“É sempre uma simples questão de atrair as pessoas, quer seja em uma
democracia, uma ditadura fascista, um parlamento ou ditadura comunista.
Proclamando ou não, as pessoas podem sempre ser trazidas para o comando dos
líderes. Isto é fácil. Tudo que você tem que fazer é dizer que elas estão sendo
atacadas, censurar os pacifistas por falta de patriotismo e por exporem o país
ao perigo. Isto funciona do mesmo modo em todos os países”.
Hermann Wilhelm Göring
Não há como fechar os olhos para a existência de epidemia de agressividade, de intolerância, de ignorância bruta, de desonestidade de propósitos e de ranço, sempre com pronunciada carga de histeria, sendo propagada por hordas bestificadas que batem panelas, rugem em praças e proliferam feito bactérias pelas redes sociais. Exceto pela diferença de polaridade e fica-me uma sensação de déjà vu, razão, talvez, de lembrar-me do caleidoscópio, instrumento ótico que a cada movimento de um tubo nos oferece à visão diferentes combinações de desenhos geométricos. Vá lá que, neste caso, não se aplica o lado belo (kalos) prometido na composição do nome do instrumento. Tampouco obtém-se geometrias, mas desenhos e configurações que mudam a cada movimento no tubo do aparelho. Diferença de polaridade, sim, pois no passado, ainda sem o fenômeno da internet, e a imagem de hoje faz-me lembrar que já houve surto de forças opostas às atuais, notadamente quando a ditadura militar começava a ruir, e muitos viam-se diante da oportunidade de liberar poderosa energia armazenada por duas décadas de repressão e de opressão. O outro lado encolheu-se desde aquele período, evidentemente, guardando no armário o lado patrulheiro, araponga, censor, agressor, e esperou que o tempo apagasse os rastros e as feridas. A turminha da ditadura de 1964 - importante lembrar - tomou poder pelas armas em meio a acalorados apelos "populares" ao som de panelaços, e em nome da moralidade cívica. Entramos em duas décadas de ditadura sob o clamor da Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Déjà Vu, portanto, pois há alguns desses ingredientes na atualidade.
Por que isso, agora? Porque neste momento, quando a
promessa de prosperidade com raiz no igualitarismo social começa a fazer água,
muitos se acham diante da oportunidade de liberar a energia que neles ficou aprisionada
por também aproximadas duas décadas. Agora, e eis a vazão de reações
refreadas diante dos efeitos secundários disso que se anunciou como
igualitarismo, ou que os ora surtados entendem como tal.
Essas alternâncias vêm de longe, e até parecem cíclicas. Ao final das
ditaduras, no início da década de 90, vivia-se o fim da guerra fria, da União
Soviética, a derrubada do muro de Berlim, e mantinha-se estranheza aos que perseveravam no
apelo ao nacionalismo, mesmo porque o nazismo ainda assombrava pelo menos uma
geração, ainda que em parte pelo bombardeio de poderosa propaganda. A época era momento de desfraldar bandeiras em defesa da paz, da
liberdade de expressão, da convivência pacifica entre os povos, de abertura das
fronteiras aos mercados, e tudo isso deu fôlego à globalização, agora apresentada
como fator de insegurança. Tudo conspirava a favor dessa grande paz desde o fim
da Segunda Grande Guerra, isto é, desde meados da década de 40. Na Psicologia,
por exemplo, área inteira que investigava diferenças comportamentais por
gênero, etnia, nacionalidade, etc. simplesmente desapareceu. Inaugurou-se a
Psicologia “politicamente correta”, com base no conceito de inclusão, ainda
hoje e ao menos por enquanto bastante valorizado. Algo similar aconteceu na
Antropologia. Globalizava-se, portanto, em duas dimensões paralelas: econômica
e cultural, pelo dinheiro e pela ideologia.
Ficou difícil, a partir de 1990, se falar em
direita e esquerda, mesmo porque no plano liberal o capitalismo tornou-se
praticamente hegemônico, mas em meio a medidas que contemplaram o plano
socialista de progresso social, quase sempre ancorado nos conceitos de
diversidade e de inclusão. Convivência pacífica e civilizada, uma vez que o
discurso de redução de desigualdades em nada conflita com interesses liberais,
lembrando que toda e qualquer inclusão resulta,
invariavelmente, na criação de novos “nichos de
consumo”. Esse equilíbrio de interesses, porém, não teve a duração esperada no
avançar pelo século XXI, e fez água a partir da crise financeira de meados da primeira década de 2000.
Aliás, crise da atual e terceira onda globalista. Como nos ensina Leonid Savan,
“a primeira onda de globalização está relacionada com
a época de grandes descobertas anteriores à Primeira Guerra Mundial. A segunda,
de 1947-1991, é a época do mundo pós Yalta e da Guerra Fria. A terceira começou
nos anos 90 e continua até o momento atual gerando uma infinidade de efeitos,
como a virtualização da economia, a relocalização e a emergência de sociedades
em rede”. O velho muro que separava com clareza direita e esquerda, hoje separa
globalistas e nacionalistas, ao menos na Europa, em vários países - dentre eles
os Estados Unidos -, mas não no Brasil. Aqui, direita e esquerda são termos que
“parecem” separar os que acreditam em riqueza como fenômeno de acumulação individual
daqueles que acreditam em riqueza como fenômeno de inclusão social, embora,
também, adotado o padrão de consumo como parâmetro de
"desenvolvimento". “Parecem”, porém, uma vez que nenhum critério é
claro e minimamente definido por nenhum dos dois lados. A esquerda reclama da
ausência da “verdadeira” esquerda, e a direita da “verdadeira” direita, seja lá
o que queiram dizer com isso. Presume-se que saibam.
Sendo assim, o que desperta no Brasil do presente o
“direitismo” que parecia erradicado? Reflexo da insegurança posta por tantas e
tamanhas mudanças repentinas na vida econômica, cultural, política e social?
Talvez! Afinal, não escapa dia sem que sejamos tomados de surpresa por notícias
sobre fatos ou boatos que de uma forma ou de outra agudizam o terror das
incertezas. O que cala a esquerda no Brasil? A avalanche de denúncias de
corrupção praticada por um partido de esquerda, e que cobriu de vergonha
pessoas respeitáveis que nele um dia depositaram sua confiança? Possível! Sobre
incertezas poderíamos falar do pensamento de John Kenneth Galbraith, assim como o de Eric John Ernest Hobsbawm, mas não
ajudaria em nada para compreender a morbidade da carga predominantemente
emocional dessa gente que pratica política como se fosse torcida de
futebol. Na prática exercita a convicção irracional do que denomina da
“obrigatoriedade de um lado”. Tem “posição”, diz essa gente, mas sempre com
base nas poucas alternativas que à ela é dada para escolha, lembrando que não cria nenhuma.
Essas
bestialidades todas, afinal, nascem em virtude de incertezas, ou servem-se
delas para sair dos corpos onde sempre estiveram aprisionadas? A mim parece
clara a segunda hipótese. De qualquer modo, e apenas intuitivamente no homem
comum, nesse mesmo que bate panelas, inunda as praças e gralha pelas redes
sociais, sempre expressões que contém elementos retrô dos paradigmas
políticos conhecidos de um passado não tão distante. Essa gente replica
os modelos vivenciados no século findo, motivo, talvez, de não encontrar
entre eles anarquistas. Reafirma-se Leonid Savan, pois “no último século observou-se que três ideologias
fundamentais estavam lutando entre si, disputando exclusividade e dominação.
Primeiro apareceu o liberalismo, que considera sujeito da história o indivíduo
desembaraçado do complexo da herança cultural e das relações intersociais. Em
reação ao sistema capitalista burguês, expresso pelo liberalismo, apareceram o
comunismo e o marxismo. Finalmente apareceu o fascismo, e o nacional-socialismo
como uma versão daquele, mas foram os primeiros a desaparecer do cenário
internacional imediatamente após a derrota da Alemanha em 1945”.
São essas as referências implícitas,
inconscientes, que se encontram digladiando, embora, insisto, intuitivamente:
liberais, socialistas e nazistas. Para dizer de outro modo: os que acreditam em
cada um por si e deus por todos, os que acreditam que somos todos iguais e que
devemos proteger uns aos outros, e os que acreditam que os iguais devem se
juntar e subjugar ou aniquilar os diferentes. Nem mesmo se esboça uma discussão
sobre o que Aleksandr Dugin denomina “a quarta teoria política”. Como ele diz,
e aqui se observa, é que “hoje o mundo é dominado pela impressão de que a
política terminou - ao menos a que nós conhecemos”. Eis uma das razões para
essa caminhada de regresso: ao invés de caminhar para o futuro o século XXI
continua pautado pela Era da Informação, e não pela do Conhecimento, como
imaginaram alguns expoentes do visionarismo otimista. Pessoas consomem
informações como se fossem salgadinhos em bandeja de festa, chegam mesmo a
colecioná-las, e sobre elas formam opiniões como se fossem conhecimentos, mas
sobre elas não desenvolvem nada que se possa de fato chamar de conhecimento. É a esse abundante exercício de
opinionismo raso que parece referir-se Umberto Eco ao afirmar que “as
mídias sociais deram o direito à fala a legiões de imbecis que, anteriormente,
falavam apenas no bar, depois de uma taça de vinho, sem causar dano à
coletividade. Diziam imediatamente a eles para calar a boca, enquanto agora
eles têm o mesmo direito à fala que um ganhador do Prêmio Nobel. O drama da
internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade”. De fato,
nada a aprender com essas pessoas - exceto pela falta de cuidado o despertar de impulsos sadomasoquistas -, mesmo porque nada mais fazem do que repisar
os mesmos bordões. Fica-se e vive-se bem melhor longe delas.
Gira-se um
pouco mais o caleidoscópio e nota-se, na mentalidade da maioria desse tipo de
gente, a presença constante de dois pressupostos que permeiam todas as suas
ideias afetivas: maniqueísmo e determinismo. Afinal, se para essas pessoas a
vida nada mais é do que sucessivos capítulos da eterna luta entre o bem e o
mal, e no plano terreno e celestial nada acontece por acaso, como imaginar
qualquer evento sem polaridade (bem ou mal) e sem motivo, sem causa, sem
determinante? Nessa medida, lembrando que como os iguais são “do bem”, e os
diferentes “do mal”, o que mais crer senão que o mundo só encontrará paz quando
os demônios forem convertidos – para os que creem em livre arbítrio, e disso
imaginar que “bem” e “mal” sejam escolhas -, ou aniquilados – para os que creem
na condição de “bem” e “mal” como destino? Essa é a matriz dos pensamentos,
sentimentos e ações das hordas. Bem e mal, moral e imoral, justo e injusto, e
assim conduzem seus juízos e ações de maneira estritamente bipolar, e por isso
mesmo beirando a patologia.
É perda de
tempo perguntar a essas pessoas o que significa ser “do bem”, “do mal”, e principalmente
o que entendem por “moral”. Aliás, perda de tempo é fazer-lhes qualquer
pergunta, pois pode lhes suscitar dúvida, e isso é tudo com o que não conseguem
conviver, pois pode lhes abalar a crença, única coisa de que dispõem na vida como
sinônimo de certeza. Evidente que estão todos convencidos da posse da verdade.
Pior do que esses apenas os complotistas, isto é, os atormentados pelas teorias
conspiratórias. Lado bom - se assim se pode falar sobre eles - é que não atuam, pois se sentem perseguidos, e nessa medida vivem reclusos em esconderijos. São os megamaniqueistas e os megadeterministas. Se para crentes
“não cai folha de uma árvore que não seja pela vontade de deus”, para o
complotista nada no reino humano acontece que não seja pela vontade de uma
força poderosa, oculta e perversa que manipula todos os cordeis da vida
econômica, social e política dos homens. A “força oculta” – e cada complotista
tem a sua segundo as próprias idiossincrasias – é a razão primeira, única e
última de todas as misérias sociais, materiais e morais das sociedades e
nações. Um delírio tornado lógico pelo emprego de uma racionalidade
atabalhoada, esquizofrênica, e também com auras de certeza e verdade. Se
adotarmos a definição operacional de loucura proposta por Umberto Eco, o
conspiracionista é um louco: “O louco procede por curto-circuitos. Tudo para ele
demonstra tudo”. Afinal, se não cai folha de uma árvore que não seja pela
vontade de deus, como pode alguém não notar a presença dele, uma vez que está
em todo e qualquer movimento, inclusive no caleidoscópio? Basta substituir deus
por qualquer outra poderosa força mundana, e a “prova” da existência do “mal”
está a mostra em todos os cantos. Criaturas como essas não
são tão poucas, e neste caso não se “beira” a patologia: mergulha-se
nela.
Esses
pensamentos e sentimentos são milenares. O que mudou da antiguidade para hoje é
que, com os incríveis avanços no plano das comunicações, eles se tornaram
visíveis para grande quantidade de pessoas, ao mesmo tempo, e em quase todos os
lugares. A internet trouxe junto a essas mensagens repletas de emoções
praticamente o mesmo efeito presencial dos fenômenos de multidão, e nisso o
aspecto que faltava para completar o ciclo da epidemia. Multidão diz de uma
reunião praticamente casual de pessoas, e que na maioria das vezes nem mesmo se
conhecem. Os passageiros que compartilham o mesmo carro de um trem ou metrô. Os
expectadores de uma mesma sessão de cinema. Até mesmo torcedores de futebol em
um estádio. O encontro de muita gente na internet forma uma multidão, embora
virtual. Não diria no facebook, pois, apesar das pessoas anexarem “amigos” que
nem mesmo conhecem, resta sempre uma relação mais ou menos civilizada entre
“curtidas”, “compartilhamentos” e “comentários”, pois entende-se que cada
página é um espaço privado. O surto ocorre nos espaços que podem ser
frequentados por quem desejar, como no carro de um trem ou metrô, sessão de
cinema ou mesmo estádio de futebol. Nesse caso, grupo de desconhecidos - mas
dotados dos mesmos pontos de identidade - que luta ferozmente pelo domínio do
território que lhe convém ocupar. Isso acontece principalmente com mídias
abertas que reservam "espaço colaborativo para comentários”. Tornam-se comunicadores voluntários dessas mídias, o que lhes dá sensação ainda maior de poder, e agora também de prestígio. Evidente que, quanto mais vulgar
a mídia, mais vulgares são os comentaristas, incluindo gente praticamente
analfabeta. São nesses espaços que, como no passado observou Gustave Le Bon ao
tratar do comportamento das multidões, “o indivíduo adquire um sentimento de
potência invencível”, cria-se o que também ele denomina de “unidade mental”, e
que ocorre, ainda de acordo com ele, por “contágio mental”.
É exatamente
o que acontece. Essa legião fica à espera da publicação de qualquer notícia que
lhe sirva como sinalizador para o despertar das patologias. Não é qualquer
notícia que tem esse ingrediente que funcionará como se fosse feromônio. Ela
precisa ter elementos que permitam o exercício do opinionismo colérico, e
repleto de indignações dramáticas. Quase sempre de natureza política. Grande
negócio para as mídias digitais que usam e abusam desses viciados - uma vez que
é exatamente o que são: viciados, dependentes da adrenalina do ódio – para
sobre eles fazer dinheiro. Divertido notar que, a exemplo da esquerda, a
direita também não confia na imprensa, mas vive de suas notícias, alimenta-se
delas, como os peixes de aquário da ração que lhes é fornecida. A mesma
imprensa, diga-se, se para a esquerda representa interesses do capital, da
burguesia, para a direita representa interesses dos comunistas. De fato, mudam
apenas de polaridade na convicção de que o mundo se divide entre os que estão a
favor e contra eles.
Em grupos
fechados essas notícias são incorporadas em e-mails e enviadas a
conhecidos, de quem nada ou pouco se espera. É a militância virtual e a domicílio. Nos
noticiários, entretanto, se comportam como pombos que cercam um idoso que todos
os dias lhes atira pipocas. Mal a notícia é publicada e minutos depois conta
com muitas dezenas de comentários, quase todos expressando a mesma opinião, e
também quase sempre a mesma carga emocional. O fenômeno dura pouco, pois
abandonam essa notícia e correm imediatamente para outra recém publicada, onde
reproduzem as mesmas falas e a mesma agressividade, ainda que indevidas para
aquela matéria. Neste caso, e além do que sobre essa gente escreveu Umberto
Eco, soma-se a observação de Javier Marías: “sempre houve
imbecilidade. Imbecis iam ao bar, tornavam públicas as suas imbecilidades, mas
é agora que se organizam, com grande capacidade de contágio. E há um problema
agregado: as pessoas se intimidam diante de internautas exaltados e se
desculpam sem motivos. E as pessoas sofrem represálias. É truculência. E não há
melhor forma da truculência triunfar do que intimidando e amedrontando”. O
termo é adequado: truculência. Truculência virtual, mas truculência.
As investidas dos que recorrem aos jogos das
explicações com base em causalidades teorizadas para falar sobre esses
fenômenos são de pouca ajuda, até por conter ingrediente complotista. Exemplo
disso, e recente, foi um escritor inglês atribuir à obra de Milton Friedman -
contendo os fundamentos do neoliberalismo - a decisão do Reino Unido, em
plebiscito, de divorciar-se da União Europeia, assim como dos americanos
guiarem Donald Trump à vitória nas eleições dos Estados Unidos. Como se os
interioranos da Inglaterra, País de Gales e Escócia tivessem conhecimento das
obras de Friedman para formar opiniões que converteram em votos, assim como os
dos interioranos dos Estados Unidos em favor de Trump. Também não leram os
franceses do interior que possivelmente elegerão Marine Le Pen, e muito menos
os brasileiros que deverão em 2018 conduzir a Brasília atores travestidos de
vingadores, justiceiros ou, talvez até lá cansados, de pacificadores. Eleitor
não sabe. Eleitor crê, e toma decisão com base em crença.
Aqui, no país tropical, e não é que um opinionista
de província resolveu publicar um texto onde atribui aos paulistas o atraso do
Brasil? O pior é que mídia que se diz de conteúdo publicou. Deve o sujeito
imaginar que milhões de paulistanos, todos vestidos de terno e gravata, saíram
de shoppings, marcharam às urnas e elegeram Doria no primeiro turno, da mesma
forma que milhões de paulistas saem todos os dias em entradas e bandeiras
Brasil à dentro – subindo o rio Tietê de armas e bagagens - impedindo o
desenvolvimento político e econômico do restante do país. Ninguém disse ao
infeliz que os barões do café se foram com o crack da Bolsa de Valores
de Nova York em 1929, e que os paulistas perderam a revolução
constitucionalista de 1932. Nem os paulistas sabem desse poder todo que a
criatura alimenta em seu imaginário, mas certamente de tantos outros, e que
reagem epidemicamente.
Interessante é que superficialidades como essas
rapidamente encontram adeptos, e se transformam em explosões emocionais. Por
quê? Justamente porque são superficialidades, estereótipos, simplismos,
reducionismos acríticos, mas que apontam o dedo na direção de “culpados”. “É o
neoliberalismo”. “É a esquerda”. “É a direita”. “São os incrédulos”. “São as
oligarquias”. “É a burguesia”. "Illuminati". Entes, isto é, figuras que são, independente da
forma de ser. Abstrações, pois entes imateriais, impalpáveis e intangíveis.
Mitos que servem para ocupar o lugar do desconhecido: o “mistério” dos caipiras
e o “sistema” dos que se imaginam críticos espertos. Rótulos que parecem
significar alguma coisa, e contra os quais se insurgem multidões raivosas
movidas apenas por opiniões vagas e muitas vezes contraditórias, mas com força
emocional de crenças por eles tomadas como se fossem verdades, certezas, e
algumas vezes “reveladas”, pois a eles cochichadas ao pé do ouvido pelo
Altíssimo. Afinal, e para minha surpresa, não é que os Carecas do ABC
publicaram manifesto no qual declaram arrependimento das práticas trogloditas
do passado, e agora reclamam para si raízes ideológicas com bases
nacionalistas, e em defesa de Pátria, Deus e Família? Não é que a Frente
Integralista Brasileira continua ativa? As vicissitudes do momento fazem com
que essa grande fauna saia das sombras, pois agora embalada pelos ventos
favoráveis das circunstâncias. Na lógica comum de “a ocasião faz o ladrão”,
digo que o espírito de rancor e vingança que habitava faz tempo os armários
dessas criaturas
fermente e expanda, encontre também ao acaso almas gêmeas no mesmo tormento
reprimido, e finalmente protegido pelo efeito de grupo alcance voo com coragem e audácia de desafio e ameaça.
Isso não quer dizer que ideias que se transformam
em corrente de pensamento não tenham influência nos comportamentos. Reconheço
um autor cuja obra promoveu mudanças no modo de pensar, sentir e fazer de muita
gente - Michael Hammer - o criador da reengenharia. Não mudou, porém, porque as
pessoas leram seus livros e resolveram tomá-lo como guru, mas porque os
executivos e consultores de empresas viram em suas ideias excelente
oportunidade no momento que o emprego crescente de tecnologias de informática e
robótica tornava obsoleta a produção com base na velha manufatura. Hammer surge
na hora apropriada e com ideias convenientes para esse momento. A aplicação de
suas ideias mudou a percepção que o trabalhador fazia de si e a incorporação da
ideologia do homem multifuncional como meio de sobreviver ao downsizing,
isto é, ao enxugamento de cargos que reduzia custos, e ainda aumentava a
produtividade dos remanescentes. Downsizing, aliás, único conceito que
empresários aprenderam com Hammer – enxugar, demitir. Nem mesmo souberam que
Hammer seguia Karl Marx na convicção de que o trabalho modela a psicologia das
pessoas, e modela mesmo, de onde seu caráter verdadeiramente revolucionário,
isto é, de modificador de valores e condutas. O movimento sindical não viu, as
esquerdas não viram, mas ocorreu uma profunda mudança na mente proletária.
Continuamos sob os efeitos dessa revolução. O
trabalhador, então convertido em dono do ofício - embora não fosse -, chamou para
si a responsabilidade pela própria formação, inclusive com a tarefa de modelar
em si o próprio repertório comportamental pré-definido como modelo exigido pelo
mercado. Incrível, mas já não bastava vender a força de trabalho. O máximo foi
deles exigir a auto formatação de “resiliência”, isto é, de manterem a fleuma
em qualquer circunstância, por pior que ela seja. Até hoje proliferam coachs, consultores,
“especialistas”, cursos, seminários, livros de autoajuda e toda uma linha de
produtos e serviços que visam produzir de forma seriada o modelo de pensamento,
sentimento e ação do “profissional de sucesso”, do "homem de sucesso", e mais modernamente do
empreendedor, também “de sucesso”, é claro. Não são e tampouco produzem algo
similar neles e nos outros, mas o discurso do “hei de vencer” sempre funcionou
como cenoura para se fazer acompanhar de tolos. O meio altamente competitivo cria as condições para a definição de "sucesso", como sendo a capacidade do indivíduo "vencer" na selva das relações sociais e econômicas, por isso entendendo a acumulação de bens e a conquista de prestígio social. O binômio Winner & loser passou a guiar valores em toda uma geração, e determinar condutas entre jovens principalmente das periferias. Interessante observar a indignação dos "bem de vida" diante da crescente violência dessa juventude, como se nada tivessem a ver com os valores que permeiam o que classificam como delinquência.
Foi-se a figura do trabalhador. Até igrejas pentecostais criaram “programas” de autodesenvolvimento pessoal e profissional. Eis o homem-ferramenta, mas o movimento sindical não notou, e tampouco os intelectuais e políticos de esquerda. Eis a idealização do self made man encarnada em Doria e Trump. Foi-se o tempo do cristianismo católico, da “comunhão”, quando era mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico alcançar o reino dos céus. O deus pentecostal é dos ricos, para os ricos, e sua graça é medida na vida do crente pelo número de imóveis, de móveis e tamanho do patrimônio que a ele concede, mas em caráter individual, ou quando muito familiar, a essa unidade patrimonialista, e assim tomada desde o surgimento da sociedade liberal burguesa, uma versão brega e depauperada da aristocracia. Na chamada pós-modernidade tudo isso vem chegando aos poucos, desde 1990, e o trabalhador sendo convertido aos poucos ao liberalismo. Também aqui o movimento sindical não deu importância, como tampouco intelectuais e políticos de esquerda.
Foi-se a figura do trabalhador. Até igrejas pentecostais criaram “programas” de autodesenvolvimento pessoal e profissional. Eis o homem-ferramenta, mas o movimento sindical não notou, e tampouco os intelectuais e políticos de esquerda. Eis a idealização do self made man encarnada em Doria e Trump. Foi-se o tempo do cristianismo católico, da “comunhão”, quando era mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico alcançar o reino dos céus. O deus pentecostal é dos ricos, para os ricos, e sua graça é medida na vida do crente pelo número de imóveis, de móveis e tamanho do patrimônio que a ele concede, mas em caráter individual, ou quando muito familiar, a essa unidade patrimonialista, e assim tomada desde o surgimento da sociedade liberal burguesa, uma versão brega e depauperada da aristocracia. Na chamada pós-modernidade tudo isso vem chegando aos poucos, desde 1990, e o trabalhador sendo convertido aos poucos ao liberalismo. Também aqui o movimento sindical não deu importância, como tampouco intelectuais e políticos de esquerda.
A globalização, sabe-se, é resultado desse
encurtamento de distâncias nas comunicações e nos transportes, de onde a
abertura de mercados que gera acirrada competição, facilitação às ideias da
reengenharia e a interação cada vez mais pronunciada entre pessoas e povos, o
que abre as portas à dominância doutrinária do politicamente correto como forma
a reduzir “estranhamentos” por conta de diferenças culturais. Afinal, se o
trabalho se torna global, a economia se torna global, isso só “fecha” se os
comportamentos – pensamentos, sentimentos e fazeres – se tornarem igualmente
globais. O grande problema é que essas revoluções, e que se deram no plano das
mentalidades e dos sentimentos, não passaram de artificialidades. Funcionaram
enquanto havia pão, ainda que em fartura para alguns e migalhas para muitos. Na
incerteza quem tinha deixou de gastar, e passou a poupar até mesmo quireras.
Para a massa, e nessa hora, a ideologia do mérito mostrou o que realmente era -
mera ideologia - exceto para retardatários e recalcitrantes.
Foram muitos os movimentos do caleidoscópio, é
claro, mas a vida passou-se e em entrou no século XXI aos saltos, e uns após
outros. Cada vez mais a onda global avançava pelas aldeias, e ameaçava a
segurança modorrenta das províncias. As mídias incluíam a todos de forma
avassaladora, passando por cima de valores e costumes cultivados e respeitados
por muitas gerações. Por conta dessa condição, e a segurança significa retornar
ao momento anterior às mudanças que geraram a globalização: proceder à
retomada ao ponto onde cada um perdeu-se de si e da relação estável que tinha
com os outros. É disso que estamos nos ressentindo. Da busca de uma versão dos "velhos e bons tempos".
Evidente que esses movimentos todos, e aqui apenas
breve e imperfeitamente citados, não passam nem perto da consciência da imensa
maioria das pessoas. Elas intuem, pressentem que a situação que já não é boa
pode ficar pior, e parte delas sai em busca de “culpados”, pois nem mesmo lhes
ocorre o conceito de responsabilidade. Ninguém nunca viu as abstrações de que
falam os ditos politizados - oligarquias, neoliberalismo, etc. -, mas vê e até
mesmo convive com pessoas e situações concretas que na percepção distorcida
dessa gente representa aquelas abstrações. No passado as bruxas, loucos, judeus
e leprosos foram a encarnação do mal. Recentemente, e sob argumentos higienistas,
os fumantes se tornaram a visibilidade do vício, da fraqueza e da impureza.
Nessa época, candidatos a emprego faziam questão de registrar em currículo a
condição de não fumantes. Aliás, sempre registram em currículo o repertório
comportamental que imaginam ser desejado pelo empregador. Bem, eis o
neo-operário andando no arame, e exercitando o camalionismo sutilmente chamado de
flexibilidade. As “aberrações” de hoje são todos os demais “tipos” que podem
ser “vistos”, estigmatizados, e que foram trazidos com suas perversões ao mundo dos normais - acreditam os adeptos dos bons e velhos tempos - em
nome da inclusão. A “culpa”, portanto, é da esquerda, pois ela deu lugar para
essas deformidades no meio dos cidadãos e das famílias “de bem”. Algumas
extravagâncias, é verdade. Recentemente havia um gay se oferecendo para fazer
parte de uma força militar disposta a extinguir o Estado Islâmico. Motivo? A
intolerância de radicais islâmicos com gays e lésbicas. No geral, entretanto,
as motivações de ódio costumam ser invariavelmente as mesmas, notadamente
contra gays, incluindo o gay que deseja combater o Estado Islâmico. Que ironia. A situação chega a ser bizarra.
O ódio é alimentado no cotidiano, onde ocasiões não
faltam para seu exercício. Melhor dizendo, onde oportunidades não faltam também
para engolir a seco reações que muitos gostariam de manifestar aberta e
explicitamente. Afinal, pode-se conter a discriminação, mas nunca, porém, o
preconceito, que nada mais é do que um sentimento, e nada se pode fazer em
relação a ele, pois formado ao longo da constituição biográfica dos indivíduos.
Por outro lado, não existe preconceito que não possa ser legitimado por mecanismos de racionalização. De qualquer forma, fato é que muitas preferências e tendências também abandonaram o armário quando
dos ares de liberdade do período pós-ditadura, e mais oxigenados depois
que representantes de esquerda ocuparam governos. Abandonaram esses armários
com muito alarde, como se disso dependesse o reconhecimento desses grupos. Além
disso, abrigaram-se sob a proteção difusa das políticas do politicamente correto,
inegavelmente abraçadas pelas esquerdas, ainda que em boa medida com a
finalidade de angariar votos desses "nichos eleitorais". Para muitos
conservadores isso soou como provocação "da esquerda" aos valores da
moralidade cristã "de nossa gente", e agora reagem como se a esquerda
tivesse inventado tais preferências, tendências, e até mesmo as políticas do
politicamente correto.
Algumas opiniões frequentes, talvez uma ou outra por vezes emitida por nós mesmos, mas sem maiores consequências. Em muitas pessoas, porém, tornam-se obsessão, e são tomadas como expressão de certeza e de verdade.
Na percepção da horda, "tudo isso é coisa criada pela esquerda". Decadência, imoralidade, o fim da propriedade e da família. A esquerda responde pela criação e imposição de toda essa modernidade sórdida apresentada como se fosse luz, visando apagar a chama tênue, mas constante da tradição. Bem, tivesse eu a competência e talento de Honoré
de Balzac e escreveria volumes sobre biotipos e sociotipos que
nutrem essas emoções – elas sim “do mal”, ao menos para eles próprios, pois
corrosivas. Exercício de microfísica do poder, de que fala Michael Foucault,
tanto em esquerdopatas quanto em direitopatas, e que dela se servem para
alimentar e retroalimentar seus vícios. O que me dá sensação de estar em
caminho mais ou menos certo foi ter aberto páginas de parte dessa gente no
facebook, que é de onde se lançam pelas redes. Quem imagina que se trata da
“burguesia”, de gente endinheirada, da “elite”, engana-se. Gente pobre da
periferia das metrópoles, e mesmo da periferia de cidades pequenas e médias. Os
biotipos são inconfundíveis, bem como as condições de vida que se pode deduzir
pelo contexto das fotos que postam em seus perfis. Na melhor das hipóteses
proprietários dos pequenos e modestos imóveis que habitam, mas falam deles como
se fossem latifúndios a serem preservados da saga invasora dos comunistas. Falam das famílias como se herdassem títulos de nobreza, e de deus como se tivessem ancestralidade direta no monoteísmo hebreu. Todos falam em nome da moral, embora não tenham ideia do que seja ética, e menos ainda da estética como guia de condutas. Engana-se, também, quem imagina que sejam nórdicos, arianos e tenham origem na Atlântida. São híbridos em quase em tudo. Quem
imagina que estejam concentrados no eixo sul-sudeste também se
engana, pois número expressivo se encontra no eixo
norte-nordeste. Fato é que deliram, e falam de um comunismo que
ficou nas primeiras décadas do século passado, muito longe do
Brasil e principalmente de suas vidas. Instigante, porém, notar que se trata de gente identificada com
a elite, ou ao menos com o que imagina representar pensamentos e
sentimentos da elite. No dizer dos psicólogos, é como se a transferência das próprias frustrações pudesse lhes remover os traços dos insucessos, dos fracassos, tais como desenhados nas mídias. Fazem mais: no esforço de emprestar autoridade às imbecilidades que publicam, a maioria se diz formada em universidades de renomado prestígio internacional.
Gente sem dinheiro e sem projeção social, de onde, talvez,
a indisfarçável necessidade de demonstrar poder, ainda que apenas imaginário.
Anônimos. Têm valores tipicamente pequeno-burgueses, e se identificam com
aqueles que tomam como modelo de "superioridade". Amam símbolos de força, de
riqueza, de “sucesso” e a maioria não é nem mesmo "emergente". Eis os eleitores de Doria e fãs incondicionais de Trump
e de Moro, por exemplo. Imaginam-se verdadeiros e sinceros - e não simples grosseiros - de onde aplausos a Bolsonaro, Malafaia e Joaquim Barbosa. São
insignificantes, inexpressivos e em boa parte das vezes demonstram a
intelectualidade de uma ameba. Mesmo os mais escolarizados dizem
invariavelmente as mesmas coisas, como se fosse mantra. São perigosos? Não.
Afinal, necessário lembrar que têm sentimento de potência apenas quando em
bando, multidão, ainda que virtual. Perigosos talvez se fisicamente juntos, como manada, a
exemplo de qualquer outra turba, como as torcidas organizadas. Os verdadeiramente perigosos atuam individualmente, e não cacarejam pelas redes sociais. Tornam-se viciados na troca de ofensas, e são encontrados todos os dias e nos mais diversos horários, embora invariavelmente nos mesmos pontos de encontro. E eis novamente o déjà vu que me faz
lembrar do caleidoscópio.
Rogério Centofanti
São Paulo, dezembro de 2016