e forno, cuja mangueira já havia sido retirada e o esmaltado corroído pela ferrugem. Havia um velho refrigerador desligado, certamente com motor queimado, e que agora servia para a guarda de meia dúzia de panelas também em desuso. Uma pequena mesa muito rústica e uma cadeira, que fazia par com a que estava no dormitório do velho Ary. Sobre a tampa da pia creio que a única peça em uso na cozinha: um filtro de barro com uma caneca de alumínio lhe cobrindo a boca. O velho Ary bebia água filtrada em moringa com caneca de alumínio. Não vi pratos nem talheres. No banheiro, apenas o lavatório, o vaso sanitário também de cerâmica e um chuveiro pendurado em um cano de ferro galvanizado. Isso era tudo.
Descendo alguns degraus que se projetavam da porta dos fundos, cheguei a um tanque de cimento que parecia em desuso, e nisso se resumia o morar físico do velho Ary.

Desse dia resultou a história de Ary no bairro, e nas mais diferentes versões. Homicida, suicida, solitário, abandonado, sujo, etc. Histórias fantásticas. Não duvido que cultor do Demônio, pedófilo, e do que mais estiver em evidência nas mídias sensacionalistas. Para mim, o dia serviu apenas para reafirmar minha convicção na imbecilidade resultante das aglomerações humanas. Quanto ao velho Ary com ípsilon, com exceção do fato de se referir à mãe como se ainda estivesse viva, nada houve que mudasse meu conhecimento sobre ele. Idiossincrasias? Quem não as tem? Era um homem em paz consigo mesmo e com os outros e que se bastava com a própria companhia. Um homem que vivia para si e não para os outros, de onde a irrelevância do estado e funcionalidade das coisas à sua volta. Como sei disso? Também sou assim. Certamente ele concordaria com meu lema: “cada vez mais, menos”. 

Ele tinha mais coisas do que precisava. Sua sobrevida caberia em um quartinho com uma cama, um filtro de barro, uma caneca de alumínio, um vaso sanitário, um lavatório e um cano de água para banho. O restante era luxo, de onde não importar se fosse lixo. Sua vida, porém, não estava ao alcance do que podia ser visto e inventariado. Eu sabia quem era Ary com ípsilon, pois aprendera a observar além do que as aparências estampam para iludir os idiotas.
Com restrições financeiras e imensa simplicidade, Ary com ípsilon era um cavalheiro, e confesso que, com toda a minha idade, conheço poucos.

Rogério Centofanti


São Paulo, janeiro de 2020.