quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

As valorosas miudezas anônimas do cotidiano


São casas simples com cadeiras na calçada
E na fachada escrito em cima que é um lar
Pela varanda, flores tristes e baldias
Como a alegria que não tem onde encostar

Gente humilde – Chico Buarque de Holanda

Por vezes querem me fazer crer que esforços nos campos da memória e da história aplicam-se apenas aos grandes feitos e aos grandes personagens. Não surpreende que assim pense a maioria das pessoas, incluindo a letrada, pois é onde costuma encontrar os braços da história e da memória, inclusive em documentários nos meios de comunicação. Com esse entendimento, guerras são expressões de generais, e construções as artes de renomados arquitetos e engenheiros. Como se combates não fossem travados por soldados anônimos, e a grande maioria das edificações, outra coisa não fosse que o produto da idealização, habilidade e empenho de pedreiros, que na maioria das vezes nunca passou perto de alguma escola. Dentro dessa forma de conceber, o cotidiano é desdobramento desses grandes marcos, grandes eventos, e a insignificante marcha dos homens-formigas pelo carreiro seu reflexo, na faina de aparente mesmice determinada pelo destino da própria sobrevivência.

Sem negar a relevância dos grandes acontecimentos e seus personagens centrais, como deixar de reconhecer que as escaramuças dos combates são travadas entre soldados anônimos, e que cada batalha, por menor que seja, tem uma história que lhe é peculiar, e com a dramaticidade de todas as violências? Como deixar de reconhecer que tais experiências fazem parte da vida dos soldados que dela participam? Como deixar de reconhecer que cada edificação, por menor e mais simples que seja, tem a sua história, bem como a das pessoas que nela estiveram envolvidas na idealização, construção e moradia? Não há grandes feitos sem a participação anônimos, de homens-formigas, e que protagonizam o imenso volume composto de pequenos feitos, dos quais o grande é quase sempre a expressão sintética.

Por que, então, não fazer história e memória das miudezas, na verdade muito mais extensas do que as volumosas grandezas? Por que o focar na característica quase sempre simplória da condensação, não raro em meio a fraseologia superficial, mas com aparência de profundidade que dispensa explicações: sistema, processo, etc.?

Sem entrar no mérito das diferenças entre história e memória, e tampouco sem a pretensão de pôr em competição as grandes histórias e memórias contra as pequenas, que seja este escrito um apelo em defesa das pequenas medidas.

Opiniões contrárias dirão que história e memória de miudezas, de anônimos, não seriam de interesse para ninguém, pois fatos e existências sem encantos, triviais e comuns à imensa maioria dos mortais. Será mesmo?

Grande miudeza é a trajetória das ruas que foram do chão batido ao calçamento asfáltico. Do circo de cavalinhos que foi para o teatro, depois cinema, mais tarde aos vídeos vhs, depois aos Dvds, e hoje ao youtube e canais de TV. Do “empreendedor” que sustentou a família vendendo pipocas em seu carrinho de mão sobre a calçada da esquina. Da venda que passou ao armazém antes de se tornar mercado e depois shopping. Da livraria que desapareceu junto com os livros, assim como alfaiates e sapateiros com a chegada das roupas e calçados prêt-à-porter. Das vilas operárias que foram ao chão para ceder lugar à expansão da ganância imobiliária. É a história real da caminhada do capitalismo e da moralidade burguesa-cristã em nossa sociedade, em nossas vidas, e que se reproduz cotidianamente a cada vez que pagamos pelo simples cafezinho na padaria, ou nos indignamos com os pecados da vedete.

Interessa a rua, a velha casa, o que restou de uma praça, de um antigo mercado, uma ponte, uma profissão quase extinta, e das pessoas que fizeram e ainda fazem parte dessas cenas que resistem ao tempo e persistem em nosso cotidiano, mesmo que apenas na memória. Nesses, e em casos análogos, encontra-se vida sem maquiagens, e a espera de quem possa revelá-las com o devido respeito a tudo pelo que passaram – alegrias, tristezas, sonhos, pesadelos, risos e lágrimas – cujo empenho não está negado aos sujeitos mesmos dessas histórias, desde que dotados de alguma sensibilidade e competência para tal.

O cotidiano está repleto dessas grandes miudezas, e que guardam valor inestimável. Nele, cotidiano, se encontra política, economia, urbanismo, ecologia, história, memória, sociologia, mas apenas para olhos e espíritos de quem percebe e lida com esses saberes em cenários semi-encobertos no cotidiano. Inacessível, porém, aos aprisionados pela imersão acrítica na vida diária, e aos que enxergam o mundo pelo que lhes é fornecido pelos noticiários e pelos livros, pelos que precisam de quem lhes interprete os acontecimentos.

Como esquecer a história de Mercedes, filha mais nova da costureira, que se envenenou com formicida quando soube que o soldado com o qual namorava e ficaria noiva era casado? Não suportou a vergonha da desonra. Era pobre, mas honesta, falava-se no bairro.

O que deveria saber dona Lourdes, personagem austera que passava as tardes debruçada na janela da sala, que se abria diretamente para a rua, sobre a vida de todos que passavam ou que com ela paravam para um dedo de prosa? A guardiã moral do quarteirão, católica e muito carola. Sabia de tudo e de todos.

Pouca gente sabe que Adílson, o lendário jogador, nasceu para o futebol no campinho da várzea, correndo descalço atrás de uma velha e desbotada bola de capotão que vivia sendo remendada pelo pai, o sapateiro da localidade, o preto Moisés.

Por outro lado, há quem lamente o fato de Nestor, que desde criança bem se apresentava como intérprete de sambas-canção, no programa domingueiro de calouros, na rádio local que todos ouviam, não ter conseguido fazer carreira na música. Como a maioria dos pobres rendeu-se a um emprego na fábrica de sabão.

Não vai tão longe a existência nefasta de Mesquita, o edil da província, que se apresentava ao povo na condição de vereador do bairro, convencendo a todos que nenhuma melhoria seria possível, a não ser por sua intermediação junto ao prefeito.

Ah, como foram tensos os dias em que moradores fecharam a avenida para exigir que linha de ônibus servisse a localidade. Venceram, mas teve até polícia para obrigá-los a retirar os entulhos que usaram como barricada.

Foi gratificante, porém, a criação da rua de lazer, isto é, da que era fechada ao trânsito pelo poder público, nos finais de semana, para que crianças e adolescentes pudessem ocupá-la em paz com suas brincadeiras.

Difícil crer que aquele córrego poluído e fétido foi um dia pesqueiro dos moleques, que tiravam lambaris das águas, uns após outros, para posterior fritada na casa de um deles.

Como esquecer o primeiro televisor do bairro, a válvula, tubo e preto e branco, comprado pelo pai de Dante, o italianinho, em torno no qual se reunia a garotada no final de tarde para assistir desenhos animados, e das recomendações nada discretas de sua mãe para que todos chegassem com os pés lavados e tirassem os sapatos antes de entrarem na casa.

São inúmeras lembranças de fatos que marcaram a passagem e construção do cotidiano, e em diferentes momentos da história desse mesmo cotidiano. Pequenas histórias que se desdobram em outras tantas ainda menores, e que compõem as grandes miudezas do cotidiano. Bem, estão por todos os cantos, a espera de quem se disponha a desvendá-las e narrá-las. Bem-vindos os literatos e poetas, pois não sem razão deles derivam os historiadores.

Rogério Centofanti
São Paulo – janeiro de 2018