O meu coração já estava aposentado
Sem nenhuma ilusão
Tinha sido maltratado
Tudo se transformou
Sem nenhuma ilusão
Tinha sido maltratado
Tudo se transformou
Ainda Bem – Marisa Monte
Sônia morreu. Disseram que da rápida expansão do câncer do pulmão para o cérebro resultou a morte prematura de minha colega. Por ironia a descoberta do tumor coincidiu com a concessão da aposentadoria, cuja espera ela monitorava em contagem regressiva por anos. Tinha planos, muitos planos para a vida. Iria viajar para o exterior, talvez morar em uma pequena casa a beira mar, participar de cursos livres de pintura, etc. Boa parte desses planos ela poderia ter realizado a qualquer momento. Não ganhava tão mal como professora universitária, nunca se casou, não tinha filhos e morava com os pais e que tinham condição estável.
Apesar de passados mais de dez anos e não me
esqueço dessa história. Sonia deve ter sido a primeira colega da mesma idade a
morrer. Vários se aposentaram depois dela, mas nenhum ainda morreu. Quanto aos
que se retiraram da vida ativa nada sei de emocionante, embora, como Sonia,
estiveram quase sempre repletos de ideias que não se realizaram. Parece que a
aposentadoria esconde um ingrediente libertário, uma espécie de carta de
alforria. Bem, se assim fosse e seria de esperar que se tornassem
revolucionários em relação à própria vida depois da inatividade profissional,
mas não é o que costuma acontecer. A maior parte se recolhe. Diria mesmo que
encolhe.
Residindo em cidade pequena tornei-me amigo do
carteiro da localidade. Um sujeito interessante em vários aspectos, e uma
inteligência incomum naquela terra de mesmeiros, onde nenhuma conversa desvia
um milímetro das trivialidades de costume. Também cheio de planos para a
aposentadoria, embora, no caso dele, no âmbito dos negócios: produção disso e
daquilo, criação disso e daquilo. Instigante, não fosse o fato de ele ter, a
época, exatos vinte e nove anos. Perguntei a razão da espera pela
aposentadoria, e a resposta não causou estranheza: no emprego ganhava pouco,
mas era ganho certo.
Tenho notado que o princípio do “antes pouco do que
nada” e do “pinga, mas tem” não se limita ao martírio a que muita gente se
subordina durante maior parte da vida econômica ativa, de onde
essa obsessão mágica da aposentadoria como uma espécie de reparação, de
redenção, ainda que na maior parte das vezes para receber aquelas migalhas
reservadas à maioria dos nacionais. Parece que o conformismo com a redução da
renda se faz acompanhar do conformismo com a redução de expressões da vida, e
isso nem sempre se justifica. Há quem não diferencie a vida no emprego (não
confundir com trabalho) com a vida pessoal. Usa o uniforme da empresa em casa e
na vida social, e quando compra alguma roupa, com a mesma cor do uniforme.
Falta de dinheiro? Não, falta de encontro consigo própria. A pessoa é tão
comum, tão objeto, que adotou literalmente o uniforme como identidade.
Aposentar-se
diz respeito ao apartar das atividades remuneradas.
Quando nos tornamos adultos, e por isso cravada a
marca de nosso ingresso no mundo das obrigações, dos compromissos, da condução
dos próprios destinos pelo ganho do próprio sustento, também passamos por uma
primeira aposentadoria. Divorciamo-nos do que os adultos preceptores
denominaram de mundo dos sonhos, da fantasia, das brincadeiras, Ora, o que a
pouca gente ocorre é que atividades faz-de-conta eram aquelas pelas quais
ninguém pagava. Tanto é assim que aos poucos adultos que conseguiram
transformar as atividades da infância em meio de sustento não se fala de sonho,
de fantasia e de brincadeira, mas de trabalho.
Tornar-se adulto significou, na
maior parte das vezes, a migração e subordinação para a regência do que Sigmund
Freud chamou de princípio de realidade em oposição ao princípio do prazer. A
nova ludicidade estava, agora, a serviço do outro, e que em troca a esse abrir
mão de nós se mostrava disposto a pagar pela entrega desse tempo. No trabalho
somos remunerados para satisfazer os desejos ou necessidades de quem nos paga.
Nada há de novo nisso.
Encontraremos deuses representando essas fases de vida na chamada mitologia
grega, e igualmente na romana. Não gosto da expressão mitologia, pois contém o
pressuposto que o conjunto das crenças por ela estudado faz parte de um passado
tomado como ignorância das pessoas, em contraposição às crenças atuais e
tomadas como alguma forma de conhecimento. Não vejo diferença entre crenças
antigas e modernas uma vez que, em essência, continuam sendo crenças e, no meu
entender, continuam sendo mitos. Bem, não importa.
O que é Dionísio – Baco para os romanos -, senão o deus da ebriedade, da
entrega aos desejos, de uma vida guiada pelos sentidos, pelos impulsos? Muito
disso define nossa infância e não
raro nossa adolescência. Nos dedicávamos às coisas que nos davam prazer, e principalmente às atividades compostas por imaginação e sensibilidade criativa. Éramos romancistas, poetas, desenhistas, pintores, dançarinos, escultores, músicos, fotógrafos, atores e cineastas. Éramos artistas. Nos dedicávamos às fantasias. Éramos heróis, piratas, guerreiros, navegadores, exploradores, conquistadores. Éramos aventureiros. Nos dedicávamos às descobertas da natureza. Éramos colecionadores de folhas, de insetos, de pedras. Fazíamos experiências misturando elementos e ficávamos atentos às modificações de cores e odores. Em decorrência disso inventamos os incêndios, as explosões e descobrimos as respectivas dores e ferimentos, além da sensação dos muitos choques elétricos. Quantas vezes estragamos panelas, pratos, copos e provocamos a queda de disjuntores do quadro de força? Bem, riscos inerentes a todos cientistas e desbravadores. Líamos, colecionávamos selos, moedas e cartões postais. Tínhamos mapas e reportagens geográficas. Tínhamos curiosidade em relação ao mundo. Em certa medida éramos intelectuais. Mais importante do que tudo isso, entretanto, era o fato de conduzirmos nossas “brincadeiras” de acordo com as regras que nós mesmos criávamos. Também importante lembrar que brincávamos para nós, e não para os outros. Como vivíamos a brincadeira na condição de realidade dela fazíamos realidade, mas para nós, sem performance para a vista de plateias.
raro nossa adolescência. Nos dedicávamos às coisas que nos davam prazer, e principalmente às atividades compostas por imaginação e sensibilidade criativa. Éramos romancistas, poetas, desenhistas, pintores, dançarinos, escultores, músicos, fotógrafos, atores e cineastas. Éramos artistas. Nos dedicávamos às fantasias. Éramos heróis, piratas, guerreiros, navegadores, exploradores, conquistadores. Éramos aventureiros. Nos dedicávamos às descobertas da natureza. Éramos colecionadores de folhas, de insetos, de pedras. Fazíamos experiências misturando elementos e ficávamos atentos às modificações de cores e odores. Em decorrência disso inventamos os incêndios, as explosões e descobrimos as respectivas dores e ferimentos, além da sensação dos muitos choques elétricos. Quantas vezes estragamos panelas, pratos, copos e provocamos a queda de disjuntores do quadro de força? Bem, riscos inerentes a todos cientistas e desbravadores. Líamos, colecionávamos selos, moedas e cartões postais. Tínhamos mapas e reportagens geográficas. Tínhamos curiosidade em relação ao mundo. Em certa medida éramos intelectuais. Mais importante do que tudo isso, entretanto, era o fato de conduzirmos nossas “brincadeiras” de acordo com as regras que nós mesmos criávamos. Também importante lembrar que brincávamos para nós, e não para os outros. Como vivíamos a brincadeira na condição de realidade dela fazíamos realidade, mas para nós, sem performance para a vista de plateias.
Amadoristicamente, pois sem
remuneração, ainda crianças e muitos de nós exercitava elevadas manifestações
do espírito - arte, ciência -, e o fizemos com muita intensidade. Poucos,
porém, como dissemos, conseguiram dar continuidade a essas manifestações ou
delas fazer meio de sustento. A maioria abdicou dessas atividades, e
sustentou-se com base em atividades que pouco ou nada tiveram de
espontaneidade, de viço e de prazer. A maioria dedicou-se aos esforços
repetitivos. Literalmente vendeu seu tempo para a realização de interesses dos
outros. Como o único tempo que conhecemos e temos para dispor é o tempo
existencial, pode-se dizer que vendemos parte de nossa existência, e recebemos
salário em troca disso.
Infelizmente, e para parcela
significativa da população, a vida parece ter se iniciado na fase mecânica e
repetitiva. Nem todo mundo teve infância regada pela iniciação das artes e das
ciências, ainda que pela espontaneidade do próprio espírito, e tateando pelas
trilhas do mais completo autodidatismo. Há quem nasceu sem alma, sem
imaginação, sem vontade interior de explorar pelo menos o universo próximo, no
alcance da ponta do nariz. Não estou aqui me referindo àqueles que as agruras
da vida condenaram cedo para a docilização da mente e do corpo - no dizer de
Michael Foucault -, mas visando o
próprio sustento e não raro o da família. Há quem nasceu com a sensibilidade
embotada e sem imaginação. Há quem nunca definiu regras nem mesmo para condução
de pequenos hábitos cotidianos, e isso desde a infância. Normalmente os
bonzinhos, os obedientes, as ovelhas.
Ah, mas os antigos gregos tinham deuses também para
a fase de regência da vida pelo princípio da realidade, e que serve de esteio
para as atividades profissionais. Hermes,
que os antigos
romanos conheceram como Mercúrio, é um deles. Ele é o mensageiro dos deuses, Um intermediário, portanto, facilitador ou realizador do desejo de outros, de onde seu emprego simbólico no comércio, principalmente pelo caduceu que empunha, mas também pelas asas nas sandálias e no elmo, e que indicam a velocidade de suas ações ao longo dos caminhos que percorre. Em boa medida essa é a descrição de um trabalhador comum. Sempre correndo, levando e trazendo mensagens que contém elementos que ao fim e ao cabo satisfazem desejos de terceiros envolvidos nas atividades. Essa é a realidade na qual se estabelecem as relações de trabalho. Realidade, aliás, cujos parâmetros são definidos pelos mandarins das normas sociais e econômicas de nossas vidas individual e coletiva. Uma realidade definida como tal e que se dá independentemente de nosso desejo. Ao período anterior, como dito, e repleto de riquezas criativas, mas sem valor de troca, chama-se de mundo de fantasias, de sonhos, de faz-de-conta, mundo mágico das crianças. Desse mundo não se aposenta, mas se abdica, se renuncia em nome da realidade, isto é, da sujeição às normas, valores, pensamentos, sentimentos e ações que tenham valor de consumo, valor de troca no mercado de trabalho, em especial nas sociedades industriais, como insistia Herbert Marcuse. O homem precisou alienar de si para transformar-se pela racionalidade utilitária em mercadoria. É dessa realidade que ele se aposenta, mas como se esqueceu de como foi – se é que um dia o foi -, fica à margem de tudo, pois absolutamente desprovido de “utilidade”. Torna-se literalmente um “inútil”. Mais do que ser reprimido e domado pela realidade, o adulto sujeitou-se ao que denomino de mais-repressão da realidade, isto é, a uma lavagem ideológica que o convence da inadequação intelectual, sensitiva e ativa do período juvenil. A criatura acredita que “evoluiu”.
romanos conheceram como Mercúrio, é um deles. Ele é o mensageiro dos deuses, Um intermediário, portanto, facilitador ou realizador do desejo de outros, de onde seu emprego simbólico no comércio, principalmente pelo caduceu que empunha, mas também pelas asas nas sandálias e no elmo, e que indicam a velocidade de suas ações ao longo dos caminhos que percorre. Em boa medida essa é a descrição de um trabalhador comum. Sempre correndo, levando e trazendo mensagens que contém elementos que ao fim e ao cabo satisfazem desejos de terceiros envolvidos nas atividades. Essa é a realidade na qual se estabelecem as relações de trabalho. Realidade, aliás, cujos parâmetros são definidos pelos mandarins das normas sociais e econômicas de nossas vidas individual e coletiva. Uma realidade definida como tal e que se dá independentemente de nosso desejo. Ao período anterior, como dito, e repleto de riquezas criativas, mas sem valor de troca, chama-se de mundo de fantasias, de sonhos, de faz-de-conta, mundo mágico das crianças. Desse mundo não se aposenta, mas se abdica, se renuncia em nome da realidade, isto é, da sujeição às normas, valores, pensamentos, sentimentos e ações que tenham valor de consumo, valor de troca no mercado de trabalho, em especial nas sociedades industriais, como insistia Herbert Marcuse. O homem precisou alienar de si para transformar-se pela racionalidade utilitária em mercadoria. É dessa realidade que ele se aposenta, mas como se esqueceu de como foi – se é que um dia o foi -, fica à margem de tudo, pois absolutamente desprovido de “utilidade”. Torna-se literalmente um “inútil”. Mais do que ser reprimido e domado pela realidade, o adulto sujeitou-se ao que denomino de mais-repressão da realidade, isto é, a uma lavagem ideológica que o convence da inadequação intelectual, sensitiva e ativa do período juvenil. A criatura acredita que “evoluiu”.
Interessante nos dias atuais é observar que os
ilusionistas de plantão falam em sonhos como se eles tivessem algum poder
mágico em tempos de utilidade operatória. Quem se der ao trabalho de ouvi-los
notará o desejo de fazerem crer que a realização – operação de tornar real
alguma coisa, - depende mais da capacidade de sonhar do que da manipulação dos
elementos tomados como valor pela sociedade industrial. Também verdadeiro,
logicamente, na indústria cultural, movida pela propaganda. Esses vendedores de
ilusões falam no sonhar como uma “evolução”. Não lhes passa pela cabeça que
possa ser uma “involução”. Sonho tornado realidade se deu em nossa infância e o
tempo todo. Fomos imbatíveis nessa capacidade, e não precisamos de ninguém para
nos ensinar. Na maior parte das vezes os adultos atrapalhavam.
Não bastasse isso e a constatação
bizarra que até a ideia de sonhos vendida pelos prestidigitadores encontrados
aos montes no mercado não vai além de um elenco de idealizações ao alcance dos
bolsos daqueles dispostos a por elas pagar. Para dizer de outra maneira, além
de comprar a ideia de que deve sonhar a criatura ainda compra sonhos
prêt-à-porter a partir de uma lista deles, como se de um catálogo. São
invariavelmente os mesmos: mesmos objetos, viagens para os mesmos lugares,
mesmas “realizações”, etc. Na juventude algumas dessas
criaturas costumavam ser ao menos mais criativas. Não a maioria, entretanto,
que desde o passado não sabe criar, inventar os próprios brinquedos e nem as
próprias brincadeiras. A maioria sempre viveu em torno do que se pode comprar.
Caro ou barato, simples ou sofisticado, analógico ou digital, mas sempre pela
compra.
Fato é que, para a maioria, a aposentadoria
profissional e econômica se faz acompanhar da aposentadoria existencial. E
ainda falam em melhor idade. Para a maioria jamais será a melhor idade, ainda
que com muito dinheiro. Afinal, o que poderá com ele comprar? Perguntando
melhor: o que poderá tanto aproveitar do que com ele comprar? Afinal, sonho, encanto, fantasia, elegância, requinte,
sofisticação e outras qualidades do mundo sensível não são padrões de compra,
mas de pessoas, ambientes e relações. De gente grosseira necessariamente resultará
grosseria, e nada que o dinheiro possa amenizar. De gente imbecil
necessariamente resultará imbecilidade, e nada que o dinheiro possa amenizar.
Não se aposenta dos caracteres que definem os indivíduos, do caráter desses
indivíduos. Bobagem, portanto, quem aposta as fichas do viver na aposentadoria,
como se disso resultasse algum ganho certo. Depende da pessoa e das
circunstâncias.
A retirada da vida economicamente
ativa, portanto, em nada afeta a vida existencialmente ativa. Pode afetar o
poder de consumo, mas jamais o poder de criação, principalmente para os que na
infância e adolescência fizeram da sensibilidade criativa ferramenta de
interação e operação com o mundo interior e exterior. Afinal, algumas
capacidades podem se tornar diminuídas pelo desuso, mas nem por isso são
extintas. É como andar de bicicleta.
Pouca gente, porém, se entrega a
essa condição retrô de si mesma,
incluindo as que têm condições de resgate da idade de ouro da própria
existência. Fato é que bons escritores, atores, dançarinos, músicos, pintores,
fotógrafos, desenhistas, escultores, ceramistas, naturalistas e cientistas não
foram além da fase espontânea da juventude e lá deixaram essas qualidades, cada
vez mais raras na sociedade contemporânea.
Assim pensando me parece que quem se afasta de
atividades, remuneradas ou não, por conta de aposentadoria, o faz por decisão
própria. Afinal, exceto por alguma severa restrição física ou mental, e a
ninguém está negada a oportunidade de dar continuidade ou mesmo início a alguma
atividade, seja ela remunerada ou não. O que não cabe, e sob nenhuma
justificativa, é a pessoa aposentar de si.
Rogério Centofanti
São
Paulo, 25 de abril de 2016.