Me alimentaram
Me acariciaram
Me aliciaram
Me acostumaram
História de uma gata – Chico Buarque
de Holanda
Bartolomeu
era do tempo que cachorro não era pet, era cachorro, e costumava ser chamado de
Lulu, Bilu, Duque, Totó, e de outros nomes reservados aos cães. Tempo que seria
um sacrilégio chamá-los pelo nome de gente, como, por exemplo, Bartolomeu, fato
de que ele já tivera conhecimento. Quando criança também ele teve o seu, Lulu,
um peludo marrom e branco muito bonito. A época não havia essa coisa de raças,
e cães eram apenas os que tinham donos e os de rua, abandonados. Os primeiros
eram classificados de duas maneiras: os bem cuidados – lavados de vez em quando
e com poucas pulgas – e os descuidados – que nunca eram banhados e viviam repletos
de pulgas. Banho costumava ser no tanque para os pequenos, e na mangueira para
os grandes.
Em
quase todas as casas havia um cão solto no quintal, que dormia fora de casa, com
a finalidade de guardar, ainda que apenas latindo para estranhos. Tinham
coleira para que pudessem ser presos a cabos ou correntes, mas não para serem
conduzidos nas ruas com o que hoje chamam de guia. Eram poucos os chamados
“cachorrinhos de madame”: pequinês e poodle, na maioria das vezes. Chatos,
chatíssimos. Também não existia petshop, ração, shampoo, e muito menos
brinquedos, utensílios e roupas para cachorros. Viviam dos restos da comida das
pessoas da casa ou, na melhor das hipóteses, de alguma feita para eles – arroz
quebrado, carne de segunda moída e osso. Veterinários entravam em ação apenas quando
de grandes acidentes ou de doenças que não se curavam espontaneamente com o passar
de poucos dias.
Foi e
continuava sendo difícil para ele se acostumar com a ideia de programas de TV específicos
para donos de cães, de uma imensa variedade de rações, complementos alimentares
em maior quantidade e preço do que para humanos, roupas, desfiles caninos, e um
monte de raças, cuja preferência dependia da moda em vigor: a raça canina do
momento. Achou adequada a lei que pune maus tratos aos animais, mas não
entendeu quando lhe falaram sobre adoção responsável, isto é, sobre o fato de
quem resolve adotar um cão ter que assinar um termo de responsabilidade.
-
Puxa! Estão adotando criança?
Em seu
tempo as pessoas doavam ou matavam as crias. Saia-se perguntando quem queria um
filhote. Como preferiam os machos, as fêmeas costumavam ir para o sacrifício.
Era assim, mas ele não cogitava contar isso para ninguém, nem em caráter de
curiosidade, na certeza de que seria olhado como um monstro. Já não duvidava de
mais nada no tempo do politicamente correto. Mas era assim, e a ninguém ocorria,
no passado, que pudesse ser de outra forma.
Também
praticou, na infância e parte da adolescência, a caça e engaiolamento de pássaros.
Fez até viveiro com alguns pedaços de madeira, telhas e tela fina de arame,
onde guardava os pássaros que caçava com alçapão. Coleirinhas, sabiás,
pintassilgos, bicos-de-lacre, canários da terra e tantos outros que revoavam os
terrenos baldios dos bairros periféricos. Sim, e aos montes. Como muita gente
criava pássaros, era fácil encontrar para compra sementes de alpiste, painço,
girassol e cânhamo. Cânhamo, soube-se depois, era semente de maconha, e foi
retirado do mercado.
- Ah,
vai ver que era por isso que o pássaro cantava, lhe ocorreu.
Mesmo
assim, deu razão aos que criaram a lei que proibiu a captura e comercialização
de animais silvestres. De fato, para que prender pássaros? Pássaros, aliás, que
não mais se encontravam aos bandos nem mesmo nos campos das cidades do
interior. Adquiriu o que se pode modernamente chamar de consciência ecológica,
a ponto de não ter migrado – como muitos fizeram – para os pássaros importados
e criados em cativeiro. Não fazia proselitismo sobre isso, pois não se orgulhava
do passado, embora a época não fosse crime e nem mesmo contravenção. Era
prática cultural.
Já
teve até mesmo peixes decorativos, daqueles vermelhos barrigudinhos, e isso antes
do surgimento de aquários industrializados, termostatos, oxigenadores, etc. Fazia
o próprio aquário em garrafão transparente de vidro, enchendo de água até onde
pretendia fazer o corte, passando nessa linha d´água uma cordinha ou barbante
grosso, depois encharcado de álcool, e finalmente incendiado. Corte perfeito. O
acabamento era feito com lixa de ferro e pequeno toco de madeira.
Em
resumo, gostava de bichinhos.
De
todos? Não! Dentre os domésticos nunca gostou de gatos. Nunca teve nenhum.
Talvez por ter sido convencido desde a infância que se trata de bicho
traiçoeiro, ladrão, que não se apega ao dono, que é oportunista e outras
característica que tendem a desvalorizar os bichanos, principalmente os pretos.
Enquanto os cães eram santificados, os gatos eram demonizados. Além disso, para
quem gostou de pássaros e peixes, gatos sempre foram considerados inimigos.
Fato é
que gostava de bichos, e os bichos dele. Devia passar aos bichinhos alguma
sensação de segurança. Cães se aproximavam e abanavam o rabo quando com ele
cruzavam nas calçadas. Alguns o acompanhavam. Até gatos já haviam acompanhado.
De qualquer forma, não se interessou por nenhum desde que passou a morar só.
-
Bicho prende, dá despesas e trabalho, dizia.
Os
infortúnios da vida fizeram com que fosse morar em um quarto e banheiro, dentro
de um conjunto geminado de aposentos iguais, em um cortiço em bairro horizontalizado,
de classe média, em próspera cidade-dormitório vizinha à capital. Cortiço em
bairro de classe média? Sim! Bairro antigo, formado por terrenos de grandes
medidas, onde os moradores fizeram boas casas na frente, e mais tarde
aproveitaram o espaçoso quintal para transformar em cortiços. Abrigavam
migrantes, na imensa maioria provenientes do Nordeste, e agora ele, talvez o
único paulista branco e que morava só, em meio a vizinhos que se apinhavam nos
pequenos “conjugados” com filhos, não raro irmãos, pais e agregados, mas a
ninguém tinha ocorrido, até então, a ideia de ali se criar algum bicho. Nem
tartaruga. Já tinha gente demais. Desavisados que transitassem pelo bairro
jamais imaginariam a existência desse lado oculto, que aos poucos descobriu-se
não ser nada pequeno. Descobriu-se quem, pagando aluguel de quinhentos reais
por mês para ali se alojar com mulher e dois filhos, alugava por cem reais
mensais uma cama com direito a banho e uso do tanque para desconhecido,
normalmente também recém-chegado do Nordeste. O pobre explorando o miserável. E
não se trata de favela.
Um
bairro repleto de cães bem tratados, que estavam nos quintais e caminhando
pelas ruas relativamente tranquilas, com ou sem guias e donos. Havia inclusive
um cão branquinho, pernalta e magro, que ficava o dia todo deitado em frente ao
portão de frente de um sobrado próximo. Não se mexia nem mesmo com a passagem
de transeuntes que costumavam brincar com ele. Casualmente Bartolomeu encontrou
de passagem o morador que saia do sobrado e perguntou se o cão lhe pertencia.
Disse que não, que nem mesmo sabia de quem era, mas que ficava o dia todo
esperando que a cadelinha dele viesse para a frente da casa.
- Um
cachorro apaixonado. Só faltava essa.
Até
mesmo os poucos moradores de rua que moravam na praça tinham seus cães. Dentro
das circunstâncias, podia-se dizer que bem cuidados, bem alimentados e limpos.
Contava o dono da padaria que o povo de rua pedia comida, e quando a ganhava
dividia ou cedia aos cães. Primeiro os cães, e depois eles, os desabrigados. Juntavam
moedas para seus cães fossem atendidos pela veterinária do bairro, e não eram
poucas as vezes que se podia vê-los comprando ração ou medicamentos na bem
instalada petshop que fica ao lado do banco. Eram vistos com seus cães até na
caríssima loja de “estética canina” da rua principal.
Para
não viver em lugar tão árido, além de perdido na pobreza, Bartolomeu havia
comprado um pequeno vaso com uma vistosa muda de pimentas vermelhas e instalou
na lavanderia comum, com os três tanques de roupas que dividia com mais dois
vizinhos. Bem, teve que trazer o vaso para dentro de seu cafofo, pois algum
vizinho simplesmente colheu as pimentas, e que ali estavam apenas para decorar.
Mais tarde comprou mais dois vasinhos com folhagens, desta vez colocados no
interior do quartinho. Tinha três plantas, portanto, além de cinco quadros a
óleo que havia ganhado e comprado quando as vacas eram mais gordas. Tinha
hábitos muito estranhos para o gosto dos demais vizinhos, que como demonstração
de “sucesso” deixavam a mostra no minúsculo espaço os eletrodomésticos recém
comprados. Novinhos em folha. Símbolos de que haviam “vencido” em São Paulo.
Quando
saia, Bartolomeu costumava voltar no final da tarde, se deitar na cama de
solteiro e dela, por meio de controles remotos, ligar a velha TV, então tornada
digital pela instalação de um pequeno conversor, e correr os canais na procura
de algo menos ruim, pois de bom não havia nada. Foi assim na tarde daquela
sexta-feira, quando ouviu um pequeno barulho que parecia vir do interior do
móvel de escritório transformado em pequeno armário, onde guardava as poucas
roupas de cama e banho, e sobre o qual estava instalado o televisor. Móvel
pequeno, dividido ao meio por duas portas de abrir para fora, e que fechavam a
frente. O móvel era aberto na a parte traseira. Abriu a portinhola direita e
nada. Mas que surpresa ao abrir a esquerda: sobre o cobertor ali guardado a
espera do inverno estava uma gata preta e branca, frajola, que havia dado cria
a cinco gatinhos. Ele contou mais de uma vez: cinco. A gata continuou deitada
como se nada estivesse acontecendo, e os gatinhos continuaram mamando nas tetas
da mãe, também como se nada estivesse acontecendo.
Sem
ideia do que fazer Bartolomeu fechou novamente a portinhola com certo cuidado,
sentou-se na cama, e tentou imaginar como isso poderia ter acontecido. Bem, sem
tampa na parte traseira do móvel, e ficava claro que por lá ela tinha entrado e
se alojado. Quanto à entrada no cafofo, apenas duas possibilidades: pelo vitrô
do banheiro ou da cozinha. Devia ter entrado, se alojado, procurado um lugar que
lhe apareceu adequado e parido. Mas, e agora? O que fazer?
Sexta-feira
à noite e não havia o que fazer. A ideia de se desfazer da gata e dos gatinhos não
lhe parecia correta, sentia-se mal apenas em pensar nessa possibilidade. Não
era mais o Bartolomeu do passado. Tinha agora outra mentalidade.
No
sábado pela manhã a primeira coisa que fez foi abrir a portinhola do móvel, na
esperança que a gata tivesse se ido com os gatinhos. Não tinha. Estava lá com
os cinco gatinhos. Ficou olhando: um preto, um branco, um tricolor, um rajado e
um preto e branco. Os gatinhos ficaram de frente para ele e o tricolor deu um
passo em sua direção. Sentiu-se impelido a pegar o gatinho, mas a mãe ficou de
pé, bufou, arrepiou-se toda, e mostrou dentes e garras. Bartolomeu fechou
novamente a porta e continuou pensando no que fazer. Não imaginou resistência,
e menos ainda com agressividade.
Sem
ter com quem sobre isso falar no cortiço, foi até o petshop mais próximo em
busca de alguma informação que pudesse lhe dar alguma luz.
Por
sorte ou azar, dependendo do ponto de vista, o atendente do petshop gostava de
gatos e criava alguns deles. Bartolomeu contou a história, e o homem sugeriu
que ele cuidasse dos gatinhos por um mês, tempo em que se alimentam do leite da
mãe. Outro bom motivo para a sugestão era a baixíssima possibilidade de alguém
se candidatar a adoção como os gatos com tão pouco tempo de vida.
- As
pessoas querem adotar animais desmamados.
Bartolomeu
perguntou se o atendente não ficaria com eles até que fossem adotados. A
resposta foi negativa. Na melhor das hipóteses ficaria com eles para adoção
depois de desmamados. Além do conselho desanimador, ele saiu da loja com um
pequeno saco de ração, uma vasilha rasa para ração, outra para água, e uma
espécie de bandeja de plástico, além de um saco do que parecia ser uma areia
grossa, que serviriam como sanitário da gata e dos gatinhos. Tudo explicado
como usar, onde ajeitar, etc.
A
ideia do atendente era de que a gata não tivesse que deixar os gatinhos e sair
do cafofo para comer, beber e fazer suas necessidades durante o período de
amamentação, e também para que os gatinhos aprendessem pela observação o que
fazer com todo esse aparato que custou um dinheiro que ele nunca imaginou um
dia que iria gastar com gatos. Voltou ao cafofo com tudo bem empacotado para
não levantar suspeita nos vizinhos, e começou a colocar as coisas nos lugares
sugeridos pelo balconista. Aliás, dizia que assim a gata iria também se
acostumar com ele, se deixar pegar, bem como os gatinhos.
A gata
foi de pronto para a vasilha com água, cheirou a ração, mas não comeu, e fez
uso do “banheiro”. Fez um buraco, depositou seus dejetos, e tapou.
-
Puxa. Que bicho higiênico.
Ele
tinha também comprado uma pequena pá de plástico, com a qual recolheria os
dejetos de dois em dois dias, e colocaria em sacos plásticos muito bem fechados
antes de deixados para os lixeiros, com a lembrança que o cheiro era
insuportável. Isso o fez lembrar dos vizinhos, e foi ao supermercado comprar
sacos de lixo muito resistentes, de plástico preto e grosso. Sua missão, agora,
era manter tudo isso bem longe do conhecimento dos vizinhos.
Dai
para a frente foi observar o que acontecia e manter a rotina tal como desenhada
pelo rapaz do petshop. Teve que comprar diferentes marcas de ração até
encontrar uma que a gata aceitasse. Para azar absoluto a gata tinha paladar
muito refinado, e só se contentou com a mais cara delas, desde que
complementada por sachês, tornando a conta ainda mais salgada.
Ficou
desse jeito por pouco mais de uma semana. A gata saia do móvel pela parte
traseira, comia, bebia, fazia uso da caixa sanitária e voltava para deitar-se
junto aos gatinhos. De fato, a gata havia se habituado com a presença dele, e
não mais reagia agressivamente quando se aproximava dos filhotes. Isso até o
animou a pegar um dos gatinhos para vê-los de perto, e a mãe não esboçou nenhuma
reação. Não sabia quais eram machos e fêmeas, pois lhe pareciam todos iguais,
mas notou que tinham aparência de normalidade e saúde. Julgava o tricolor o
mais bonito da ninhada, mas o rajadinho parecia o mais esperto.
Na
segunda semana uma novidade: os gatinhos saiam de trás do móvel, onde estavam
com a mãe, e se aventuravam por passos inseguros perto das vasilhas de água,
comida e do “banheiro”. Realmente, estavam imitando os movimentos da mãe,
inclusive no uso da caixinha sanitária.
- Ah,
que bom, respirou Bartolomeu com alívio, imaginando-se livre de fezes e urina
de gatos dentro do pequeno cafofo.
Ficou
livre, mas agora havia uma novidade incômoda: os gatinhos passaram a miar,
principalmente quando a gata saia de perto deles. Rompendo o segredo, a vizinha
ao lado havia ouvido os miados durante a noite, e manifestou-se:
- Seu
Bartolomeu: o senhor está criando gatos?
Constrangido
por ter sido descoberto, não encontrou outra saída que não fosse contar
exatamente o que havia acontecido e continuava acontecendo, pedindo compreensão
e silêncio, se esforçando para convencer que isso seria solucionado quando os
gatinhos estivessem desmamados. A vizinha não se mostrou satisfeita com a
solução apresentada, mas nada disse. Sendo a mais próxima, apenas ela poderia ouvir os miados noturnos,
e restou torcer para que fosse compreensiva, discreta e paciente. Bem. discreta
não foi, uma vez que um dia depois, quando colocava o lixo na calçada a ser
recolhido pelo serviço de coleta, um vizinho perguntou com certa animosidade na
voz:
- Esse
saco preto está bem fechado, seu Bartolomeu?
Ora,
como poderia o homem perguntar pelo saco plástico preto se apenas a vizinha
sabia de seu conteúdo? Bem, deveria ter ao menos desconfiado que não existe
segredo em cortiço. Por outro lado, como poderia ter fugido da verdade? Dizendo
para a vizinha, por exemplo, que o que ele criava no cafofo não era da conta de
ninguém. Poderia, é claro, mas o problema é que ele sabia que era impróprio
manter animais naquele local. Por outro lado, isso não acontecia por seu desejo,
e esperava mesmo resolver em pouco tempo. Tratava-se, portanto, de contornar,
embora estivesse ficando cada dia mais embaraçosa a situação. Para complicar
ele não podia nem mesmo oferecer os gatinhos aos vizinhos da rua ou mesmo do
quarteirão, pois não tinha como levá-los para apreciação dos interessados, e
tampouco trazê-los para o cafofo. Era uma operação clandestina, secreta.
Assim
se passaram os dias. Bartolomeu dormia menos, pois tinha que acordar cedo para
trocar água, completar ração nos comedouros, limpar a então conhecida como
bandeja sanitária, e pelos três vezes por semana repor ou trocar a areia
higiênica, tal era o nome, por vezes chamada de granulado higiênico. Saia menos de casa, voltava mais cedo, e suas
despesas com essa história se faziam sentir com facilidade no orçamento. Estava
indo bem para quem não gostava de gatos. Os gatos, porém, gostavam dele, e se
atravessavam entre seus passos quando entrava no cafofo, ao coro de enjoativos miados
nem sempre em baixo volume. Bem, ele sabia que bastava fornecer o conteúdo de
um sachê, que custava caro, para que os bichanos sossegassem.
Uma
noite aconteceu algo inédito. Estava deitado em sua cama, de onde assistia
programas de TV, quando miados mais fortes e insistentes vinham do chão, e ao
lado da cama. Olhou e viu, ainda que pela luz do monitor da TV, pois a lâmpada
já estava apagada, os cinco gatinhos sentados e olhando para ele. Levantou-se e
foi ao espaço que os felinos haviam tomado como dormitório, e surpreendeu-se
com a ausência da gata-mãe. Ah, ela havia saído por um dos dois vitrôs, e os
gatinhos foram procurar abrigo com ele. Como não paravam de miar, ele rendeu-se
às circunstâncias e colocou os gatinhos, um a um, sobre sua cama. Exploraram o
novo ambiente, andaram um pouco de um lado para outro, fizeram pequenas
corridas para brincar, e se amontoaram em torno da perna de Bartolomeu, onde se
aquietaram. Bem, quatro deles, pois o tricolor foi se aninhar ao lado do
pescoço dele. Ele o tirou, mas como tivesse voltado, achou melhor deixar
daquele jeito, e dormiu.
Dormiu
mal, pois temia se mexer e sufocar os gatinhos, que dormiam colados em sua
coxa. Isso o deixava com o sono leve, e despertava ao movimento de qualquer um
dos pequenos felinos. Esse episódio se repetia todas as vezes que a gata saia à
noite e os gatinhos ficavam sós. No mínimo duas vezes por semana. Na última vez
uma novidade. Além do gato tricolor continuar dormindo em volta de seu pescoço,
o rajadinho havia descoberto como entrar por baixo do cobertor e mordeu o seu dedão
do pé. Assustado tirou o rajado de debaixo das cobertas, repreendeu o bichano,
que pareceu não ter dado muita atenção às reprimendas.
-
Tinha que ser você, o rajado. Droga!
Como
se desenvolvem rapidamente, uns dias a mais e os gatinhos haviam adquirido
outra habilidade. Caminhavam até a lateral da cama, com pequeno salto
conseguiam se agarrar ao cobertor e, com auxílio das poderosas unhas, escalavam
o trecho restaste até o planalto. Não precisavam mais da ajuda de Bartolomeu
para subir, passear, brincar ou dormir na cama. Aliás, faziam isso a maior
parte do dia, com ou sem a presença dele. O problema da novidade é que também
escalavam o corpo de Bartolomeu, subindo pelas unhas cravadas nas calças, embora
com alguns arranhões na pele, até seu colo, quando sentado à frente da mesa de
atividades onde lia, escrevia e fazia uso do computador. Do colo, um pequeno
salto para a mesa foi fácil, e com isso ficaram comprometidas todas as
atividades de Bartolomeu.
Aliás,
ele aprendeu rapidamente uma coisa com gatos: eles fazem o que bem entendem, e
de nada adianta reclamar, demonstrar insatisfação ou mesmo tirá-los de onde não
sejam desejados, pois simplesmente se fazem de desentendidos ou voltam ao lugar
de onde foram retirados. Bartolomeu achou melhor, depois desse entendimento, encontrar
outro lugar para ler, por exemplo. Mudou também os horários de uso do
computador, pois os gatos gostaram de brincar com o mouse e com o teclado. Tornou-se
usuário da mesa no final da noite, quando os gatos dormiam.
- Não
pode ficar pior, pensou.
Ledo
engano, pois ficou pior. Mais uns dias e os gatinhos não precisavam escalar as
pernas dele para acesso mais próximo à mesa de atividades. Agora saltavam do
chão para a cadeira, e dela para a mesa. Bem, ele ganhou mais um tempo
afastando a cadeira da mesa, até que, finalmente, eles saltavam diretamente do
chão para ela. Aliás saltavam diretamente sobre tudo que estava no cafofo.
A
gata-mãe tinha partido. Cumprira o papel de parir e desmamar a cria. A prole
tinha novo e zeloso cuidador, além do fato de, em tese, estar por conta. Com
essa história de os gatinhos ganharem altura, Bartolomeu passou a fechar o vitrô
da cozinha antes que ganhassem o exterior, e com isso criassem problemas com os
vizinhos que, nessa altura, estavam mais do que cientes da presença deles no
cortiço.
Dormiam
todas as noites na cama, e apareceram com outra novidade: passaram a assistir
TV. Sentavam enfileirados e atentos às imagens da TV, que como ficava bem de
frente ao pé da cama, permitia que Bartolomeu lhes pudesse ver as silhuetas das
cabeças com as orelhas pontudas. Como descobriu que não se interessavam por
som, mas apenas pela luz e movimento das imagens, desligava o volume e dormia
com a TV ligada a noite toda. Pelo menos não miavam.
Desmamados
passaram a consumir apenas ração, agora para filhotes – sem que abrissem mão do
sachê, é claro -, o que deixou as despesas ainda mais altas. Na última ida ao
petshop Bartolomeu lembrou ao balconista a promessa de exposição dos
bichaninhos na loja para eventuais adoções, mas o rapaz veio com novidade.
Disse-lhe que havia devolvido aos donos os que lá estavam com a mesma
finalidade, pois ninguém estava se interessando em adoção, nem mesmo por cães e
gatos de raça, vermifugados, vacinados e castrados – o que não era o caso dos gatos
dele –, e que isso aumentava o trabalho e as despesas da loja. Além de voltar
para casa com essa má notícia, trouxe no pacote de compras um vermífugo a
administrar uma vez por mês aos pequenos bichanos, escova para tratamento de
pelos, alguns brinquedos e um “arranhador” para que pudessem afiar as unhas. Faltavam
as roupas, mas ele já não duvidava que chegaria a isso.
Problemas
com vizinhos tardaram, mas chegaram. Uma tarde de domingo, saído do cafofo
Bartolomeu pisou em algo mole no corredor entre as casinhas e que levava ao
portão do cortiço para a rua. Era nada menos do que fezes que pareciam ser de
algum cachorro. Como o portão da rua estava sempre fechado, inclusive com
cadeado por conta da cisma exagerada de um residente paranoico, o suposto cão
só poderia estar dentro do terreno do cortiço. Ficou praguejando e dois
vizinhos abriram suas portas para tomar conhecimento do que ocorria no
corredor.
-
Viram isso?
Um dos
vizinhos se desculpou pelo incidente, e disse que era obra do cachorrinho dele,
e que tomaria mais cuidado para que não voltasse a acontecer.
A
vizinha ficou indignada com a notícia:
-
Cachorrinho? Agora temos cachorro aqui dentro?
Em
outra circunstância Bartolomeu teria feito um verdadeiro escândalo, mas
lembrando dos gatos lhe pareceu melhor concordar com o vizinho que o importante
é que o cão não fizesse suas necessidades no corredor.
Nessa
altura surgiram mais dois vizinhos e a discussão subiu para outro andar: se o
cortiço – que chamaram de conjunto – era lugar para se criar bichos. Bartolomeu se manteve quieto, mas os demais,
inclusive o que agora tinha um cachorro, se manifestaram contra a presença deles
no local. Aliás, o do cão disse com todas as letras que só havia adotado o
cachorrinho por conta dos gatos de Bartolomeu.
Emparedado,
o agora “gateiro” contou a história do aparecimento dos felinos, e do que
pretendia fazer com eles, embora o que tinha em mente não estivesse
propriamente dando certo. Diante dessa explanação, o dono do cãozinho afirmou
que também ele iria doar o animalzinho, tão logo Bartolomeu se livrasse dos
gatos.
Os
demais vizinhos participantes da discussão não gostaram do encaminhamento, e um
deles foi chamar o senhorio, que morava na casa ao lado.
O
homem chegou, ouviu as reclamações de uns e justificativas de outros, deve ter
ponderado que qualquer decisão que tomasse poderia levar a perda de inquilinos
que ao menos pagavam seus alugueis em dia, sugeriu bom senso entre todos, e
saiu de cena.
Bartolomeu
argumentou em favor dos gatos, lembrando que eles não saem para o corredor, que
fazem suas necessidades dentro do cafofo, que seus dejetos são acondicionados
em sacos plásticos seguros e levados pela limpeza pública junto com os sacos de
lixo, que não miavam de modo a incomodar o sono dos demais, etc. O dono do
cãozinho assegurou que ele não mais voltaria a realizar suas necessidades no
corredor, e que não latia.
Para
bem da verdade ninguém saiu satisfeito, mas as coisas ficaram exatamente do
mesmo tamanho. O cortiço passou a ter um cachorro e cinco gatos, ao menos até
aquele momento, pois um dos contrariados saiu da discussão dizendo que havia
negado à filha a criação um bichinho, e que agora estaria desmoralizado perante
a menina.
No
âmbito doméstico de Bartolomeu, a situação continuou conturbada. Afinal, se os
gatinhos tinham adquirido habilidade para subir em cama, cadeira e mesa, por
que não também nas demais mobílias, pia e lavatório? O problema, porém, não era
o subir, mas o verdadeiro estrago que faziam quando da subida. Derrubaram os
três vasos de plantas, um radinho a pilha, o mouse, o teclado, o escâner, o
modem, uma luminária e uma série de outras coisas que ficavam sobre os móveis e
pia. Como saída Bartolomeu se viu obrigado a guardar tudo isso em armários, se
desfazer do que não podia guardar, e deixou de usar o fogão elétrico de duas
bocas, antes que algum acidente grave pudesse ocorrer.
O
cãozinho do vizinho também cresceu, e embora não fizesse necessidades no
corredor, latia quando da passagem de quem quer que fosse. Ah, sim: não era de
raça pequena. O outro, que havia negado à filha a criação de um bichinho,
resolveu liberar, e a menina apareceu com um casal de cães. Uma menina, de
outra família, também aderiu à liberalidade do cortiço, e passeava livremente com
o seu cachorro. Dizem que um garoto do cortiço havia passado no corredor
levando para casa um viveiro de periquitos. Calopsitas, talvez.
Certo começo
de noite Bartolomeu encontrou seus gatos com comportamento diferente do
habitual. Estavam entrando e saindo de trás do móvel que havia lhes servido de
berço quando nasceram. Curioso abriu a portinhola, e eis a razão: lá estava a
gata-mãe dos cinco gatinhos, agora amamentando mais cinco, pois voltara para
dar nova cria. Bartolomeu havia fechado o vitrô da cozinha, mas não o do
banheiro.
Passou
a ser conhecido nos arredores como “o velho dos gatos”.
Rogério Centofanti
São
Paulo – 20 de maio de 2018