domingo, 28 de agosto de 2016

Considerações sobre projetos de Memória Social


Se o senhor não está lembrado
Dá licença de contar
Que aqui onde agora está
Esse edifício alto
Era uma casa velha
Um palacete abandonado


Saudade Maloca – Adoniran Barbosa


Há uma ideia difusa, bastante genérica, que projeto de Memória diga respeito a qualquer atividade relativa ao passado de instituições, atividades, realizações, lugares, coisas e pessoas. Não é bem assim. Junto a esse equívoco, o emprego do termo memória surge como se dotado de entendimento “evidente”. Também não é bem assim. A presença da ideia e da crença na evidência do termo costuma gerar certo mal-estar quando da discussão de projetos de memória social de instituições, atividades, realizações, lugares, coisas e pessoas, em virtude do que chamo de um quase inevitável choque de expectativas. Muitas vezes, inclusive, confundem História e Memória como se fossem sinônimos. Não são.

Em virtude dessas experiências às vezes constrangedoras, resolvi escrever esta breve crônica, na esperança que ela possa alimentar reflexões. Nela procurarei de maneira simples expor meus pontos de vista, mas sempre com a consciência da existência de outros, quiçá melhores.

Bem, vamos às considerações!

Em carta escrita em 1913 e endereçada a Godofredo Rangel, Monteiro Lobato, o paulista ilustre e hoje vilipendiado pela acusação de racismo, dizia que “a história dos historiadores coroados pelas academias mostra-nos só a sala de visita dos povos”. Quanto às memórias, relativas à humanidade, diz Lobato que elas nos mostram sua “alcova, as chinelas, o
Fonte Wikipedia
penico, o quarto dos criados, a sala de jantar, a privada, o quintal”.

Creio que Lobato coloca em 1913, e “sem fazer sala”, o que encontramos nos dias de hoje, embora sem a lucidez e a objetividade do velho mestre. De um lado a versão “oficial”, asséptica, primorosamente bordada de felicidades e de glórias, sala artificialmente decorada para causar boa impressão aos visitantes, e de outro a versão espontânea que passa pelas alegrias, mas também pelas tristezas, pelas simpatias, mas também pelas antipatias, em resumo, pelo antagonismo das forças que cunham as nossas crenças, nossos sentimentos e certamente nossas percepções. Eis a alcova, as chinelas, o penico, o quarto dos criados, a sala de jantar, a privada, o quintal, o interior que no cotidiano se fecha ao olhar dos visitantes.

Interessante notar que ao tempo de Lobato não existia ainda o Marketing e nem o Promoter, figuras modernas que vivem do fabrico e da venda de imagens, e que mesmo diante da consciência pública da artificialidade de suas “promoções” ainda assim fazem sucesso. Ao tempo de Lobato, porém, iniciava-se a propaganda, os “reclames” e, bem antes disso, certamente, a “história dos historiadores coroados pelas academias”, isto é, pelos arquitetos de versões tornadas oficiais, que passaram pela sua época e que perduram até hoje.

A título de demonstração, apenas, ocorre-me comparar na pintura duas obras que acompanham as diferenças por Lobato apontadas em prosa. A primeira Independência ou
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Morte
, pintada em Florença, no ano de 1888, pelo paraibano Pedro Américo de Figueiredo e Melo, por encomenda do governo de São Paulo. Uma bela obra, sem dúvida, mas ajeitada para representar um “marco”, “momento histórico”, “gesto heroico”, “instante épico”. No dizer de Lobato, seria a sala de visita de um povo, criada para formar no espírito uma ideia que ficará gravada no imaginário de gerações de brasileiros. Em analogia ao dizer de Lobato, pode-se dizer que aqui se pretende fazer História. Teria sido essa a cena do “grito”? Ao que parece não foi, mas nunca saberemos ao certo.

Muito desse tipo de “arranjo” tem sido feito em nome da “Memória”. Há uma nítida confusão em fazer Marketing sobre realizações de projetos memoriais, isto é, promover a imagem da entidade patrocinadora do evento, com o fazer dos conteúdos uma expressão de Marketing, isto é, de promoção de pessoas ou instituições objetos do enredo. Isso é muito comum nos projetos empresariais, cujos resultados são edições caríssimas, na maior parte das vezes contendo apenas imagens, e que servem exclusivamente para distribuição na forma de “brinde”, de uso como “adorno”, mas sem valor histórico e cultural. Evidente que há um marketing cultural, desportivo e ambiental, mas isso diz respeito à busca de valorização de uma dada “marca” pelo que investe em cultura (memória), esporte e ambiente, e nada há contra isso. Quem, entretanto, está interessado em pessoa, instituição ou atividade como “peça” de Marketing? Ninguém, e esse é o motivo pelo qual os riquíssimos livros de “Memória” de empresas são distribuídos como brindes, e depois, para alegria de papeleiros, tornados objetos de descarte.

A segunda obra, à esquerda, chama-se Saudade, do paulista José Ferraz de Almeida Júnior, exposta na Pinacoteca do Estado de São Paulo. Exceto pelo fato de ser igualmente
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um quadro a óleo sobre tela, e nada mais tem em comum com
Independência ou morte. Não se trata de nenhuma encomenda de governo com a finalidade de criar ou promover um ato heroico. Aliás, ao que se sabe nem mesmo foi pintada por encomenda. Retrata um sentimento que é conhecido de todos, e que pode ser vivenciado por todos: saudade. São as chinelas de que falava Monteiro Lobato, a humanidade que nos aproxima ao quadro pela identidade. Aqui se pretende memória. A moça, uma desconhecida mulher de fazenda, mas o sentimento que expressa é universal, e atemporal. O sentimento que ela expressa pode ser compartilhado por todos nós, de onde seu caráter social.

Sim, isso é memória, atributo de cada um de nós, e na maior parte das vezes recheada de afetividades, algumas alegres, outras tristes, e que nem sempre gostamos de evocar. Muitas vezes nem mesmo as alegres, pois invariavelmente dizem de um tempo que não pode ser reproduzido, exceto na lembrança. O que dizer, então, das tristes? De circunstâncias que não temos como mudar? Na maioria das vezes lembranças que trazem dor, culpa e arrependimento. Amor e ódio, orgulho e humilhação, enfim, o reviver de todas as vicissitudes possíveis nos vastos limites da humanidade. Sim, lembrar é reviver.

Por que, então, essa humanidade espontânea quase nunca é adotada como caminho em projetos memoriais? Habitualmente por dois motivos. O primeiro porque se faz a partir de anônimos, de gente sem “notoriedade”, e o segundo porque essa gente não tem verniz, e os adeptos do memorialismo feito em sala de visitas temem que mostrem a alcova, as chinelas, o penico, o quarto dos criados, a sala de jantar, a privada, o quintal de que falava Lobato. Acredite quem quiser, mas nunca estive em “saia justa” diante desse modelo. Já não posso dizer o mesmo quando diante de egos imensos, quando das memórias o que interessa ao entrevistado, é apenas o palco para o espetáculo das fogueiras das vaidades.

Essa é a razão principal pela qual recomendo que projetos memoriais sejam edificados em torno de partícipes desinteressados, digamos assim, dos que não precisam fazer da participação uma escada para outra finalidade. Recomento resgatar memórias de uma igreja pelos fiéis, de um clube e associação pelos associados, de um sindicato pelos trabalhadores da categoria por ele representada, de uma escola pelos alunos, e assim sucessivamente. Como queremos saber do passado, certamente pelo resgate de memória de antigos fiéis, associados, trabalhadores, alunos, etc. Eles estiveram presentes nesse passado que nos interessa, viveram momentos desse passado, têm lembranças, e muitas vezes fotografias, cartas, uniformes, e outras coisas que testemunham esse passado, mas na condição de testemunhas vivas. A isso chamo de bom modelo de projeto de Memória Social. Não falseia e não impede a revelação de humanidade contida na História de instituições, pessoas e atividades. Afinal, sempre importante lembrar que, na maior parte das vezes, não estamos falando do que foi, mas do passado do que ainda é. Queremos apenas saber como foi, o que hoje muitas vezes continua sendo, embora, talvez, com outras peculiaridades.  

O problema dessas versões chics de Memória, na maior parte das vezes traduzidas em obras caríssimas e produzidas com apelo quase exclusivamente visual, tornam-se moda a ser seguida. Desse equívoco resultam, já que falamos em moda, duas tendências: muitas instituições acreditam não ter condições econômicas para lidar com projetos de memória; enquanto muitas outras acreditam que lidar com Memória não tem ciência e, dessa maneira, fazem o que bem entendem. Não conheço instituição capaz de promover projeto dentro dos preceitos teóricos e metodológicos de Memória Social, e ao mesmo tempo capaz de atender ao binômio da boa qualidade e bom custo. Normalmente tratam tais projetos dentro dos limites do Marketing ou do Jornalismo, isto é, como promoção ou notícia. Raramente, porém, nas tênues fronteiras da História e da Literatura. Há, ainda, os que se limitam a arquivar, tendência que tem aumentado: gravam e degravam entrevistas em áudio, gravam entrevistas em vídeos, armazenam fotos e outros objetos dos entrevistados, na esperança que “um dia” esse material seja fonte de pesquisa para historiadores e memorialistas. Talvez!

Algumas outras coisas devem ser também consideradas.

O fato de hoje as tecnologias de gravação de áudio e de imagens estarem ao alcance de quase toda gente, nada mais significa do que apenas isso: acesso fácil e econômico a essas tecnologias. Pode-se dizer o mesmo das facilidades de acesso, produção, edição e publicação de conteúdos pelas redes sociais: apenas facilidades. Todas essas maravilhas, porém, são meios, apenas meios. Gravar e degravar têm dois trabalhos: o de gravar e o de degravar. Gravar em vídeo e guardar tem dois trabalhos: gravar e guardar. Arquivar coisas tem dois trabalhos: organizar e arquivar. Onde, porém, está o trabalho memorial?

Entrevistar pessoas significativas, isto é, que tenham vivência com o que se pretende resgatar por meio de suas memórias, é muito mais do que colocar diante delas colocar um gravador ou filmadora e apertar a tecla rec. Um dos zelos com entrevistas dessa natureza consiste em resgatar vivências que vão além do reduzido foco do interesse temático, isto é, de tratar o entrevistado como se diante de inquérito policial, pois o que se resgata é memória de vida (biografia), dos vínculos diretos com o foco de interesse, mas também com o contexto social, cultural, econômico e talvez político em torno do vínculo restrito.

Lidamos com memória afetiva de pessoas, e não com memória do disco rígido de um computador ou de documentos guardados em algum arquivo físico. Não estamos fabricando imagens, e tampouco registrando notícias que se tornarão descartáveis no dia seguinte. Estamos construindo algo que deverá perdurar no tempo, e no futuro se tornar fonte de pesquisa para historiadores, — de onde a importância de cuidados teóricos e metodológicos —, mas na condição de trabalho que tem começo, meio e fim, isto é, de onde cada entrevista, com depoimentos e material emprestado para aproveitamento (fotos, documentos, etc.), ser uma unidade de trabalho devidamente concluída, dispondo assim de autonomia, embora capaz de conjugar-se a outras de mesma matriz.

O trabalho memorial, portanto, não consiste apenas em gravar, degravar, organizar e arquivar, mas em realizar uma obra memorial, da qual ele, memorialista, é o autor. Também faço emprego de gravador, mas para que o conteúdo gravado sirva de fonte para mim, e não para divulgação a terceiros. Também solicito fotos e documentos de propriedade de entrevistados, mas a título de empréstimo para que eu possa reproduzi-los, mas jamais irei divulgar a terceiros, mesmo sendo reproduções, sem a devida autorização do proprietário. Terminado o trabalho e ele será primeiro apresentado ao entrevistado, e depois publicado apenas se ele autorizar. A obra é do memorialista, mas as memórias são do entrevistado, razão de ser citado, e de nada ser publicado sem a sua concordância. Se não interessa fabricar herói ou mártir, interessa preservar a imagem pública do entrevistado. Afinal, gente que nos recebe na cozinha, nos serve café e, de coração aberto, compartilha não simplesmente informações, mas vivências, eis aí algo que merece todo o nosso respeito.

Não é raro, além da unidade memorial devidamente concluída e entregue, que clientes queiram também o material gravado, fotos, e outros recursos que serviram de fonte para a realização do trabalho. Bem, eu não entrego, e o motivo é simples: o vínculo com a pessoa entrevistada se deu comigo e, nessa medida, eu sou o responsável por tudo que me foi cedido a título de confiança. O cliente receberá material que poderá divulgar por meio eletrônico ou impresso, previamente autorizado para esse fim pelo entrevistado, mas apenas isso. O que faço com o material primário? Apago ou entrego ao entrevistado, pois esse é meu acordo com ele. Aliás, não recomendo a clientes que arquivem e muito menos que divulguem áudio e vídeo. Talvez um trecho, um pequeno trecho, significativo, mas não mais do que isso, e mesmo assim com autorização expressa do entrevistado.

Pelo fato de o trabalho memorial não ser produto de descarte, não faz sentido registrar conteúdos em mídias que sofrem constantes variações tecnológicas, pois sempre há perdas quando os conteúdos são recuperados,  do celuloide ao vhs e deste para o digital, por exemplo. Além disso, produção de áudio e vídeo oscila do minimamente amador ao mais refinado profissionalismo. Essa diferença passa pela quantidade e qualidade técnica de pessoas envolvidas, até a igual quantidade e qualidade de equipamentos empregados. Com essas mídias a qualidade está necessariamente associada ao custo. Confiar a imagem do entrevistado e o conteúdo da entrevista a um produto amador e mal feito é falta de respeito. Com essa convicção, recomendo sem temor a adoção de mídias gráficas, sejam virtuais ou impressas.  Bom lembrar que, desde Gutemberg, os assim chamados gêneros textuais permanecem passíveis de conservação e de reprodução, preservando seus conteúdos interiores, independente de quanto se queira com isso gastar. Não me parece haver lugar para modismos em projetos memoriais.
Rogério Centofanti
São Paulo, agosto de 2016