São
casas simples com cadeiras na calçada
E na fachada escrito em cima que é um lar
Pela varanda, flores tristes e baldias
Como a alegria que não tem onde encostar
E na fachada escrito em cima que é um lar
Pela varanda, flores tristes e baldias
Como a alegria que não tem onde encostar
Gente
humilde – Chico Buarque de Holanda
Por vezes querem
me fazer crer que esforços nos campos da memória e da história aplicam-se
apenas aos grandes feitos e aos grandes personagens. Não surpreende que assim
pense a maioria das pessoas, incluindo a letrada, pois é onde costuma encontrar
os braços da história e da memória, inclusive em documentários nos meios de
comunicação. Com esse entendimento, guerras são expressões de generais, e
construções as artes de renomados arquitetos e engenheiros. Como se combates
não fossem travados por soldados anônimos, e a grande maioria das edificações,
outra coisa não fosse que o produto da idealização, habilidade e empenho de
pedreiros, que na maioria das vezes nunca passou perto de alguma escola. Dentro
dessa forma de conceber, o cotidiano é desdobramento desses grandes marcos,
grandes eventos, e a insignificante marcha dos homens-formigas pelo carreiro
seu reflexo, na faina de aparente mesmice determinada pelo destino da própria
sobrevivência.
Sem negar a
relevância dos grandes acontecimentos e seus personagens centrais, como deixar
de reconhecer que as escaramuças dos combates são travadas entre soldados
anônimos, e que cada batalha, por menor que seja, tem uma história que lhe é
peculiar, e com a dramaticidade de todas as violências? Como deixar de
reconhecer que tais experiências fazem parte da vida dos soldados que dela
participam? Como deixar de reconhecer que cada edificação, por menor e mais
simples que seja, tem a sua história, bem como a das pessoas que nela estiveram
envolvidas na idealização, construção e moradia? Não há grandes feitos sem a
participação anônimos, de homens-formigas, e que protagonizam o imenso volume
composto de pequenos feitos, dos quais o grande é quase sempre a expressão
sintética.
Por que, então,
não fazer história e memória das miudezas, na verdade muito mais extensas do
que as volumosas grandezas? Por que o focar na característica quase sempre
simplória da condensação, não raro em meio a fraseologia superficial, mas com
aparência de profundidade que dispensa explicações: sistema, processo, etc.?
Sem entrar no
mérito das diferenças entre história e memória, e tampouco sem a pretensão de pôr
em competição as grandes histórias e memórias contra as pequenas, que seja este
escrito um apelo em defesa das pequenas medidas.
Opiniões
contrárias dirão que história e memória de miudezas, de anônimos, não seriam de
interesse para ninguém, pois fatos e existências sem encantos, triviais e
comuns à imensa maioria dos mortais. Será mesmo?
Grande miudeza é
a trajetória das ruas que foram do chão batido ao calçamento asfáltico. Do
circo de cavalinhos que foi para o teatro, depois cinema, mais tarde aos vídeos
vhs, depois aos Dvds, e hoje ao youtube e canais de TV. Do “empreendedor” que
sustentou a família vendendo pipocas em seu carrinho de mão sobre a calçada da
esquina. Da venda que passou ao armazém antes de se tornar mercado e depois
shopping. Da livraria que desapareceu junto com os livros, assim como alfaiates
e sapateiros com a chegada das roupas e calçados prêt-à-porter. Das vilas operárias que foram ao chão para ceder lugar à
expansão da ganância imobiliária. É a história real da caminhada do capitalismo
e da moralidade burguesa-cristã em nossa sociedade, em nossas vidas, e que se
reproduz cotidianamente a cada vez que pagamos pelo simples cafezinho na
padaria, ou nos indignamos com os pecados da vedete.
Interessa a rua,
a velha casa, o que restou de uma praça, de um antigo mercado, uma ponte, uma
profissão quase extinta, e das pessoas que fizeram e ainda fazem parte dessas
cenas que resistem ao tempo e persistem em nosso cotidiano, mesmo que apenas na
memória. Nesses, e em casos análogos, encontra-se vida sem maquiagens, e a
espera de quem possa revelá-las com o devido respeito a tudo pelo que passaram
– alegrias, tristezas, sonhos, pesadelos, risos e lágrimas – cujo empenho não
está negado aos sujeitos mesmos dessas histórias, desde que dotados de alguma
sensibilidade e competência para tal.
O cotidiano está
repleto dessas grandes miudezas, e que guardam valor inestimável. Nele,
cotidiano, se encontra política, economia, urbanismo, ecologia, história,
memória, sociologia, mas apenas para olhos e espíritos de quem percebe e lida
com esses saberes em cenários semi-encobertos no cotidiano. Inacessível, porém,
aos aprisionados pela imersão acrítica na vida diária, e aos que enxergam o
mundo pelo que lhes é fornecido pelos noticiários e pelos livros, pelos que
precisam de quem lhes interprete os acontecimentos.
Como esquecer a
história de Mercedes, filha mais nova da costureira, que se envenenou com
formicida quando soube que o soldado com o qual namorava e ficaria noiva era
casado? Não suportou a vergonha da desonra. Era pobre, mas honesta, falava-se
no bairro.
O que deveria
saber dona Lourdes, personagem austera que passava as tardes debruçada na
janela da sala, que se abria diretamente para a rua, sobre a vida de todos que
passavam ou que com ela paravam para um dedo de prosa? A guardiã moral do
quarteirão, católica e muito carola. Sabia de tudo e de todos.
Pouca gente sabe
que Adílson, o lendário jogador, nasceu para o futebol no campinho da várzea,
correndo descalço atrás de uma velha e desbotada bola de capotão que vivia
sendo remendada pelo pai, o sapateiro da localidade, o preto Moisés.
Por outro lado,
há quem lamente o fato de Nestor, que desde criança bem se apresentava como
intérprete de sambas-canção, no programa domingueiro de calouros, na rádio
local que todos ouviam, não ter conseguido fazer carreira na música. Como a
maioria dos pobres rendeu-se a um emprego na fábrica de sabão.
Não vai tão
longe a existência nefasta de Mesquita, o edil da província, que se apresentava
ao povo na condição de vereador do bairro, convencendo a todos que nenhuma
melhoria seria possível, a não ser por sua intermediação junto ao prefeito.
Ah, como foram
tensos os dias em que moradores fecharam a avenida para exigir que linha de
ônibus servisse a localidade. Venceram, mas teve até polícia para obrigá-los a
retirar os entulhos que usaram como barricada.
Foi
gratificante, porém, a criação da rua de lazer, isto é, da que era fechada ao
trânsito pelo poder público, nos finais de semana, para que crianças e
adolescentes pudessem ocupá-la em paz com suas brincadeiras.
Difícil crer que
aquele córrego poluído e fétido foi um dia pesqueiro dos moleques, que tiravam
lambaris das águas, uns após outros, para posterior fritada na casa de um deles.
Como esquecer o
primeiro televisor do bairro, a válvula, tubo e preto e branco, comprado pelo
pai de Dante, o italianinho, em torno no qual se reunia a garotada no final de
tarde para assistir desenhos animados, e das recomendações nada discretas de
sua mãe para que todos chegassem com os pés lavados e tirassem os sapatos antes
de entrarem na casa.
São inúmeras lembranças
de fatos que marcaram a passagem e construção do cotidiano, e em diferentes
momentos da história desse mesmo cotidiano. Pequenas histórias que se desdobram
em outras tantas ainda menores, e que compõem as grandes miudezas do cotidiano.
Bem, estão por todos os cantos, a espera de quem se disponha a desvendá-las e
narrá-las. Bem-vindos os literatos e poetas, pois não sem razão deles derivam
os historiadores.
Rogério Centofanti
São Paulo – janeiro de 2018