domingo, 20 de maio de 2018

Bartolomeu e os felinos


Me alimentaram
Me acariciaram
Me aliciaram
Me acostumaram

História de uma gata – Chico Buarque de Holanda

Bartolomeu era do tempo que cachorro não era pet, era cachorro, e costumava ser chamado de Lulu, Bilu, Duque, Totó, e de outros nomes reservados aos cães. Tempo que seria um sacrilégio chamá-los pelo nome de gente, como, por exemplo, Bartolomeu, fato de que ele já tivera conhecimento. Quando criança também ele teve o seu, Lulu, um peludo marrom e branco muito bonito. A época não havia essa coisa de raças, e cães eram apenas os que tinham donos e os de rua, abandonados. Os primeiros eram classificados de duas maneiras: os bem cuidados – lavados de vez em quando e com poucas pulgas – e os descuidados – que nunca eram banhados e viviam repletos de pulgas. Banho costumava ser no tanque para os pequenos, e na mangueira para os grandes.

Em quase todas as casas havia um cão solto no quintal, que dormia fora de casa, com a finalidade de guardar, ainda que apenas latindo para estranhos. Tinham coleira para que pudessem ser presos a cabos ou correntes, mas não para serem conduzidos nas ruas com o que hoje chamam de guia. Eram poucos os chamados “cachorrinhos de madame”: pequinês e poodle, na maioria das vezes. Chatos, chatíssimos. Também não existia petshop, ração, shampoo, e muito menos brinquedos, utensílios e roupas para cachorros. Viviam dos restos da comida das pessoas da casa ou, na melhor das hipóteses, de alguma feita para eles – arroz quebrado, carne de segunda moída e osso. Veterinários entravam em ação apenas quando de grandes acidentes ou de doenças que não se curavam espontaneamente com o passar de poucos dias.

Foi e continuava sendo difícil para ele se acostumar com a ideia de programas de TV específicos para donos de cães, de uma imensa variedade de rações, complementos alimentares em maior quantidade e preço do que para humanos, roupas, desfiles caninos, e um monte de raças, cuja preferência dependia da moda em vigor: a raça canina do momento. Achou adequada a lei que pune maus tratos aos animais, mas não entendeu quando lhe falaram sobre adoção responsável, isto é, sobre o fato de quem resolve adotar um cão ter que assinar um termo de responsabilidade.

- Puxa! Estão adotando criança?

Em seu tempo as pessoas doavam ou matavam as crias. Saia-se perguntando quem queria um filhote. Como preferiam os machos, as fêmeas costumavam ir para o sacrifício. Era assim, mas ele não cogitava contar isso para ninguém, nem em caráter de curiosidade, na certeza de que seria olhado como um monstro. Já não duvidava de mais nada no tempo do politicamente correto. Mas era assim, e a ninguém ocorria, no passado, que pudesse ser de outra forma.

Também praticou, na infância e parte da adolescência, a caça e engaiolamento de pássaros. Fez até viveiro com alguns pedaços de madeira, telhas e tela fina de arame, onde guardava os pássaros que caçava com alçapão. Coleirinhas, sabiás, pintassilgos, bicos-de-lacre, canários da terra e tantos outros que revoavam os terrenos baldios dos bairros periféricos. Sim, e aos montes. Como muita gente criava pássaros, era fácil encontrar para compra sementes de alpiste, painço, girassol e cânhamo. Cânhamo, soube-se depois, era semente de maconha, e foi retirado do mercado.

- Ah, vai ver que era por isso que o pássaro cantava, lhe ocorreu.

Mesmo assim, deu razão aos que criaram a lei que proibiu a captura e comercialização de animais silvestres. De fato, para que prender pássaros? Pássaros, aliás, que não mais se encontravam aos bandos nem mesmo nos campos das cidades do interior. Adquiriu o que se pode modernamente chamar de consciência ecológica, a ponto de não ter migrado – como muitos fizeram – para os pássaros importados e criados em cativeiro. Não fazia proselitismo sobre isso, pois não se orgulhava do passado, embora a época não fosse crime e nem mesmo contravenção. Era prática cultural.

Já teve até mesmo peixes decorativos, daqueles vermelhos barrigudinhos, e isso antes do surgimento de aquários industrializados, termostatos, oxigenadores, etc. Fazia o próprio aquário em garrafão transparente de vidro, enchendo de água até onde pretendia fazer o corte, passando nessa linha d´água uma cordinha ou barbante grosso, depois encharcado de álcool, e finalmente incendiado. Corte perfeito. O acabamento era feito com lixa de ferro e pequeno toco de madeira.

Em resumo, gostava de bichinhos.

De todos? Não! Dentre os domésticos nunca gostou de gatos. Nunca teve nenhum. Talvez por ter sido convencido desde a infância que se trata de bicho traiçoeiro, ladrão, que não se apega ao dono, que é oportunista e outras característica que tendem a desvalorizar os bichanos, principalmente os pretos. Enquanto os cães eram santificados, os gatos eram demonizados. Além disso, para quem gostou de pássaros e peixes, gatos sempre foram considerados inimigos.

Fato é que gostava de bichos, e os bichos dele. Devia passar aos bichinhos alguma sensação de segurança. Cães se aproximavam e abanavam o rabo quando com ele cruzavam nas calçadas. Alguns o acompanhavam. Até gatos já haviam acompanhado. De qualquer forma, não se interessou por nenhum desde que passou a morar só.

- Bicho prende, dá despesas e trabalho, dizia.

Os infortúnios da vida fizeram com que fosse morar em um quarto e banheiro, dentro de um conjunto geminado de aposentos iguais, em um cortiço em bairro horizontalizado, de classe média, em próspera cidade-dormitório vizinha à capital. Cortiço em bairro de classe média? Sim! Bairro antigo, formado por terrenos de grandes medidas, onde os moradores fizeram boas casas na frente, e mais tarde aproveitaram o espaçoso quintal para transformar em cortiços. Abrigavam migrantes, na imensa maioria provenientes do Nordeste, e agora ele, talvez o único paulista branco e que morava só, em meio a vizinhos que se apinhavam nos pequenos “conjugados” com filhos, não raro irmãos, pais e agregados, mas a ninguém tinha ocorrido, até então, a ideia de ali se criar algum bicho. Nem tartaruga. Já tinha gente demais. Desavisados que transitassem pelo bairro jamais imaginariam a existência desse lado oculto, que aos poucos descobriu-se não ser nada pequeno. Descobriu-se quem, pagando aluguel de quinhentos reais por mês para ali se alojar com mulher e dois filhos, alugava por cem reais mensais uma cama com direito a banho e uso do tanque para desconhecido, normalmente também recém-chegado do Nordeste. O pobre explorando o miserável. E não se trata de favela.

Um bairro repleto de cães bem tratados, que estavam nos quintais e caminhando pelas ruas relativamente tranquilas, com ou sem guias e donos. Havia inclusive um cão branquinho, pernalta e magro, que ficava o dia todo deitado em frente ao portão de frente de um sobrado próximo. Não se mexia nem mesmo com a passagem de transeuntes que costumavam brincar com ele. Casualmente Bartolomeu encontrou de passagem o morador que saia do sobrado e perguntou se o cão lhe pertencia. Disse que não, que nem mesmo sabia de quem era, mas que ficava o dia todo esperando que a cadelinha dele viesse para a frente da casa.

- Um cachorro apaixonado. Só faltava essa.

Até mesmo os poucos moradores de rua que moravam na praça tinham seus cães. Dentro das circunstâncias, podia-se dizer que bem cuidados, bem alimentados e limpos. Contava o dono da padaria que o povo de rua pedia comida, e quando a ganhava dividia ou cedia aos cães. Primeiro os cães, e depois eles, os desabrigados. Juntavam moedas para seus cães fossem atendidos pela veterinária do bairro, e não eram poucas as vezes que se podia vê-los comprando ração ou medicamentos na bem instalada petshop que fica ao lado do banco. Eram vistos com seus cães até na caríssima loja de “estética canina” da rua principal.

Para não viver em lugar tão árido, além de perdido na pobreza, Bartolomeu havia comprado um pequeno vaso com uma vistosa muda de pimentas vermelhas e instalou na lavanderia comum, com os três tanques de roupas que dividia com mais dois vizinhos. Bem, teve que trazer o vaso para dentro de seu cafofo, pois algum vizinho simplesmente colheu as pimentas, e que ali estavam apenas para decorar. Mais tarde comprou mais dois vasinhos com folhagens, desta vez colocados no interior do quartinho. Tinha três plantas, portanto, além de cinco quadros a óleo que havia ganhado e comprado quando as vacas eram mais gordas. Tinha hábitos muito estranhos para o gosto dos demais vizinhos, que como demonstração de “sucesso” deixavam a mostra no minúsculo espaço os eletrodomésticos recém comprados. Novinhos em folha. Símbolos de que haviam “vencido” em São Paulo.

Quando saia, Bartolomeu costumava voltar no final da tarde, se deitar na cama de solteiro e dela, por meio de controles remotos, ligar a velha TV, então tornada digital pela instalação de um pequeno conversor, e correr os canais na procura de algo menos ruim, pois de bom não havia nada. Foi assim na tarde daquela sexta-feira, quando ouviu um pequeno barulho que parecia vir do interior do móvel de escritório transformado em pequeno armário, onde guardava as poucas roupas de cama e banho, e sobre o qual estava instalado o televisor. Móvel pequeno, dividido ao meio por duas portas de abrir para fora, e que fechavam a frente. O móvel era aberto na a parte traseira. Abriu a portinhola direita e nada. Mas que surpresa ao abrir a esquerda: sobre o cobertor ali guardado a espera do inverno estava uma gata preta e branca, frajola, que havia dado cria a cinco gatinhos. Ele contou mais de uma vez: cinco. A gata continuou deitada como se nada estivesse acontecendo, e os gatinhos continuaram mamando nas tetas da mãe, também como se nada estivesse acontecendo.

Sem ideia do que fazer Bartolomeu fechou novamente a portinhola com certo cuidado, sentou-se na cama, e tentou imaginar como isso poderia ter acontecido. Bem, sem tampa na parte traseira do móvel, e ficava claro que por lá ela tinha entrado e se alojado. Quanto à entrada no cafofo, apenas duas possibilidades: pelo vitrô do banheiro ou da cozinha. Devia ter entrado, se alojado, procurado um lugar que lhe apareceu adequado e parido. Mas, e agora? O que fazer?

Sexta-feira à noite e não havia o que fazer. A ideia de se desfazer da gata e dos gatinhos não lhe parecia correta, sentia-se mal apenas em pensar nessa possibilidade. Não era mais o Bartolomeu do passado. Tinha agora outra mentalidade.

No sábado pela manhã a primeira coisa que fez foi abrir a portinhola do móvel, na esperança que a gata tivesse se ido com os gatinhos. Não tinha. Estava lá com os cinco gatinhos. Ficou olhando: um preto, um branco, um tricolor, um rajado e um preto e branco. Os gatinhos ficaram de frente para ele e o tricolor deu um passo em sua direção. Sentiu-se impelido a pegar o gatinho, mas a mãe ficou de pé, bufou, arrepiou-se toda, e mostrou dentes e garras. Bartolomeu fechou novamente a porta e continuou pensando no que fazer. Não imaginou resistência, e menos ainda com agressividade.

Sem ter com quem sobre isso falar no cortiço, foi até o petshop mais próximo em busca de alguma informação que pudesse lhe dar alguma luz.

Por sorte ou azar, dependendo do ponto de vista, o atendente do petshop gostava de gatos e criava alguns deles. Bartolomeu contou a história, e o homem sugeriu que ele cuidasse dos gatinhos por um mês, tempo em que se alimentam do leite da mãe. Outro bom motivo para a sugestão era a baixíssima possibilidade de alguém se candidatar a adoção como os gatos com tão pouco tempo de vida.

- As pessoas querem adotar animais desmamados.

Bartolomeu perguntou se o atendente não ficaria com eles até que fossem adotados. A resposta foi negativa. Na melhor das hipóteses ficaria com eles para adoção depois de desmamados. Além do conselho desanimador, ele saiu da loja com um pequeno saco de ração, uma vasilha rasa para ração, outra para água, e uma espécie de bandeja de plástico, além de um saco do que parecia ser uma areia grossa, que serviriam como sanitário da gata e dos gatinhos. Tudo explicado como usar, onde ajeitar, etc.

A ideia do atendente era de que a gata não tivesse que deixar os gatinhos e sair do cafofo para comer, beber e fazer suas necessidades durante o período de amamentação, e também para que os gatinhos aprendessem pela observação o que fazer com todo esse aparato que custou um dinheiro que ele nunca imaginou um dia que iria gastar com gatos. Voltou ao cafofo com tudo bem empacotado para não levantar suspeita nos vizinhos, e começou a colocar as coisas nos lugares sugeridos pelo balconista. Aliás, dizia que assim a gata iria também se acostumar com ele, se deixar pegar, bem como os gatinhos.

A gata foi de pronto para a vasilha com água, cheirou a ração, mas não comeu, e fez uso do “banheiro”. Fez um buraco, depositou seus dejetos, e tapou.

- Puxa. Que bicho higiênico.

Ele tinha também comprado uma pequena pá de plástico, com a qual recolheria os dejetos de dois em dois dias, e colocaria em sacos plásticos muito bem fechados antes de deixados para os lixeiros, com a lembrança que o cheiro era insuportável. Isso o fez lembrar dos vizinhos, e foi ao supermercado comprar sacos de lixo muito resistentes, de plástico preto e grosso. Sua missão, agora, era manter tudo isso bem longe do conhecimento dos vizinhos.

Dai para a frente foi observar o que acontecia e manter a rotina tal como desenhada pelo rapaz do petshop. Teve que comprar diferentes marcas de ração até encontrar uma que a gata aceitasse. Para azar absoluto a gata tinha paladar muito refinado, e só se contentou com a mais cara delas, desde que complementada por sachês, tornando a conta ainda mais salgada.

Ficou desse jeito por pouco mais de uma semana. A gata saia do móvel pela parte traseira, comia, bebia, fazia uso da caixa sanitária e voltava para deitar-se junto aos gatinhos. De fato, a gata havia se habituado com a presença dele, e não mais reagia agressivamente quando se aproximava dos filhotes. Isso até o animou a pegar um dos gatinhos para vê-los de perto, e a mãe não esboçou nenhuma reação. Não sabia quais eram machos e fêmeas, pois lhe pareciam todos iguais, mas notou que tinham aparência de normalidade e saúde. Julgava o tricolor o mais bonito da ninhada, mas o rajadinho parecia o mais esperto.

Na segunda semana uma novidade: os gatinhos saiam de trás do móvel, onde estavam com a mãe, e se aventuravam por passos inseguros perto das vasilhas de água, comida e do “banheiro”. Realmente, estavam imitando os movimentos da mãe, inclusive no uso da caixinha sanitária.

- Ah, que bom, respirou Bartolomeu com alívio, imaginando-se livre de fezes e urina de gatos dentro do pequeno cafofo.

Ficou livre, mas agora havia uma novidade incômoda: os gatinhos passaram a miar, principalmente quando a gata saia de perto deles. Rompendo o segredo, a vizinha ao lado havia ouvido os miados durante a noite, e manifestou-se:

- Seu Bartolomeu: o senhor está criando gatos?

Constrangido por ter sido descoberto, não encontrou outra saída que não fosse contar exatamente o que havia acontecido e continuava acontecendo, pedindo compreensão e silêncio, se esforçando para convencer que isso seria solucionado quando os gatinhos estivessem desmamados. A vizinha não se mostrou satisfeita com a solução apresentada, mas nada disse. Sendo a mais próxima,  apenas ela poderia ouvir os miados noturnos, e restou torcer para que fosse compreensiva, discreta e paciente. Bem. discreta não foi, uma vez que um dia depois, quando colocava o lixo na calçada a ser recolhido pelo serviço de coleta, um vizinho perguntou com certa animosidade na voz:

- Esse saco preto está bem fechado, seu Bartolomeu?

Ora, como poderia o homem perguntar pelo saco plástico preto se apenas a vizinha sabia de seu conteúdo? Bem, deveria ter ao menos desconfiado que não existe segredo em cortiço. Por outro lado, como poderia ter fugido da verdade? Dizendo para a vizinha, por exemplo, que o que ele criava no cafofo não era da conta de ninguém. Poderia, é claro, mas o problema é que ele sabia que era impróprio manter animais naquele local. Por outro lado, isso não acontecia por seu desejo, e esperava mesmo resolver em pouco tempo. Tratava-se, portanto, de contornar, embora estivesse ficando cada dia mais embaraçosa a situação. Para complicar ele não podia nem mesmo oferecer os gatinhos aos vizinhos da rua ou mesmo do quarteirão, pois não tinha como levá-los para apreciação dos interessados, e tampouco trazê-los para o cafofo. Era uma operação clandestina, secreta.

Assim se passaram os dias. Bartolomeu dormia menos, pois tinha que acordar cedo para trocar água, completar ração nos comedouros, limpar a então conhecida como bandeja sanitária, e pelos três vezes por semana repor ou trocar a areia higiênica, tal era o nome, por vezes chamada de granulado higiênico.  Saia menos de casa, voltava mais cedo, e suas despesas com essa história se faziam sentir com facilidade no orçamento. Estava indo bem para quem não gostava de gatos. Os gatos, porém, gostavam dele, e se atravessavam entre seus passos quando entrava no cafofo, ao coro de enjoativos miados nem sempre em baixo volume. Bem, ele sabia que bastava fornecer o conteúdo de um sachê, que custava caro, para que os bichanos sossegassem.

Uma noite aconteceu algo inédito. Estava deitado em sua cama, de onde assistia programas de TV, quando miados mais fortes e insistentes vinham do chão, e ao lado da cama. Olhou e viu, ainda que pela luz do monitor da TV, pois a lâmpada já estava apagada, os cinco gatinhos sentados e olhando para ele. Levantou-se e foi ao espaço que os felinos haviam tomado como dormitório, e surpreendeu-se com a ausência da gata-mãe. Ah, ela havia saído por um dos dois vitrôs, e os gatinhos foram procurar abrigo com ele. Como não paravam de miar, ele rendeu-se às circunstâncias e colocou os gatinhos, um a um, sobre sua cama. Exploraram o novo ambiente, andaram um pouco de um lado para outro, fizeram pequenas corridas para brincar, e se amontoaram em torno da perna de Bartolomeu, onde se aquietaram. Bem, quatro deles, pois o tricolor foi se aninhar ao lado do pescoço dele. Ele o tirou, mas como tivesse voltado, achou melhor deixar daquele jeito, e dormiu.

Dormiu mal, pois temia se mexer e sufocar os gatinhos, que dormiam colados em sua coxa. Isso o deixava com o sono leve, e despertava ao movimento de qualquer um dos pequenos felinos. Esse episódio se repetia todas as vezes que a gata saia à noite e os gatinhos ficavam sós. No mínimo duas vezes por semana. Na última vez uma novidade. Além do gato tricolor continuar dormindo em volta de seu pescoço, o rajadinho havia descoberto como entrar por baixo do cobertor e mordeu o seu dedão do pé. Assustado tirou o rajado de debaixo das cobertas, repreendeu o bichano, que pareceu não ter dado muita atenção às reprimendas.

- Tinha que ser você, o rajado. Droga!

Como se desenvolvem rapidamente, uns dias a mais e os gatinhos haviam adquirido outra habilidade. Caminhavam até a lateral da cama, com pequeno salto conseguiam se agarrar ao cobertor e, com auxílio das poderosas unhas, escalavam o trecho restaste até o planalto. Não precisavam mais da ajuda de Bartolomeu para subir, passear, brincar ou dormir na cama. Aliás, faziam isso a maior parte do dia, com ou sem a presença dele. O problema da novidade é que também escalavam o corpo de Bartolomeu, subindo pelas unhas cravadas nas calças, embora com alguns arranhões na pele, até seu colo, quando sentado à frente da mesa de atividades onde lia, escrevia e fazia uso do computador. Do colo, um pequeno salto para a mesa foi fácil, e com isso ficaram comprometidas todas as atividades de Bartolomeu.

Aliás, ele aprendeu rapidamente uma coisa com gatos: eles fazem o que bem entendem, e de nada adianta reclamar, demonstrar insatisfação ou mesmo tirá-los de onde não sejam desejados, pois simplesmente se fazem de desentendidos ou voltam ao lugar de onde foram retirados. Bartolomeu achou melhor, depois desse entendimento, encontrar outro lugar para ler, por exemplo. Mudou também os horários de uso do computador, pois os gatos gostaram de brincar com o mouse e com o teclado. Tornou-se usuário da mesa no final da noite, quando os gatos dormiam.

- Não pode ficar pior, pensou.

Ledo engano, pois ficou pior. Mais uns dias e os gatinhos não precisavam escalar as pernas dele para acesso mais próximo à mesa de atividades. Agora saltavam do chão para a cadeira, e dela para a mesa. Bem, ele ganhou mais um tempo afastando a cadeira da mesa, até que, finalmente, eles saltavam diretamente do chão para ela. Aliás saltavam diretamente sobre tudo que estava no cafofo.

A gata-mãe tinha partido. Cumprira o papel de parir e desmamar a cria. A prole tinha novo e zeloso cuidador, além do fato de, em tese, estar por conta. Com essa história de os gatinhos ganharem altura, Bartolomeu passou a fechar o vitrô da cozinha antes que ganhassem o exterior, e com isso criassem problemas com os vizinhos que, nessa altura, estavam mais do que cientes da presença deles no cortiço.

Dormiam todas as noites na cama, e apareceram com outra novidade: passaram a assistir TV. Sentavam enfileirados e atentos às imagens da TV, que como ficava bem de frente ao pé da cama, permitia que Bartolomeu lhes pudesse ver as silhuetas das cabeças com as orelhas pontudas. Como descobriu que não se interessavam por som, mas apenas pela luz e movimento das imagens, desligava o volume e dormia com a TV ligada a noite toda. Pelo menos não miavam.

Desmamados passaram a consumir apenas ração, agora para filhotes – sem que abrissem mão do sachê, é claro -, o que deixou as despesas ainda mais altas. Na última ida ao petshop Bartolomeu lembrou ao balconista a promessa de exposição dos bichaninhos na loja para eventuais adoções, mas o rapaz veio com novidade. Disse-lhe que havia devolvido aos donos os que lá estavam com a mesma finalidade, pois ninguém estava se interessando em adoção, nem mesmo por cães e gatos de raça, vermifugados, vacinados e castrados – o que não era o caso dos gatos dele –, e que isso aumentava o trabalho e as despesas da loja. Além de voltar para casa com essa má notícia, trouxe no pacote de compras um vermífugo a administrar uma vez por mês aos pequenos bichanos, escova para tratamento de pelos, alguns brinquedos e um “arranhador” para que pudessem afiar as unhas. Faltavam as roupas, mas ele já não duvidava que chegaria a isso.

Problemas com vizinhos tardaram, mas chegaram. Uma tarde de domingo, saído do cafofo Bartolomeu pisou em algo mole no corredor entre as casinhas e que levava ao portão do cortiço para a rua. Era nada menos do que fezes que pareciam ser de algum cachorro. Como o portão da rua estava sempre fechado, inclusive com cadeado por conta da cisma exagerada de um residente paranoico, o suposto cão só poderia estar dentro do terreno do cortiço. Ficou praguejando e dois vizinhos abriram suas portas para tomar conhecimento do que ocorria no corredor.

- Viram isso?

Um dos vizinhos se desculpou pelo incidente, e disse que era obra do cachorrinho dele, e que tomaria mais cuidado para que não voltasse a acontecer.

A vizinha ficou indignada com a notícia:

- Cachorrinho? Agora temos cachorro aqui dentro?

Em outra circunstância Bartolomeu teria feito um verdadeiro escândalo, mas lembrando dos gatos lhe pareceu melhor concordar com o vizinho que o importante é que o cão não fizesse suas necessidades no corredor.

Nessa altura surgiram mais dois vizinhos e a discussão subiu para outro andar: se o cortiço – que chamaram de conjunto – era lugar para se criar bichos.  Bartolomeu se manteve quieto, mas os demais, inclusive o que agora tinha um cachorro, se manifestaram contra a presença deles no local. Aliás, o do cão disse com todas as letras que só havia adotado o cachorrinho por conta dos gatos de Bartolomeu.

Emparedado, o agora “gateiro” contou a história do aparecimento dos felinos, e do que pretendia fazer com eles, embora o que tinha em mente não estivesse propriamente dando certo. Diante dessa explanação, o dono do cãozinho afirmou que também ele iria doar o animalzinho, tão logo Bartolomeu se livrasse dos gatos.

Os demais vizinhos participantes da discussão não gostaram do encaminhamento, e um deles foi chamar o senhorio, que morava na casa ao lado.

O homem chegou, ouviu as reclamações de uns e justificativas de outros, deve ter ponderado que qualquer decisão que tomasse poderia levar a perda de inquilinos que ao menos pagavam seus alugueis em dia, sugeriu bom senso entre todos, e saiu de cena.

Bartolomeu argumentou em favor dos gatos, lembrando que eles não saem para o corredor, que fazem suas necessidades dentro do cafofo, que seus dejetos são acondicionados em sacos plásticos seguros e levados pela limpeza pública junto com os sacos de lixo, que não miavam de modo a incomodar o sono dos demais, etc. O dono do cãozinho assegurou que ele não mais voltaria a realizar suas necessidades no corredor, e que não latia.

Para bem da verdade ninguém saiu satisfeito, mas as coisas ficaram exatamente do mesmo tamanho. O cortiço passou a ter um cachorro e cinco gatos, ao menos até aquele momento, pois um dos contrariados saiu da discussão dizendo que havia negado à filha a criação um bichinho, e que agora estaria desmoralizado perante a menina.

No âmbito doméstico de Bartolomeu, a situação continuou conturbada. Afinal, se os gatinhos tinham adquirido habilidade para subir em cama, cadeira e mesa, por que não também nas demais mobílias, pia e lavatório? O problema, porém, não era o subir, mas o verdadeiro estrago que faziam quando da subida. Derrubaram os três vasos de plantas, um radinho a pilha, o mouse, o teclado, o escâner, o modem, uma luminária e uma série de outras coisas que ficavam sobre os móveis e pia. Como saída Bartolomeu se viu obrigado a guardar tudo isso em armários, se desfazer do que não podia guardar, e deixou de usar o fogão elétrico de duas bocas, antes que algum acidente grave pudesse ocorrer.

O cãozinho do vizinho também cresceu, e embora não fizesse necessidades no corredor, latia quando da passagem de quem quer que fosse. Ah, sim: não era de raça pequena. O outro, que havia negado à filha a criação de um bichinho, resolveu liberar, e a menina apareceu com um casal de cães. Uma menina, de outra família, também aderiu à liberalidade do cortiço, e passeava livremente com o seu cachorro. Dizem que um garoto do cortiço havia passado no corredor levando para casa um viveiro de periquitos. Calopsitas, talvez.

Certo começo de noite Bartolomeu encontrou seus gatos com comportamento diferente do habitual. Estavam entrando e saindo de trás do móvel que havia lhes servido de berço quando nasceram. Curioso abriu a portinhola, e eis a razão: lá estava a gata-mãe dos cinco gatinhos, agora amamentando mais cinco, pois voltara para dar nova cria. Bartolomeu havia fechado o vitrô da cozinha, mas não o do banheiro.

Passou a ser conhecido nos arredores como “o velho dos gatos”.

Rogério Centofanti
São Paulo – 20 de maio de 2018