quarta-feira, 18 de maio de 2016

O império dos sentidos


Não quero seu sorriso 
Quero sua boca 

No meu rosto 
Sorrindo prá mim


Sentidos – Zélia Dunkan


Em 2014 publiquei com Maristela Bleggi Tomasini um pequeno livro comemorativo ao centenário de um episódio da História da Psicologia no Brasil, e que foi intitulado O livro dos cem anos do laboratório de psicologia experimental da escola normal secundária de São Paulo – 1914-2014. Um dos assuntos da pequena obra é a Psicologia Escolar italiana de final do século XIX, inspirada na Psicologia de Giuseppe Sergi, e aplicada na instrução pública de São Paulo na década de 10 do século passado. Era toda ela orientada ao aprimoramento dos sentidos com base na convicção de que a interação dos organismos com a vida física e social tem por alicerce o sensualismo, isto é, o conhecimento com raiz primária nos sentidos. Nessa medida, a crença que sensibilidade é que o que há para educar. Afinal, quanto mais desenvolvidos os sentidos, maiores seriam as portas de acesso ao conhecimento. Na perspectiva evolucionista do período, o entendimento que a escola serviria de seleção artificial, aprimorando a sensibilidade daqueles que não a tiveram adequadamente desenvolvida pela seleção natural, isto é, em seus lares de origem. A inteligência e o caráter dependeriam diretamente do aperfeiçoamento, da elaboração da sensibilidade.

A isso se chamava educar, formar cidadãos, diferente de instruir, que apenas provia os indivíduos de informações. Essa diferenciação entre instruir e educar rondava o início do século passado. Na edição de 1913 de O homem medíocre, por exemplo, José Ingenieiros insistia em apontar a diferença. Não há como negar, principalmente no presente, que os medíocres nem mesmo se imaginam medíocres, e pelo fato de serem informados. Medíocres informados.

De acordo com os reformadores italianos, em especial com Giuseppe Sergi, a experiência – a empiria – seria melhormente aproveitada em organismos dotados de alta elaboração dos sentidos: audição, olfato, paladar, visão e tato. Disso resultaria mais tarde, nos humanos, a predisposição para os prazeres do exercício do intelecto, dos sentimentos, da imaginação, e das emoções no envolvimento com atividades dessa natureza. Essas ausências nos medíocres, pela perspectiva de Ingenieros, é que permitia diferenciar educados e instruídos.


Terminado o ano letivo media-se comparativamente o desenvolvimento sensorial em relação ao ano anterior. Os conteúdos das aulas deveriam resultar no aprimoramento dos sentidos, e os que a isso não tivessem se prestado, de pouco ou nada contribuíram na formação do indivíduo, motivo de serem descartados no próximo período letivo.

Isso pode parecer estranho em nossos dias, mas a observação do cotidiano apresenta elementos que parecem corroborar com essas ideias. Pessoas que sentem prazer no exercício do intelecto, dos sentimentos e da imaginação costumam ser sensorialmente elaboradas. São dotadas de inquietude interior, como se saciando fome ou sede com tais exercícios. Isso nada tem a ver com condição econômica, com gênero, classe social ou mesmo com grau de escolaridade, mas com gosto para ideias e outras expressões de criatividade. Pessoas intuitivas, na maior parte das vezes, pois atentas e respeitosas aos sinais que chegam aos terminais dos próprios sentidos internos e externos. Ah, sim: o objetivo da instrução pública – necessário lembrar - era formar intelectuais, cientistas e artistas, na esperança que disso resultasse um povo civilizado, e não um povo meramente instruído, informado, como hoje.

De fato, o trabalho intelectual, entendido como aquele que representa a manifestação criativa de ideias, envolve busca de elementos que alimentem o cadinho mental - com ingrediente afetivo -, e de alinhamento e liga entre eles. Contém um severo cuidado com a escolha de conceitos, do vocabulário e emprego das regras do bem falar - mas principalmente do bem escrever -, duas habilidades diferentes entre si. Afinal, do processo nascido da inquietude dos sentidos internos e externos, e tornado motivo inicial de uma ação da mente, resultará uma obra, um trabalho, um trabalho de si. Talvez um trabalho para si, isto é, que resultará em alguma modificação na forma desse produtor de si enxergar e interagir na relação com pessoas e as coisas. Convenhamos: um saber que nada promova no conhecedor foi para ele irrelevante, de onde a superficialidade das informações no que diz respeito à educação, isso é, na elaboração de si.

O trabalho intelectual exige a presença de sentimentos e também de imaginação. Pensamentos, sentimentos, imaginação e linguagem. Não é diferente com o trabalho científico, uma modalidade intelectual incluída da empiria metodológica, mas também dotado em maior ou menor grau de afetividade, pois promove no pesquisador uma gama de emoções. Também não há trabalho artístico sem dose de conhecimentos específicos, de empiria e, nesse caso, com primazia da afetividade.

A negligência com a sensibilidade, para os teóricos da escola italiana, seria a razão de pouca gente se interessar pelo empenho intelectual, científico e artístico. Não gosta, não saboreia, não sente atração por tais atividades. Aprecia informações uma vez que elas aplacam curiosidade em relação ao mundo exterior e têm aparência de saber. De fato: de maneira geral as pessoas se contentam com informações, pois elas facilitam o exercício do opinionismo com alicerce no senso comum e no bom senso, mas poucos se empenham na elaboração de ideias e na transformação delas em algum produto final digno de nota – em pensamento conceitual que molde ou altere a percepção de si, dos outros e do mundo. Eis o medíocre informado em atividade.

Pensar requer esforços e pelo menos um pouco de método. É um trabalho. Não é diferente com nenhuma outra atividade do espírito humano: filosofia, ciência e arte. As pessoas sobrevivem sem isso, verdade, motivo de se contentarem com o que é raso, superficial, confuso, e até mesmo com o que não tem para elas nenhum sentido ou significado. Mesmo o banal contém, na linguagem e nos modos, algo que denuncia a presença de um mínimo de pensamento e de afetividade, o que pode gerar nos despreparados a impressão de que estão diante de algo que se assemelhe a conhecimento.

Desnecessário dizer que a Psicologia de que estamos falando ficou no passado. A vida prática mudou o eixo da instrução – pois mudou a concepção de homem -, que para atender as novas necessidades sociais tornou-se operatória, racional. Foi-se o desejo de educar, embora instrução pública tenha ironicamente mudado de nome: educação pública. Não surpreende, portanto, encontrar nos dias de hoje gente que se intitula especialista falando em amor inteligente, amor regido pelo princípio da racionalidade utilitária. Amor útil, prático, operacional, e com direito a receituário ou guia prático para alcance do que anunciam como promessa de sucesso, seja lá o que isso signifique. Gurus de um amor desprovido de sensações, de sentimentos. O viver afetivo tornou-se produto de regramentos lógicos que visam conquista ou manutenção da relação social e econômica entre as pessoas. Afetividade útil. Não é Psicologia, certamente, mas se apresenta como tal.


O conceito de caráter migrou para o de personalidade, e a inteligência passou a ser compreendida como capacidade de resolver problemas pelo exercício da lógica, de onde essa ideia abjeta de amor inteligente, por exemplo. Falam de lógica como se existe uma lógica universal. Não existe. Lógica é o que se diz do cumprimento dos ritos internos de um dado pensamento ou atividade.

Perdeu-se a dimensão da vida enquanto produto e ao mesmo tempo como reprodutora de uma tridimensionalidade dinâmica - a vida intelectual, afetiva e ativa – como defendida por Waclaw Radecki, personagem da História da Psicologia no Brasil e criador, em 1930, e não por acaso, do que chamou de “discriminacionismo afetivo”, isto é, da relação perceptiva do organismo com o mundo físico e social com permeio da afetividade. E há quem imagine ser criação recente o que se resolveu denominar de inteligência emocional. Inteligência sem emoção é um conceito tão vazio quando o de amor inteligente, mas ninguém reflete sobre o significado dessas palavras, ninguém questiona. Adota-se, como tudo que é moda, até o surgimento de uma nova moda.

A racionalidade operatória tornou-se a Psicologia substituta a partir dos anos 30. Quem desconhece os testes de inteligência, o tal QI? Havia teste para tudo. Foi uma péssima Psicologia, pois não continha nenhuma visão e tampouco projeto de homem.

Não há hoje outra Psicologia que não seja a visão distorcida que ela é ferramenta de disciplina individual e coletiva do corpo e do espírito. De conteúdo moralista tornou-se legitimadora do chamado politicamente correto. De ciência empírica migrou para a condição de ciência política. Aliás, nem mesmo ciência, mas apenas política. É essa a razão do surgimento de tantos alternativos que se anunciam como especialistas comportamentais, uma vez que nada precisam saber que não seja a tendência da moralidade em voga, da lógica interna dessa moralidade. Também um dos motivos de tantas psicologias místicas, exotéricas e religiosas, que apontam o caminho da transcendência como condição para o alcance da pureza espiritual, em oposição à inferioridade do hedonismo corpóreo. Gente sem corpo. Disso tudo resulta a imensa pobreza instalada no lugar do que poderia ser a conversão, nos indivíduos, da sensibilidade aprimorada em ganho estético, imaginativo e intelectual, três qualidades cada vez mais raras nas pessoas.


Em 2015 aventurei-me na tentativa de escrever meu primeiro ensaio literário. A temática minha própria velhice. Meio fantasia e meio realidade, o ensaio diz de um velho que mora só, e de como vai experimentando a condição desse viver na idade contemporânea ao ensaio. O autor chama atenção, na própria velhice, para o declínio dos sentidos e suas consequências.

Não há como negar: não melhora a audição, a visão, o paladar, o olfato e o tato. Cada vez mais a recorrência à memória afetiva do viço que um dia esses sentidos representaram na vida de todos. Por outro lado, no ensaio, o reconhecimento que a vida superior dos sentidos – intelectualidade, ciência e arte –, preserva vigor com o passar do tempo. Afinal, tempo em si não agrega nada, mas mesmo com limitações biológicas os organismos preservam e até mesmo aprimoram habilidades superiores do espírito, para quem desenvolveu tais habilidades, naturalmente. Bem, eu escrevia sobre isso em 2015, a partir de reflexões sobre as sensações, instrução e educação, ainda influenciado pelo que havia estudado e publicado em 2014.

Um mal estar, porém, fez com que deixasse o ensaio de lado. Uma sinusite não se curou em seis meses de tratamento. Não iria mesmo curar-se, pois passou um semestre para descobrirem que se tratava de um câncer. Se durante os seis meses de “sinusite” eu perdi temporariamente o olfato, com a remoção do tumor o perdi de forma definitiva. Perdi também o olho direito, parte da audição do ouvido direito, e até mesmo parte do lado direito da face. Fiquei também com mobilidade comprometida, pois removeram pedaços de músculos de minhas coxas para cobrir o buraco que a cirurgia de remoção do tumor deixou-me na face. Com esse buraco foi-se também parte dos nervos faciais que permitem o controle voluntário dos movimentos do lábio superior direito. Boca torta, portanto.

Quando pensei que nada de pior pudesse acontecer eis que estava enganado. Durante as muitas sessões de radioterapia perdi completamente o paladar, e as narinas ficaram obstruídas como quando da fase da “sinusite”. Dor na garganta para engolir, foi-se a saliva e surgiram feridas na boca. Perdi barba e cabelos no lado exposto à radiação, e a pele queimou-se na mesma região. Os médicos se dividem quanto ao que está por vir. A perda de paladar, e que mais me aborrece, não voltará na opinião de alguns, voltará com restrições na opinião de outros, e à normalidade ao longo de meses na opinião de um terceiro grupo. Sem paladar fiz da alimentação um dever de ofício que, atividade desacompanhada de prazer, está me fazendo perder peso. Não posso experimentar a alegria de abrir ao menos um pequeno pacote de biscoitos. Alimentar-se está para mim como um livro para o preguiçoso de espírito, e como uma obra de arte para as criaturas desprovidas de capacidade contemplativa.

Por que dizer isso tudo? Certamente que não para reclamar, menos ainda para angariar algum tipo de compaixão, mas para dizer de uma descoberta diante desta fatalidade, e justamente na trajetória de meus estudos e questionamentos sobre as sensações, instrução e educação. A especulação tornou-se elemento de vivência na realidade.

Não houve comprometimento cognitivo e nem afetivo, felizmente. Difícil está sendo conviver com a limitação das sensações primárias, de onde compreender a importância que têm em nossas vidas, ou ao menos na minha.

Sinto falta do paladar - que parece ser minha sensação básica -, em torno do qual as demais sensações parecem gravitar. Vivo muito bem com um olho, com um ouvido, com o andar inseguro e trôpego, sem saliva, sem olfato, com dor na garganta, respirando apenas pela boca, mas não consigo imaginar a vida sem paladar, a vida sem sabor. Isso parece afetar-me no plano concreto, mas igualmente no figurado. Vida sem sabor. Vida insossa. Frases que não escondem um significado assustador.

Desespera passar diante de um restaurante e saber que todos os pratos nele servidos são iguais no sabor do nada. Do nada. É igual com sorveteria, padaria, lanchonete, cafeteria, doceria e, de forma ainda mais extravagante, com açougue e supermercado. A memória “sabe” do sabor da maioria das coisas expostas ou servidas nesses lugares, mas um saber que não pode ser revivido, experimentado mais uma vez. É angustiante.

Nada. Esse é o nome correto para o sabor de uma manga madura, um queijo, uma laranja, uma feijoada, um pudim, um refrigerante, um café, um sorvete, um nabo, uma cenoura, um pão, mas também uma barra de sabão e um detergente.

Desesperador quando diante da diversidade ou das sutilezas: temperos, condimentos, vinhos, queijos, peixes, pães, etc. É estar diante da mais completa ausência de promessa de praz  Por que não lamentar tanto, por exemplo, a perda de olfato, e que será definitiva? O fato de ser fumante por muitas décadas fez com que eu fosse aos poucos perdendo a capacidade olfativa. Já não contava com bom olfato fazia tempo. Não só por isso, porém. A infância não transcorreu em meio a cheiros. Nem flores e nem perfumes. A seleção “natural”, portanto, não desenvolveu. Também não favoreceu o desenvolvimento dos demais sentidos, mas esses foram bem trabalhados pela seleção "artificial", isto é, por influência de terceiros, de outros significativos ao longo da vida, além, é claro, das próprias iniciativas. Foi exatamente como nos ensinou a velha Psicologia de Sergi.

Percebo que um único olho permite admirar cores, formas e movimentos. Da mesma forma um único ouvido permite diferenciar sons e ruídos. O belo e o inteligente, representados ao mesmo tempo no interior, não são afetados pela perda de um olho e de um ouvido.

Mesmo com a perda parcial da visão e da audição consigo apreciar o que me dá prazer, e apesar desses limites bem conduzir a vida cognitiva, afetiva e imaginativa. Continua sendo agradável ver e ouvir pessoas que trazem o prazer de suas presenças, ainda que virtuais. Por outro lado, continua sendo desagradável ver e ouvir as que incomodam com suas presenças desmerecidas como flores artificiais ou pássaros empalhados. Gente amorfa ou com forma padronizada é mesmo um desgaste.

Já não posso dizer o mesmo do paladar, embora com aspectos instigantes. Interessante observar que mesmo sem sentir prazer em comer e beber não perdi a noção do valor sensorial das coisas. Mesmo sem o prazer de degustar ainda sei identificar, pela memória afetiva, o que é dotado de riqueza de sabores, e que se faz denunciar até mesmo pela cor e forma, lembrando que o comer tem para os elaborados grande importância de ordem estética. O desprazer com alimentos agora sem sabor, entretanto, acentuou minha intolerância com a presença de pessoas sem sabor. Gente insossa na forma e no conteúdo está sendo mais insuportável do que de costume. A ausência biológica da sensação de sabor passa a requerer algum tipo de compensação. Que o prazer oriundo desse sentido seja possível por outro, ainda que figurativamente.

No geral, entretanto, mesmo sem prazer na instância primária de um ou outro sentido, não perdi o prazer na instância superior deles. Sinto o “cheiro” e “gosto” de boas ideias, de bons textos, boas músicas, e da presença de pessoas que merecem apreciação. Prazer em leitura, na escrita, no diálogo inteligente e nos encontros educados. Prazer quando diante de inteligência sensível e do belo, na verdade duas manifestações de uma mesma ordem: estética.

Ampliou minha intolerância com o que representa aspereza aos sentidos restantes: burrice, ignorância, humor grotesco, músicas bregas, gente invasiva e enxerida, fala mole, atitudes sonsas, etc. Em resumo: não consigo mais tolerar pessoas que não avançam além do emprego primitivo e primário de suas sensações, e que pouco ou nada fazem por meio delas para aprimorar a própria humanidade. Mais intolerante do que essas são as sublimadas, as desprovidas de sentidos, e que mais parecem zumbis vagando pela vida. A essas pessoas todas não é possível identidade com alguma superioridade mental e afetiva em relação a si mesmas. Elas são apenas o que nasceram sendo, e produto exclusivo – como diriam os velhos evolucionistas – da seleção natural. Gente que talvez se instrua, mas não se educa. Não sem razão reclamam a necessidade da ética – regramentos religiosos e sociais -, pois absolutamente desprovidos de estética. Estética? Quando muito a manifestação extraída e decorada de algum receituário de boas maneiras contido nas páginas de um velho almanaque de farmácia.

Eu devia ter investido ainda mais em meu desenvolvimento intelectual e imaginativo, nessas dimensões superiores de minha vida. Estaria enfrentando ainda melhor os atuais dias difíceis, e talvez manifestando melhor capacidade para refletir sobre eles. Afinal, ao fim e ao cabo é o que fica, é o que conta. De resto, o reconhecimento que não há como saber qual será o futuro do atual tratamento. Bem, tampouco da vida.

Rogério Centofanti


São Paulo, maio de 2016