Porcos num chiqueiro
São mais dignos que um burguês
São mais dignos que um burguês
Burguesia - Cazuza
É
palavra obrigatória nos discursos dos arautos da vitória – consultores, coachs
e pastores - benfeitores que proliferam com ofertas da passagem mágica para o
sucesso, seja lá o que queiram dizer com isso. Bem, tem funcionado ao menos
para o êxito financeiro deles.
Prometem
sucesso no casamento, na vida amorosa, sexual, profissional, etc. Superação dos
vícios, da malemolência e até mesmo da homossexualidade. Falam em evolução, por
isso entendendo que o melhor está por vir. São os Messias que anunciam pela fé
o alcance de alguma terra prometida. Nessa medida, superar, elevar-se, seria um
destino na escalada evolucionista das criaturas. Não se encontra,
evidentemente, quem aponte para a trilha da evolução da intelectualidade, da
ciência e da arte, para a superação do vício da burrice e da ignorância e
tampouco do embotamento da afetividade. Motivo? Caminhos árduos e que precisam
ser percorridos por muitos anos, quase sempre por toda a vida. Não são
evoluções que ocorrem pelo exercício de mera crença, e tampouco pela simples
perseverar nessa crença. Pode-se ter fé o tempo todo, orar o tempo todo, e
asseguro que nenhum quantum de inteligência, de sensibilidade e de erudição
será adicionado por conta desses “esforços”, e por mais devoto que seja o
vivente.
O
homem médio, o medíocre por excelência, acredita nesses prestidigitadores e
repisa suas palavras libertadoras como se fossem ingredientes de uma fórmula
milagrosa. O faz com vista ao alcance da transcendência sobre os próprios
limites. Faz como se estivesse a lanço semeando ao vento essas palavras
milagrosas na esperança de alguma colheita. Em ação o “hei de vencer”, o
“querer é poder”, e outras expressões que campeiam na boca do populacho - de
forma acrítica, evidentemente - e tomadas como uma espécie de idealidade, um
santo graal a ser perseguido com a obstinação dos peregrinos.
Descobrindo
que em sociedades de consumo o povo não está propriamente preocupado com
salvação da alma, mas com a ostentação de coisas bem terrenas, igrejas inteiras
adotaram a figura do Deus da Prosperidade, mas que melhor seria identificado
como Deus do Consumo. Ouvi fiel em testemunho pela televisão dizer que foi
agraciado com duas empresas, cinco apartamentos e três automóveis, e tudo isso
apenas pelo exercício da fé. Gente vencedora, de sucesso, que superou
dificuldades e atingiu seus objetivos. Na outra ponta os fracassados, os
abandonados por Deus. Sendo rico, Deus é dos ricos e para os ricos. O Deus dos
Aflitos ficou no passado. Dirão os guardiões da nova ordem divina que ficou
onde e quando se venerava os fracos, acomodados, perdedores. Não é diferente do
que fazem coachs,
Não
preciso recorrer a exemplos, uma vez que estão por toda parte: nas revistas,
jornais, programas de tv, etc. Superação, vitória, sucesso, evolução,
crescimento, empreendedorismo, e outros termos que apontam quase sempre na
mesma direção: competir e vencer.
Essa
é a sociedade para a qual essa onda aponta e, nela, para os valores a serem
cultivados e cultuados por seus membros. Uma sociedade movida a controles
externos e internos com fundamento na ansiedade e na culpa. Uma sociedade que
caminha na contramão das escolhas com espelho no prazer das vocações, inclusive
da vocação do viver. A questionar, portanto, se as pessoas são realmente
movidas por seus próprios objetivos, pois os símbolos e modelos de sucesso
estão previamente desenhados, e quase nunca por elas.
Qual
outra opção tem o filho de uma família com algumas posses que não seja a
escolha de uma profissão de “nível superior”? Que valor pode ter um curso de
nível superior se a formatura não estiver associada a alguma profissão
consagrada e de prestígio social? De que vale um emprego que não seja em
empresa renomada e na ocupação de cargo de importância?
De
que vale aventurar-se no comércio que não esteja estabelecido dentro de um
famoso shopping? Afinal, comércio de sucesso para consumidores de sucesso. Não
é diferente com a compra ou aluguel de imóvel. Imóvel de vencedores em bairro
de vencedores. Incrível, mas as pessoas não escolhem nem mesmo como gostariam
de morar.
Não
é muito diferente com imóvel de praia ou campo. Na praia de vencedores, assim
como no campo de vencedores, o paisagismo será confiado a um famoso paisagista
– o paisagista das celebridades. Não sabem decidir com o que e nem como dispor
a “natureza” artificializada na propriedade.
É
assim com tudo. Roupas de grife, tecnologias de grife, carro de grife, móveis
de grife. Decorador de grife, personal stylist de grife, personal training de
grife, médico de grife, dentista de grife, droga de grife e até amante de
grife. Vivem dos outros e para os outros, uma vez que não têm a menor ideia do
que seja viver para si. São assim até com a chamada “consciência cidadã”. Hoje,
no apelo ao politicamente correto da bicicleta, fácil encontra-los em bandos
com suas “bikes” caríssimas, e em seus ridículos uniformes igualmente de grife.
O que fazem com as bikes? Desfilam com elas em finais de semana nas composições
do Metrô, até chegada a alguma estação na avenida Paulista, onde ostentam a
“consciência” por meia dúzia de quilômetros. Gente medíocre e banal.
A
rigor nada muda na versão R$ 1,99 que não seja o preço. Versão brega dos
chiques, mas com precinho convidativo da diversidade alternativa da rua 25 de
Março. Também esses não vivem para si, mas para os outros. Vencedores, porém,
embora em diferentes estratos sociais – do luxo e do lixo.
Esses
alcances são de fato objetivos de pessoas, ou objetivos para elas traçados a
partir de modelos ditados de fora? Será mesmo que as pessoas sabem quais são
seus verdadeiros objetivos, isto é, traçados por elas e para elas?
Não
é o que tenho encontrado. A imensa maioria vive em busca de realizações
calcadas em modelos. Nem mesmo sabem dizer a razão da busca de conquistas
traçadas do exterior. Uma vida imbecil, completamente imbecil. A mediocridade é
tamanha que a criatura diz que cada um vive como pode e como quer, ficando a
impressão que é mesmo dessa forma que a vida se define. Mentira, pois muitas
vezes cada um vive como sabe, e na maioria das vezes como não sabe, de onde a
natureza imitativa de suas ações.
O
dinheiro é muitas vezes mais perigoso do que uma arma.
Quem
nunca visitou uma casa que mais parece um bunker, sem qualquer harmonia e
delicadeza nas formas externas e internas que pareçam uma casa, uma habitação?
Bloco de concreto, aço, vidro e nada além desses elementos frios, como tudo o
mais na vida dessas criaturas. Uma jardinagem de inspiração meramente
artificial, com plantas e pedras sem a menor relação de origem entre si completa
a “obra”. Salas que mais parecem lojas de móveis para salas. Dormitórios que
mais parecem lojas de móveis de dormitórios. Banheiros que mais parecem uma
loja de ferragens para banheiros ou showroom de algum motel. Cozinha que mais
parece uma loja de móveis e brancos para cozinhas. Até a sala de jantar parece,
e no jantar, uma loja de louças e de baixelas. Nem beleza, nem conforto e nem
mesmo a funcionalidade que pode ser reclamada pelo proprietário ou decorador.
Um festival de marcas famosas expostas em absolutamente tudo. Até cães e gatos
têm marca. A história de cada peça se faz acompanhar de nota fiscal, e não de
algum episódio que possa lembrar a origem.
Livros,
quando existem, foram comprados por metro linear e quadros, quando existem,
comprados por metro quadrado. A única diferença na versão R$ 1,99 é a
procedência e o preço, pois a ausência de qualquer coisa que pudesse indicar a
presença de pessoas é a mesma. Com ou sem dinheiro impera a mais completa
ausência de personalidade. Nem mesmo um velho relógio de parede herdado do avô
ou um pinguim de louça sobre a geladeira trazido da casa da mãe.
Também
em versão brega e chique as diversões, os passeios e as viagens. Nenhuma
criatividade. As escolhas recaem sempre nas formatações de costume, seja na
praia, no campo, ou até no exterior. Mesmos lugares, mesmas fotos, mesmos
ângulos, mesmas “lembranças”, etc. Quanto mais artificialidades, melhor.
Fundamental, porém, a presença de lojas e shoppings. Incrível é que compram no
exterior as mesmas coisas que poderiam comprar no comércio do bairro em que
moram. Não lhes ocorre, jamais, um passeio virtual por algum mapa mundi, de
onde surgir, talvez, uma ou outra curiosidade especial. Adoram ir ao Vaticano
ver o Papa, mas nunca percebem que estão em Roma, que Roma fica na Itália e a
Itália na Europa.
Eis
o perfil mais comum do vencedor, da pessoa de sucesso, e que serve de modelo
para os futuros aspirantes a vencedores, para aqueles que desejam superar, sabe-se
lá o que. A mediocridade é que não superam. Se alguém tem alguma dúvida basta
observar as casas das celebridades, quase todos os dias a mostra em programas
de televisão, bem como em revistas que tratam da vida pessoal dos vencedores.
Eis os evoluídos. Essa é a mentalidade consumista e medíocre da superação. Com
os devidos ajustes estéticos e não é diferente com casas de celebridades do
crime pé-de-chinelo ou do grotesco.
O
que é vencer? É conseguir viver de acordo com o próprio desejo de viver.
Trabalhar como deseja. Morar onde e como deseja. Quem consegue atender a essa
condição é verdadeiramente um vencedor, pois superou todas as pressões para
pensar, sentir e viver como possivelmente pretenderam lhe ditar. Exige fé e
persistência? Nenhuma fé. Persistência apenas em não ceder a nada e a ninguém
no objetivo do viver de acordo com os próprios desejos. Pastores e coachs para
isso? Não. Apenas reconhecimento dos próprios desejos e determinação de fazer
deles o modo de viver. Simples, tão simples que parece impossível.
Já
encontrei pessoas assim pela vida. São encontros inesquecíveis, diferentemente
dos marcados por performances e ostentações. Como esquecer as pequenas e
antigas casinhas encostadas umas nas outras ao longo das estreitas vielas das
pequenas aldeias europeias? Como esquecer as cortinas coloridas das vigias das
barcaças que navegam pelos canais da Holanda, além dos pequenos vasos de flores
que completam a delicada decoração? Não há como esquecer algumas palafitas de
ribeirinhos da Amazônia, um destaque de humanidade no meio daquele oceano de
natureza diversificada.
Conheci
gente completamente identificada com seus ofícios: professores, médicos,
veterinários, artistas e comerciantes. Mesmo com suas atividades ganhando o
suficiente para manter a vida, gente satisfeita por conduzir-se em conformidade
com o desejo. Gente em equilíbrio. Gente em harmonia. Uma estética aberta aos
olhos de quem tem sensibilidade para perceber, mas principalmente para
apreciar. Lembro-me do Cid e de sua loja de produtos naturais. Era muito mais
do que uma loja. Era o meio pelo qual ele sobrevivia exercendo o que acreditava
e praticava. Professores sempre dispostos a compartilhar o que sabiam, e até
mesmo para pesquisar o que não sabiam para depois compartilhar. Médicos e
veterinários preocupados com o bem estar de seus pacientes, e artistas de casa
e coração abertos aos que sabem apreciar obras do espírito. Aos idiotas da
superação ocorreria, na hora, sugerir-lhes modos pelos quais poderiam ampliar
os “negócios”, prosperar, vencer. Essa gente apequena com a mania de grandeza.
Como
é bom encontrar gente que nos recebe com um café feito na hora ou com um
pequeno cálice de licor elaborado a partir de antiga receita de família. Gente
que nos presenteia com um pequeno vaso de cerâmica contendo uma flor do campo.
Gente que em dias de verão nos oferece um banquinho de madeira na sombra da
varanda, além de uma limonada refrescante e uma prosa agradável. Coisas tão
comuns nas aldeias europeias: o vinho da família, o azeite, o pão, o embutido e
o queijo. Gente que se orgulha em oferecer o que faz, e não o que compra. Gente
que se orgulha de uma origem que de fato contém elementos dignos de orgulho,
pois geradora de alguma forma de riqueza de alma. Gente que não quer superar
nada, pois é vencedora por preservar as vitórias do passado e do presente, e
isso independente da condição social e econômica. A vitória de escrever um
artigo, uma poesia, de compor ou executar uma música, de terminar um quadro ou
uma escultura, de cultivar alguma planta, de melhorar a vida de quem procura
por seus serviços, de dividir o que sabe com quem precisa de conhecimentos e de
ouvir elogio sincero até mesmo por conta de suas pequenas realizações – café,
licor, bolo, queijo ou torta. Gente que nos presenteia os olhos, os ouvidos, o
olfato e o paladar.
Como
esquecer Dom Luis, nobre português em cuja pousada hospedei-me, e que além da
extraordinária gentileza com que satisfazia minhas incontáveis curiosidades
sobre tudo o que encontrava na histórica propriedade da família, ainda
confidenciou-me onde saborear o melhor bacalhau da região – em uma tasca.
Preciosa informação, pois na pequena e acanhada tasca escondia-se de fato o
melhor bacalhau que já apreciei.
Como
esquecer o menino cubano que se recusou a aceitar dinheiro depois de subir e
descer do coqueiro com um fruto para entregar-me, sob o argumento que não havia
trabalho, uma vez que o fruto era produto da natureza. Como esquecer Justo, o
pequeno angolano órfão que um dia apareceu oferecendo-se para cuidar da casa e
das roupas em troca de cama e comida, e que acabou cuidando de tudo com imensa
dedicação e alegria.
Não
vai aqui nenhum elogio à pobreza, pois que em boa parte das vezes alimentada de
inveja e de rancor. O que nela mais se encontra é inconformismo, olho grande
sobre a vida dos chamados vitoriosos, vencedores e frustração com o próprio
destino. Gente que vive se jogando para políticos, empresários, poderosos na
terra e no céu, na esperança de ser reconhecida e aceita como “quase
superante”. Muitas vezes gente viscosa e desprezível. Esse é o povo que corre
atrás de pastores, com fé e persistência, pois atrás da promessa de “vida
melhor”. Por vida melhor compreende a inclusão no universo do consumo. Nada
nessas pessoas, em suas roupas, modos, mobílias, casa, quintal ou jardim tem
alguma coisa que se assemelhe a zelo, a carinho.
Nem
mesmo uma singela toalha no centro da mesa. Não podem comprar, mas não sabem
criar, gerar algo que com alguma originalidade supram um vazio qualquer.
Preferem apostar no caminho fácil do milagre. Gente que vive dignamente em
conformidade com os próprios desejos não tem diferencial de cor, gênero,
escolaridade ou condição econômica e social. O mesmo é verdadeiro com os
superantes, com os arrivistas, com os que pisam no que encontram pelo caminho
da escalada do sucesso, da vitória, ou que imaginam trocar com Deus uma vida
melhor por suas orações.
Não
há dinheiro que supere a miséria de espírito, e ainda bem que é assim, pois
essas criaturas serão sempre identificadas, carimbadas, rotuladas – com ou sem
dinheiro.
Rogério
Centofanti
São Paulo, março
de 2016