Eu pego
você pelas mãos como um raio
E saio com você descendo a avenida
A avenida é comprida, é comprida, é comprida...
E saio com você descendo a avenida
A avenida é comprida, é comprida, é comprida...
Luzia Luluza – Gilberto Gil
Depois de cinquenta
anos fora de minha São Paulo, e não há como descrever esta sensação mista de
estranhamento e agradabilidade gerada por estar novamente em meio às ruas, esquinas,
praças, prédios, monumentos, pessoas, sotaques e paisagens, que em boa medida
emolduraram parte de minha vida. Foi aqui, em pequeno apartamento no vale do
Anhangabaú, que passei alguns poucos anos da adolescência.
Nestes aproximados
cinquenta anos fora da cidade, e mesmo do país, pude me manter informado sobre
os acontecimentos e mudanças pelas quais passou a metrópole, principalmente em
períodos mais recentes, quando as tecnologias digitais nos puseram quase ao
vivo diante de qualquer lugar do mundo. Neste instante tenho a São Paulo aberta
ao exercício de todos os sentidos. Eu sinto São Paulo. É um reviver de presença,
com a mais completa certeza de que ela é a mesma, mas ao mesmo tempo outra. Ela
mudou, mas não mudou. Como eu. Aquele mesmo, mas outro. Ah, como tento em vão
convencer parcela de meus amigos que bom não era o velho e bom tempo, mas sim a
nossa juventude naquele tempo. Força, viço, energia e o que mais necessário
para convencer a nós mesmos de que éramos imortais. Éramos tão senhores do
tempo que poderíamos nele, e a qualquer momento, sermos o que bem desejássemos.
Com essa convicção vibrávamos no presente com intensa vivacidade, incluindo a
constante volúpia do desbravamento rumo ao desconhecido, ainda que por um
bairro contiguo. Afinal, naquele tempo descobria-se as coisas ao vivo e em
cores, ou pelas páginas das poucas revistas e preciosas enciclopédias.
Mas que mania
esta, a minha, de ficar filosofando sobre vivências do cotidiano. Bem, mania
que me acompanha desde a juventude, e neste mesmo lugar. Mania dos sós, dos que
conversam consigo mesmos, e que têm a si próprios como compartilhadores de experiências.
Cena mágica, esta, a de subir pelas escadas rolantes da estação do Metrô na
praça da República, do lado da avenida Ipiranga, e desde baixo ver o edifício
Itália, que já existia, mas nunca visível por esse ângulo cujo vértice se inicia
no subterrâneo da praça. Surgia, agora, enquadrado em meio a um luminoso céu azul
envolto por nuvens brancas. Lindo, majestoso, surpreendente. Quando poderia
imaginar isso no passado? Bem, isso ocorreu ao longo da década de setenta, e eu
daqui me fui ainda na vigência da de sessenta.
As ruas
transformadas em calçadões me pareceram uma excelente ideia, pois me ocorre que
por elas circulavam automóveis que estacionavam junto ao meio fio. Pelo que
soube, entretanto, a inovação não foi além destas poucas iniciativas. De
qualquer forma, o centro está mais amigável do que dele consigo me lembrar, no
que diz respeito às ruas vertidas em calçadas, mas inamistoso no que se refere
ao estar, uma vez que não há bancos confortáveis onde soltar-se e apreciar o ir
e vir das pessoas e do vento. Andar a pé pelo que um dia foram leitos de
veículos é gratificante, especialmente na minha idade, quando o corpo não é tão
obediente à vontade. Mesmo assim, calçamentos desnivelados e descuidados
mostram que há muito por ser fazer, a começar ao lado do que é hoje o bunker do
prefeito, e que no passado foi edifício-sede das indústrias Matarazzo. Os
calçamentos já eram ruins, e muito se reclamava do serviço de coleta de lixo.
Ah, sim: o lixo era colocado na calçada para coleta dentro de latões com
tampas. Bem, nem sempre com tampas.
A grande
remodelação pela qual passou o vale do Anhangabaú no início da década de
oitenta, foi a fantástica iniciativa de jogar todo o intenso tráfego de
automóveis e ônibus para a dimensão subterrânea, transformando a imensa laje ali
construída em um bulevar. Por outro lado, e ao menos para o meu gosto, também
sem lugar para que as pessoas possam estar para o prazer gratuito da conversa jogada
fora ou da simples leitura de um livro ou jornal. Tornou-se um descampado
público, mas sem público. Não se encontra gente flanando nem mesmo no antigo e
agradável jardim ao lado do Teatro Municipal, pois não há onde descansar.
Por falar no teatro,
perco o fôlego quando à sua frente ou nas laterais, bem como diante de outros
edifícios que mantiveram características originais. Já não são tantos e, pelo
que vejo dos que se denominam modernizados, a maioria cedeu lugar a caixotes
despersonalizados e tornados banais pelo emprego da mesma ausência de formas
expressivas e identitárias. Caixotes compostos pelos materiais baratos
disponíveis nas lojas de insumos para construção, e erguidos sob a concepção
desafortunada de arquitetos e engenheiros sem espírito, aos quais não se pode
nem mesmo elogiar a reclamada racionalidade funcional. Que pena. Chamam a isso
de revitalização, como se dar nova vida fosse sufocar o que resiste com
elegância e dignidade à passagem dos anos. Triste saber que vereadores da
capital quiseram alterar o nome do viaduto do Chá, adicionando-lhe como
complemento o nome de ex-político de São Paulo. Parece que o atual prefeito, um
marqueteiro que se apresenta como empresário, tem ideias não menos
extravagantes para o viaduto Santa Ifigênia.
Passadismo? Não.
Apenas a mais nítida consciência de que a voga dita contemporânea, e que
consiste em demolir símbolos do passado, serve apenas aos interesses daqueles
que lucram com o que se destrói e em seguida com que se repõe com valor
inferior, mas a preço superior. Bem, só fui aprender que modernidade nada tem a
ver com mudança de aparências – e ainda mais para pior – depois que de São
Paulo mudei-me para uma das cidades mais civilizadas do mundo, e em meio a
mentes modernas coexistindo com tradições, de onde o traço presente da
civilização que construíram e preservaram. Aqui, porém, o que se pode esperar
em relação isso? Nada! Não se sabe nem mesmo o que é velho e antigo.
Também percebi o
quanto mudou a vocação social e econômica do velho centro. Aliás, não sei
diferenciar o que chamam de centro velho e centro histórico. No passado havia
nele um número menor de estabelecimentos comerciais, porém mais personalizados.
Aqui se concentravam as melhores drogarias, perfumarias, tabacarias, relojoarias,
lojas de tecidos, de louças e de instrumentos musicais, alfaiatarias,
sapatarias, joalherias, livrarias, docerias e inclusive restaurantes. Casas, no
dizer da época, e apenas mais recentemente chamadas de lojas, onde se vende de
tudo, onde produtos diferem nos preços, e isso quando diferem. Bem, não existia
esse atual oceano de mercadorias. Exemplo disso no meu tempo, e naquele local,
a Casa Anglo-Brasileira, que sucedeu o Mappin Stores e suas lojas de
departamentos, uma versão sucedânea dos shoppings, e que fazia sucesso no
edifício de esquina da praça Ramos de Azevedo e lateral à frente do teatro
Municipal. Bem verdade que o Mappin foi sofisticadíssimo quando chegou a São
Paulo em 1913, praticamente inaugurando o requintado hábito social do chá da
tarde entre as damas paulistanas, e só comercializava produtos importados, mas
isso quando na rua XV de Novembro. A vertente loja não foi diferente com a
Sears Roebuk S/A, na rua 13 de maio e na praça Oswaldo Cruz, com seus planos de
crediário. Nem mesmo a sede da Energia Light, instalada no edifício Alexandre
Mackenzie, inaugurado em 1929 no viaduto do Chá com a rua Xavier de Toledo,
deixou, no tempo, de render-se à geração shopping, embora em dias mais recentes.
Raízes da cultura do consumismo e do passageiro, isto é, do que está sempre passando,
consumindo e seguindo. Come-se de pé, bebe-se de pé, compra-se de pé, e
volta-se ao ciclo da perpétua passagem. Afinal, até as emoções foram ajustadas
ao princípio - como aqui se diz - de que
a fila anda. Fast emotions. Que pena.
Mas, do que
estou falando? Pena do que e de quem? Certamente não de mim, pois não mais
voltarei a aqui viver. Mesmo assim não resisti deixar de ver de perto alguns
lugares, a começar pelo prédio no qual residi. De fora, é verdade, pois agora transformado
em edifício comercial. Escritórios, na maioria das vezes. Soube disso pelo
porteiro, e que nem mesmo imaginava que o edifício foi um dia local de
residências.
Mudei-me para cá
com minha mãe. Vínhamos do Brás, onde eu havia nascido e morado até então com
meu avô, que era viúvo, e minha mãe, que era solteira. Formada em jornalismo
foi à França participar de um curso de especialização, e voltou comigo no
ventre. Meu pai, dizia ela, era um jovem francês estudante de literatura. Nunca
tivemos contato, mas sei que minha mãe mantinha com ele algumas
correspondências.
Vínhamos de uma
pequena vila operária, com casinhas geminadas, de parede meia, em um beco sem
saída, o que dele fazia paraíso a garotada que tomava posse sem maiores
preocupações Paraíso também para as famílias, que nas tardes de verão traziam
cadeiras para fora e ficavam até altas horas conversando. Eu já era eremita, e
não mantinha relações próximas com as crianças da escola e da vila. Por alguma
razão que desconheço, nunca fui hostilizado por isso. Nunca sofri o que hoje se
chama de bullying. Minha mãe deve ter
sofrido muito. Afinal, mãe solteira, mulher independente, mas se sofreu nunca
deixou que isso chegasse até a mim. Nas raras vezes que perguntaram pelo meu
pai, inclusive na escola, respondi ser jornalista, e se reclamavam sua presença
dizia estar na França. Sabia contornar constrangimentos que iriam desaguar em
preconceitos e discriminações. Para isso ela me preparou, e muito bem.
Eu me sentava no
primeiro degrau da escada à frente do portão da casa, observava os jogos dos meninos,
mas não me oferecia para participar. Aliás, sair para a rua se dava por
insistência de meu avô, pois preferia ficar com ele ouvindo programa de
calouros na Rádio Piratininga, embora não gostasse do jeito sertanejo da
emissora. Ficávamos ao redor do velho e pesado aparelho a válvula plantado na
sala. O velho era meu parceiro de quarto, quem me levava e trazia da escola, e quem
preparava nosso almoço e jantar. Era meu amigo.
Apenas um dia me
aventurei em experiência coletiva de moleque de rua. Me convidaram para jogar
taco. Isso consistia em fazer uma espécie de pirâmide com três pequenos galhos,
armada na rua. Frente a ela ficava um dos jogadores com um taco na mão, com a
finalidade de rebater a pequena bola dura que outro jogador lançaria de uma
certa distância, visando derrubar a pirâmide. Uma espécie de críquete.
Explicaram a dinâmica do jogo e o que eu deveria fazer com o taco. Bem, foi o
que fiz. O garoto lançou a bola e, talvez por sorte de principiante, nela
acertei uma tacada com força, mas sem precisão. Ela saiu pela esquerda e foi
espatifar um dos vidros da janela da casa de seu Dante. A garotada correu e
fiquei eu, no meio da rua, seguramente assustado, empunhando o taco, um pedaço
roliço de madeira lenhosa. Só me lembro de ter ouvido a voz anasalada de dona
Pierina:
- Bonito, hein?
Vou contar para seu avô.
Deve ter
contado. Certamente ele pagou pela troca do vidro, mas nunca me disse nada
sobre isso. Para mim, entretanto, serviu para reafirmar a vocação para o
isolamento. Daí em diante eu só aparecia nos encontros dos vizinhos, na rua,
para atender pedido de meu avô para que tocasse flauta. Flauta transversal,
aliás, que comprou de segunda mão quando notou que o neto dedicava tempo a
flauta doce que fora presente da mãe.
- Pedro. Traz a
flauta.
Os vizinhos
reprisavam – traz a flauta, Pedro.
Era o de sempre.
Eu na flauta e dona Florinda no violão iriamos acompanhar seu Felisberto
cantando Rapaziada do Brás.
Caprichava na voz melodiosa, no estilo de Carlos Galhardo, o grande intérprete
desse clássico do saudosismo.
Lembrar,
Deixe-me lembrar,
Meus tempos de rapaz,
No Brás
Havia quem
chorasse, quem cantasse, quem se abraçasse, e ao final todos aplaudiam. Era
assim em todas as festas da rua. Eu gostava dessa participação única, de ajudar
seu Felisberto e dona Florinda a produzir aquelas emoções singelas em pessoas
tão espontâneas. Meu avô ficava envaidecido do neto. Depois surgia seu Genaro
com o acordeão, e todos mergulhavam nas cantorias italianas.
Ilustração do autor |
Como parte da
juventude da época, por força da profissão, e a exemplo de artistas,
intelectuais e professores, minha mãe estava no coração das atenções da vigilância
da ditadura que rondava, até instalar-se de forma brutal por longos vinte anos.
Ela não tinha militância sob siglas partidárias, mas tinha compromisso político
minimamente com a liberdade de expressão, a cada dia mais restrita, ainda que inicialmente
apenas por um clima de censura no ar. Para ela, morar no centro significava
estar mais perto do trabalho e das coisas que tanto valorizava: cinemas,
teatros, cafés e livrarias. Também mais perto dos amigos das redações dos
jornais e revistas. Lembro-me que parte da decoração do apartamento foi formada
por caixotes de maçã, bem-acabados, e trazidos em uma Vemaget desde a zona
cerealista, na proximidade do mercado Municipal. Neles ficavam bem acomodados os
discos, livros, revistas e esculturas. Pela janela da sala eu podia ver boa
parte do vale, do teatro, do viaduto, e até mesmo dos Correios. Da tabacaria
próxima eu conseguia caixas de charutos vazias, que se prestavam a guardar
pequenos objetos. Gostava das luzes que chegavam com o anoitecer. Quanto mais
noite, mais luz. O barulho diminuía com a redução dos veículos que por ali
circulavam, mas não cessava. Já havia, naquele tempo, uma campanha do silêncio
promovida pela Prefeitura e pelo Instituto Brasileiro de Acústica. Afinal, já
existiam leis que regulavam os ruídos urbanos. O centro, porém, já era muito
mais comercial do que residencial, e por conta disso a vigilância noturna era menor,
reclamavam os jornais.
Apesar de
cercado por uma quantidade infinitamente maior de estímulos no novo ambiente,
eu continuei sendo praticamente o mesmo. Diferença é que agora passava o dia desacompanhado,
pois minha mãe saia pela manhã e voltava no final da tarde. Ela preparava a
refeição do dia seguinte, quando chegava em casa, e eu esquentava quando tinha
fome ou oportunidade. Eu estava ainda mais só do que antes, e gostava disso.
Não me interessei pelas pessoas do prédio e nem das redondezas. Porém, explorei
o entorno, e que efetivamente era novo para mim. Raras tinham sido as vezes que
vim do Brás ao centro. Eu andava, via, ouvia, percebia, me orientava e
aprendia. Não foi necessário muito tempo para que tivesse explorado horizontes
próximos e não tão próximos. Não era como o Brás. O ambiente era repleto de
contrastes, havia uma dose de risco, mas também de segurança para quem soubesse
cuidar de si, e nisso eu era muito bom. Eu sempre soube ser apenas mais um na
paisagem, o que não me tornava ameaça, alvo ou desafio para quem quer que
fosse. Pensando melhor, neste instante, talvez nisso o segredo de escapar de
bullying, prática tão comum contra solitários. Nunca falava de mim, e nunca
perguntava sobre os outros. Eu sabia me blindar contra todo tipo de invasão de
privacidade. Mesmo assim não facilitava, principalmente à noite. Isso
restringia minha ida a eventos que adoraria visitar, como as atividades do
Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, na rua 7 de Abril, pois invariavelmente às
21 horas. O mesmo acontecia com cursos de história da arte, história da ópera
na Itália, literatura brasileira, literatura italiana, e muitos outros. A vida
cultural da cidade era intensa, mas quase sempre à noite.
Com essa minha forma
de ser e em pouco tempo havia explorado ruas, praças, parques, jardins,
monumentos, comércios e edifícios públicos na Sé, Liberdade, República, Luz,
Bom Retiro, Campos Elíseos, Santa Cecília, Barra Funda, Consolação e Bela Vista.
Tudo isso a pé, sem auxílio nem mesmo dos bondes da CMTC que ainda circulavam
pela capital, embora algumas vezes às voltas com greves promovidas pelo
Sindicato dos Carris Urbanos. Fazia essas incursões pela manhã, entre o café e
o almoço, e estudava ou ouvia música à tarde. À noite lia os jornais que minha
mãe trazia da redação, de onde extraia informações que poderiam ser de
interesse para novas entradas. Isso tudo, é claro, antes do início das aulas.
Encantei-me e
tornei-me assíduo consulente da biblioteca Mário de Andrade poucos dias depois
da mudança. Além do fato de ficar perto de casa, na praça Dom José Gaspar, me
enchia de orgulho paulistano por tratar-se da segunda maior do país, ficando
atrás apenas da biblioteca Nacional. Eu podia estar em contato com todo aquele riquíssimo
acervo nas salas de consulta, ou mesmo levá-lo de empréstimo para casa.
Frequentei aulas
para preparar-me ao que à época se chamava exame de admissão ao ginásio,
condição para ingresso nas escolas públicas. Condição, portanto, para que eu
pudesse ingressar no renomado curso ginasial do Caetano de Campos, no majestoso
prédio do que foi a Escola Normal de São Paulo, em plena praça da República, e
que hoje hospeda a sem vida Secretaria da Educação do Estado de São Paulo.
Naquele tempo ingressavam no ginásio daquela escola apenas 160 alunos de cada gênero
por ano. As meninas tinham aulas pela manhã, e os meninos à tarde. Como eu
vinha do Brás, minha mãe conseguiu essas aulas particulares, por indicação de
amigos, junto à professora Rosa, ministradas na residência dela na rua das
Palmeiras, em Santa Cecília. Muitas professoras do quarto ano do curso primário
faziam isso em suas casas para aumentar a renda. Sempre bom aluno, e muito
disciplinado, frequentava todas as aulas e estudava em casa. Ah, novas áreas de
conhecimento, e todas elas muito apaixonantes. Dona Rosa era exigente, e
notadamente culta e preparada. Eu gostava de tudo, mas me encantava mais com
história e geografia. Bem, tanto encantava que me tornei historiador por ofício.
Estudar no
Caetano de Campos era mais do que eu poderia ter imaginado. Aliás, e para
alimentar tal imaginação, eu fazia questão de por ele passar todos os dias
quando ia e voltava das aulas com dona Rosa. Era em torno daquela escola que se
movia tudo o mais na praça da República. Via-me vestindo o mesmo uniforme:
calça azul marinho, camisa social de manga curta ou longa, não raro uma gravata
preta ou azul, e malha ou blazer também azul marinho. As meninas vestiam saia
azul marinho plissada na altura do joelho ou um pouco acima dele, camisa
branca, meia ¾ e malha azul marinho. Os sapatos em modelos masculinos e
femininos, eram chamados colegiais. Nesse trajeto, e com dinheiro sempre curto,
sempre havia oportunidade para alguma guloseima na confeitaria Atlântica, que ficava
na avenida São João. Sorvetes, chás, sucos, refrescos, doces e salgados finos. Existiam
muitas casas, mas lembro-me dessa em particular. Paulistano que conheci nestes
dias em que estou de passagem, e que tem idade próxima à minha, lembra-se do
coreto da praça da República como lugar que chamou de “ponto de caça das
coroas”. Não me lembro disso. Bem, ele também falou com detalhes da movimentada
prostituição nas calçadas e prédios das ruas Vitória, Aurora e dos Gusmões. Quando
muito lembrei-me da expressão “boca do lixo” para designar aquela zona. Puxa:
como eu era comportado... De fato, ruas no entorno das estações ferroviárias da
Luz e Júlio Prestes, e na época do recém construído terminal rodoviário da Luz,
embora ficasse na praça Júlio Prestes não gozavam de boa fama. Locais de
passagem, quase exclusivamente de gente pobre, de longe, de onde tudo se tornar
provisório, sem raiz, sem face e sem nome. Hoje vejo isso com mais clareza, mas
não à época. Hotéis de quinta categoria, pensões de quinta, bares de quinta,
restaurantes de quinta, lojas de quinta, gatunos de quinta, drogas de quinta e
prostitutas de quinta, ao alcance do bolso de quinta dos que iam e vinham, dos
que por ali passavam. São Paulo sempre foi assim: uma cidade à altura de todos
os bolsos.
Foi também naquele
período que uma vez por semana passei a frequentar aulas particulares –
teóricas e práticas – de flauta, com maestro Alfredo, músico do Municipal, cujo
anúncio estava fixado na Casa Chopin, loja que comercializava instrumentos
musicais, rádios, eletrolas, televisores, discos, partituras, e que ficava na
rua José Bonifácio. Minha mãe não se conformava com meu autodidatismo, com o
que chamava de analfabetismo musical. O desejo é que eu executasse peças de
Mozart e Vivaldi, nomes muito lembrados em concertos para flautas, mas sobre
partituras, e não de ouvido como havia aprendido intuitivamente. As aulas
aconteciam em sala comercial da rua 24 de Maio, perpendicular ao fundo do teatro
Municipal. Teóricas em grupo, mas práticas individuais. Minha vida mudava
substancialmente, ao menos no plano intelectual e artístico. Havia um poderoso
universo cultural a minha volta. Ora, pelo que noto por aqui há até hoje. Tentaram
me convencer na atual passagem, que migrou para a avenida Paulista, mas o que
encontrei por lá foi uma cultura de consumo, produzida a partir de esforços de
marketing, a exemplo de roupas ou cortes de cabelos. Multiplicam-se os points. Com exceção de algumas mostras internacionais
no MASP – Museu da Arte de São Paulo – e nada mais me interessou naquela região.
Não estava finalizado quando eu aqui ainda morava. No meu tempo havia a feira
de antiguidades na alameda Tietê, que embora adorável, estava sempre fora do
alcance de meus pobres bolsos. Por outro lado, poucos se interessam hoje pela
Pinacoteca do Estado de São Paulo, que pouco ou nada perde para similares nos
demais países, e pelo simples fato de estar na Luz, dentro do jardim da Luz, um
local tido como decadente, pois frequentado por moradores de rua e prostitutas.
Se interessam pelo status do local mais do que pela qualidade do acervo.
Interessante. Esta
gente acredita que há cultura onde o caderno dito cultural de algum jornal diz
haver, ou onde alguma placa indica. Pode-se dizer o mesmo de arte. Cultura e
arte se definem por espaços confinados, como leões e elefantes no zoológico.
Era assim? Não me lembro. Evidente que existiam espaços para espetáculos, mas falava-se
de literatura, poesia, música, teatro e cinema em meios minimamente
escolarizados. Muitas vezes era o que havia para falar, e não necessariamente
em ambientes de notória erudição. Havia valor em ser culto, mesmo em alguns
ambientes populares.
Bem, mas foi
caminhando pela cidade em companhia de pequeno bloco de notas e lápis que
conheci boa parte da história de São Paulo e mesmo do país. Ela estava ali, a
céu aberto, e que haviam deixado exposta ao olhar do passageiro indiferente,
mas também ao do movido pela curiosidade, ao culto. Talvez dai a paixão por
obras, pois nelas a materialidade de momentos da vida de pessoas e da
sociedade. Eu andava, parava diante do que despertava minha atenção, anotava
referências, e depois consultava enciclopédias na biblioteca municipal visando
conhecer a trajetória da obra descoberta. Minha mãe e meu avô nunca tiveram
condições de comprar uma enciclopédia de qualidade, mas agora eu tinha acesso a
várias, às mais renomadas, e sem gastar um centavo. Foi assim que conheci a
catedral da Sé, o pátio do Colégio, o mosteiro de São Bento, a estação da Luz e
a Júlio Prestes, e delas as ferrovias paulistas. Teatro Municipal, praça da
República, o Caetano de Campos, monumento da Independência, galeria Prestes
Maia, mosteiro da Luz, mercado Municipal, a escultura a menina e o bezerro no largo do Arouche, antigo largo do Ouvidor,
etc. Foi assim.
Minha mãe
comprou um rádio de cabeceira RCA-Victor na Casa Sotero Limitada, que ficava na
rua São Bento. Nossa! Infinitamente menor do que aquele de meu avô, e que não
veio com a mudança justamente pelo espaço que ocupava. Eu adorava a programação
da rádio Eldorado, mas principalmente a suave locução praticamente padronizada.
Apenas por conta de um prêmio Roquette Pinto os paulistanos ficaram sabendo que
a voz tão identitária da rádio pertencia a um jovem chamado Mário Lima, que
apresentava o noticiário das 13 horas, e em seguida o programa Tarde Musical,
que ele mesmo produzia. Mário era casado com a cantora Alaíde Costa. Aliás, a
programação musical da emissora ganhou mais do que um prêmio Roquette Pinto. A
época, e no dizer da emissora, não se preocupava em atender critérios de
popularidade, mas de qualidade. Música erudita, jazz, popular brasileira e
norte americana. Atendia, de acordo com a emissora, aos ouvintes mais
exigentes. Era capaz de transmitir o concerto do meio dia às 12, recital de
piano ao meio dia, música de concerto às 20h, noticiário oferecido pelo jornal
O Estado de São Paulo às 20h55, desfile de cançonetas napolitanas ou músicas
vocais às 21h30 e jornal de trinta minutos às 22. Lembro-me ainda hoje do
prefixo:
ZYK686.
ZYK686.
Rádio Eldorado Limitada.
São Paulo – Capital.
AM 700 KHZ.
São Paulo – Capital.
AM 700 KHZ.
Ela comprou
também, na rua 24 de Maio, uma máquina de escrever Olivetti. Lembrei-me:
Lexicon 80. Comprou para uso dela, mas com ajuda de método adquirido em banca
de jornal e muito treino aprendi a datilografar com todos os dedos. Foi uma
excelente aquisição, pois animou-me a escrever, atividade que prazerosamente
exerço até hoje.
Meu avô, minha
mãe e eu não gostávamos de televisão. Bem, não éramos propriamente excêntricos,
mas seguramente incomuns. Música, notícias e entrevistas estavam à farta nas
rádios, em especial na Eldorado, e isso nos bastava. Fato é que entre
programações de rádio, andanças, pesquisas na biblioteca, aulas de flauta e
preparativos para exame de admissão no ginásio e tudo passou rápido em um ano
muito produtivo. Nada perto do que se pode fazer em São Paulo, pois uma cidade
impossível de ser plenamente conhecida, abraçada. Em São Paulo tudo muda de um
quarteirão para outro. Dobra-se a esquina e eis outra São Paulo. De qualquer
forma, foi um ano produtivo, principalmente porque aprovado no exame de
admissão ao Caetano de Campos. Eu me tornava caetanista, um dos 160 meninos que
iria, com garbo, vestir uniforme ginasial e frequentar aulas no período da
tarde por alguns anos. Gozado que em nenhum momento tive dúvida de que seria
aprovado. O que se fez necessário foi transferir as aulas de flauta para o
período da manhã. Bem, haveria uma preocupação do tempo pela distribuição da
atividade. Me senti realizado.
Amigos de minha
mãe diziam que eu era precoce. Será? Eu mal convivia com outros da mesma idade
para saber se faziam ou gostavam das mesmas coisas. Talvez fosse o que hoje se
chama de nerd. Gostava de estudar, e
nisso me parece que era diferente da maior parte dos demais, dedicados às
brincadeiras sempre que podiam. Nunca gostei de esportes, mas cumpria
atividades físicas que me eram exigidas. Nunca me convenci do apelo mens sana in corpore sano. Também nunca
me convenci da existência de Deus. Católico por força de batismo, nem quando
criança frequentava igreja. Por sorte meu avô e minha mãe também não eram
praticantes. Sendo assim, nem religião, nem time de futebol ou qualquer outro
símbolo de pertinência coletiva. Era atraído pela história da formação do
Estado de São Paulo e depois de mudar-me para o centro pela história da própria
cidade. Nunca havia me interessado por alguma menina em especial. Algumas
chamavam atenção por beleza, outras por atitudes, mas estavam sempre em bandos,
pequenos ou grandes, e eu não conseguia imaginá-las sós. Talvez por isso o
desinteresse, pois nunca gostei de bandos.
Era assim no Brás. Não sentia que algo havia mudado no centro, mas foi
até ter deitado os olhos sobre Astrid.
Embora estudasse
no período da tarde, tinha curiosidade sobre as alunas que estudavam pela
manhã. Foi por esse motivo que um dia, depois da aula de flauta, resolvi passar
pela entrada da escola antes de voltar para casa. Da rua 24 de maio fui para a
praça da República e o horário coincidia com a saída das alunas. Dava para
saber quem eram as calouras pelo uniforme novinho em folha. Moda ou não, não
sabia qual a graça daqueles cabelos armados como se fossem ninhos de pássaros,
e ainda quimicamente endurecidos. Algumas vezes minha mãe usava isso, e não me
conformava em vê-la arranjar os cabelos em torno de palha de aço, sem contar com
o insuportável cheiro do laquê. Bem, os rapazes costumavam usar fixador
Glostora e brilhantina Williams para sustentar os topetes. Consegui escapar
disso, pois preferia os cabelos ao natural. Para as meninas do ginásio,
entretanto, esses penteados eram motivo de ostentação e desfile. Quando
começaram a se dispersar em várias direções atravessei a avenida Ipiranga e avancei
na rua Barão de Itapetininga a caminho de casa. Afinal, precisava almoçar para
fazer o mesmo caminho de volta para as aulas logo mais à tarde.
À frente grupos
de ginasiais caminhavam pelas calçadas, com seus livros e cadernos junto ao
peito. Muitas caminhavam de braços dados. Eram falantes, gesticulavam e
pareciam alegres. Em meio a essas cenas, e na minha frente, caminhava uma
caetanista, mas só. Com passos lentos, mas decididos, ia na mesma direção que
eu. Eu a via por trás e reduzi o ritmo de meu próprio caminhar para melhor
observá-la. Magra, vestindo saia de uniforme um pouco abaixo dos joelhos, tinha
uma postura altiva. Um pouco mais alta do que eu, talvez, era loira, muito
loira, com cabelos compridos e lisos, muito lisos. Nada de laquê. Talvez alemã,
pois pouco ou nada tinha das características tipológicas das colegas.
Apressei um
pouco o passo e aumentei discretamente a distância para poder observá-la de
lado com o canto dos olhos. Ah, não era latina. Olhos azuis se destacavam em um
rosto arredondado de pele clara, sob uma franja longa que escorria por cima de
uma bandana preta, na forma de tira, talvez de lã. Muito diferente de suas
colegas, de todas elas. Não olhava para os lados. Apenas para frente, mas sem
abaixar a cabeça. De certa forma ela tinha coisas a ver comigo, a começar por
estar só. Atravessou o viaduto do Chá, ao final entrou a esquerda, e logo em
seguida em entrou em um prédio do lado direito. Incrível. Morava perto, muito
perto de mim. Quando fui para as aulas, logo depois do almoço, passei e parei
em frente ao prédio onde ela havia entrado. Sem dúvida um prédio residencial, mas
ela não estava à vista.
Desse dia em
diante mudei o eixo de meus interesses e o roteiro de meu caminhar pela cidade.
Fosse para onde fosse, e fazia do passar frente ao prédio da lourinha uma
obrigação, como se não houvesse alternativa. Por lá passava ainda que meu
destino estivesse em direção oposta. Fugindo a todos meus limites, ocorreu-me
até perguntar ao porteiro quem era a alemãzinha. Não cheguei a tanto, mas me
ocorreu essa possibilidade. Tornou-se sagrado um olhar atento à portaria
daquele edifício quando ia ao Caetano de Campos. Rondei o prédio até mesmo
naquele sábado e domingo. Nunca tinha me deixado levar por impulso como esse.
Fiquei ansioso
até a próxima quinta-feira, dia de aula de flauta pela manhã. Aliás, e pela
primeira vez, estive participando da aula com olhar nos ponteiros do relógio de
parede que ficava sobre a porta de entrada da sala. Ao final, guardei o
instrumento no case e sai apressado
para a praça da República. Cheguei a tempo de ver as caetanista deixarem aos
poucos o majestoso prédio, e em pequenos grupos. Em intervalo entre a saída de
um desses grupos, e outros, e eis que surge a lourinha na soleira do portal do
prédio. Parou, como que se apresentando a praça, à luz, ao sol daquela manhã
quente e luminosa, e apenas depois de instantes começou a descer lentamente
pela escadaria. Impossível não admirar os movimentos harmônicos e elegantes da
magrinha loura. Não apenas uma menina bonita, mas uma cena bonita. Esperei que
descesse o último degrau e se pusesse em movimento para segui-la a distância. O
uniforme novinho em folha, como o meu, sugeria que fosse aluna do primeiro ano
do ginásio.
Me sentia
ridículo. Onde se viu seguir uma desconhecida? Poderia andar a seu lado e
simplesmente dizer:
- Olá. Sou Pedro
e estou no primeiro ginasial da tarde. Tudo bem?
Ela poderia
fazer de conta que nada ouvira e continuar andando. Poderia parar e me olhar com
reprovação até que eu sumisse. Poderia parar e fazer um verdadeiro escândalo.
Mas também poderia dizer:
- Tudo bem. Sou
fulana e estou no primeiro ginasial da manhã.
O problema é
que, não fosse essa última a reação, e tudo estaria irremediavelmente perdido.
É claro que essa racionalidade não me passava pela cabeça naquele instante.
Havia medo, muito medo. Me sentia ridículo por segui-la e por não ter a menor
ideia de como abordar. Torcia para não ser notado na perseguição. Como ela
tinha um andar firme, mas lento, reduzi o ritmo de meu habitualmente apressado
caminhar.
Eu seguia.
Apenas seguia. Ah, não há como esquecer, naquele dia, seus cabelos finos,
amarelos e lisos balançando ao sabor do vento quando passou pelo vão livre do
viaduto do Chá. No final da travessia entrou na rua a esquerda e logo a seguir
no mesmo prédio da vez anterior. Nem mesmo no hall de entrada olhou para os
lados. Caminhou até o final do corredor e parou frente ao poço do elevador.
Abriu a porta e desapareceu. Eu poderia perguntar por ela para o porteiro, mas
dele poderia ouvir:
- Por que quer
saber?
Não, pois além
da mais completa ausência de coragem, a intuição me dizia que era melhor
esperar por melhor oportunidade. Ou seria isso mera racionalização para não
reconhecer a evidente covardia? Mais provável. Fato é, porém, que repeti esse
expediente por mais duas semanas: sair da aula semanal de flauta e correr para
o Caetano de Campos para seguir a lourinha. Também nesse período fazer da
passagem pela portaria do prédio onde ela morava uma espécie de trilha, ainda
que nunca tenha tido a sorte de vê-la, nem mesmo nas redondezas.
Inconformado com
essa situação, e decido a tomar alguma atitude, resolvi buscá-la, digamos assim,
mais do que uma vez por semana. Passei a comparecer duas, três, quatro e
finalmente todos os dias úteis da semana. O resultado, porém, era exatamente o
mesmo: seguir a certa distância e no anonimato. Ridículo, ridículo! A única
coisa que mudava era atração pela lourinha. Pois é: ficava cada vez maior. Eu
sonhava estar passeando, indo ao cinema e frequentando sorveterias com ela. É
difícil lembrar sem profundo sentimento de vergonha, mas essa perseguição durou
exatos quatro meses, quase meio semestre letivo. O que fiz para mudar essa
situação? Nada. Talvez o acaso tenha ficado desacorçoado com tamanha inércia e
resolvido chamar para ele alguma iniciativa. Foi em perseguição de rotina durante
uma quinta-feira quando, pela primeira vez, ela saiu da costumeira passagem
pela rua Barão de Itapetininga e entrou na rua Marconi. Estranhei, mas segui, e
eis uma segunda mudança: ela parou diante da livraria Kosmos e entrou. Sem
saber o que fazer fiquei parado na calçada, voltado para a rua, praticamente na
frente da livraria, com o constrangedor incômodo de quem precisa disfarçar.
Um barulho às
minhas costas fez com que eu me voltasse, e eis que vejo lourinha, na calçada,
entre vários livros caídos a seus pés. Adiantei-me a recolhê-los e estive tão
perto da lourinha que pude sentir seu delicado perfume. Disse-me “obrigada” com
voz meiga e sorriso encantador, e estendeu as mãos para receber os livros. Não
sei de onde me ocorreu responder:
- Não se
incomode. Eu levo.
Fez-se silêncio.
Percebi que havia falado demais, e com expressão de dúvida perguntou-me:
- Leva para
onde?
Eu havia criado
uma armadilha para mim mesmo, e precisava pensar rápido em alguma coisa que
fosse plausível, e que não levantasse suspeita sobre o que vinha fazendo por
meses, isto é, segui-la clandestinamente.
- Já vi você
perto de onde moro. Sei até qual o seu prédio.
Ela sorriu e
parece ter acreditado em meu argumento. Ufa! Nunca pensei tão rapidamente.
Também nunca fui tão rápido em uma resposta, ainda que o que tivesse dito fosse
absolutamente verdadeiro. Com os livros sobre o braço, caminhamos juntos de
volta a rua Barão de Itapetininga.
- Sou Pedro.
- Sou Astrid.
Astrid. Até o
nome era diferente. Ainda que por acidente, finalmente aproximei-me da
lourinha, Astrid, e ao lado dela caminhava. Caminhamos em silêncio, e nada
dissemos um ao outro até a porta do prédio onde morava. Devolvi os livros, ela agradeceu, entrou no
hall da portaria, caminhou pelo corredor, abriu a porta do elevador e foi-se.
Não olhou para trás, e esperei que desaparecesse de minha vista antes de
continuar a caminhada para casa. Eu estava nas nuvens, pois agora a lourinha
tinha cheiro, voz e nome. Tudo nela era agradável, e eu finalmente podia
aproximar-me sem parecer investida impertinente de um estranho. Agora ela sabia
de minha existência, e até mesmo do meu nome. Astrid sabia de Pedro. Acho que
pela primeira vez gostei de ser conhecido.
Ah, aquele
episódio deve ter deixado mais marcas do que eu imaginei. Quando minha mãe
chegou no final da tarde me perguntou o que havia acontecido.
- Nada,
respondi.
- Hum... Você
está diferente.
- Como
diferente?
- Não sei. Mais
alegre, eu acho.
Bem, estava
mesmo. Radiante seria o termo mais adequado. Certamente não foi um dia como os
demais. Tive dificuldade de concentrar-me nas aulas da tarde, pois o tempo todo
me lembrava dos livros caídos ao chão, de também me agachar para recolhê-los,
da sensação indescritível de ter Astrid tão perto. Puxa: era mesmo bonita e
graciosa. Voltei para casa exultante e me detive diante do prédio onde ela
morava antes de continuar para o meu. E pensar que me ocorreu a besteira de
perguntar pelo nome dela ao porteiro. Ainda bem que não fiz isso. De qualquer
forma, no dia seguinte eu iria mais uma vez busca-la no Caetano, mas não sabia
ainda como explicar a nova coincidência. A aula de flauta? Era na quinta e,
além disso, voltar para casa pela praça da República era um trajeto maior.
Poderia dizer que tinha ido à biblioteca, mas a passagem pela praça também não
se explicava. Por outro lado, e pensando melhor, por que precisaria justificar
alguma coisa. Passaria por lá exatamente na hora que ela descesse a escada e se
pusesse a caminho da Barão de Itapetininga. Desta vez caminharia ao lado.
De fato, mal
pisou na praça e eu já estava encostando:
- Oi, Astrid! A
caminho de casa?
- Você aqui? –
perguntou-me com surpresa estampada inclusive na face.
- Pois é...
Estava por perto e passei por aqui para ver a saída da escola.
- Você estuda no
Caetano?
- Sim.
- Mas as aulas
para meninos não são à tarde?
- São, mas eu
estava tendo aulas de flauta.
- E onde está
seu instrumento, pois ontem você estava com um em estojo?
Nunca me ocorreu
que fosse tão atenta e observadora, e sai com o que me veio de imediato à mente:
- Ah, é que a
aula de hoje foi teórica.
Eu estava
surpreso com esse talento dissimulatório que desconhecia. Por sorte não
perguntou mais nada, e seguimos o caminho praticamente mudos. No trajeto eu
disse que estudava no primeiro ano ginasial, ela disse que também, e não surgiu
outra conversa até a soleira do prédio em que morava, onde disse-me “tchau” e
seguiu pelo corredor sem olhar para trás ou para os lados.
Fui para casa
arrependido por não ter tentado combinar com ela um encontro no dia seguinte,
sábado, ainda que para ficarmos sentados na mureta em frente ao prédio em que
residia. Por outro lado, poderia ter posto em risco o pouco que havia
conquistado. Aos poucos, pensei, mas também assim estava me arriscando diante
da mentira. Até quando iria insistir na coincidência de passar pelo Caetano de
Campos naquele horário? Talvez fosse conveniente construir essa coincidência no
máximo duas vezes por semana, mas isso contrariava meu desejo de com ela estar,
além do risco de deixar espaço para algum concorrente mais atirado do que eu,
coisa que seria fácil para a maioria dos garotos. A melhor solução seria a
verdade, mas como Astrid reagiria a ela? Bem, eu teria tempo para pensar, pois
naquele momento tinha que esquentar a refeição, almoçar, lavar a louça e ir
para as aulas. Como de costume passei em frente ao prédio, mas nem sinal da
lourinha.
Me lembro
daquele fim de semana, pois estava ansioso para saber como iria explicar para
Astrid aparecer na porta da escola em plena segunda-feira, quando não teria
nova desculpa para lá estar e novamente naquele horário. Bom seria a verdade,
se tivesse coragem. Na manhã daquele
sábado minha mãe chegou da rua com um vaso retangular, raso, estreito e
comprido, um pequeno saco de terra preta, mudas de algumas plantas, e montamos
a jardineira que ficou ao pé da janela da sala, onde pudesse receber sol.
Embora não fosse árido, de fato faltava um pouco de vida no ambiente. Ficou
bonito. Havia um pequeno pé de pimentas vermelhas e arredondadas, com não mais
do que trinta centímetros de altura. Não me recordo das demais. Folhagens,
talvez. O domingo foi nervoso pela notícia de um vizinho de andar encontrado
morto pelo sobrinho que foi visitá-lo. Pouca gente o conhecia, pois morava só e
vivia recluso no apartamento, o que aumentou ainda mais a boataria. De
assassinato a suicídio os comentários corriam pelos corredores dos sempre
discretos paulistanos, principalmente por conta da movimentada remoção do corpo
pelas escadarias, pois não coube no elevador. Falou-se de tudo, menos da
possibilidade de o ancião ter morrido de velho. O sobrinho encontrou o falecido
no domingo, mas parece que havia morrido dias antes. Lembro-me da alarmada
vizinha em nossa porta comentando o episódio com minha mãe.
- Pobre homem.
Largado pela família. Ainda bem que o Senhor o recolheu.
Minha mãe ouvia
por educação, pois deu azar de sair ao corredor para saber o motivo da
algazarra. Depois do acontecimento, cada qual voltou ao refúgio de seu
apartamento, e a vida voltou ao normal, com os apenas bons dias e boas tardes
quando dos encontros casuais dos residentes. Afinal, não havia no centro da metrópole
os ritos de vizinhança com o qual convivíamos no periférico Brás. À tarde
amigos de minha mãe vieram nos visitar, como faziam com certa frequência. Traziam
pães italianos, cascudos e escuros, salames, queijos curados e vinho, que
haviam comprado nas casas da Bela Vista, bairro onde dois deles residiam. Um
deles trazia violão, eu pegava a flauta, e assim entrávamos pela noite comendo,
bebendo, tocando e cantando. Como a vida me era boa. Lembro-me que cantamos A Banda, de Chico Buarque, e que andava
na boca de toda a gente por conta do sucesso dos festivais da música popular
brasileira.
Mas para meu desencanto
O que era doce acabou
Tudo tomou seu lugar
Depois que a banda passou.
Hoje faz mais sentido. Melhor: hoje faz sentido.
Mas para meu desencanto
O que era doce acabou
Tudo tomou seu lugar
Depois que a banda passou.
Hoje faz mais sentido. Melhor: hoje faz sentido.
Segunda-feira
chegou e lá estava eu no horário de saída da escola à espera de Astrid. Como
antes ficava um pouco a distância esperando que ela surgisse na escadaria, até
que descesse para a calçada, para ter certeza de que não estaria acompanhada.
Não estava, como das vezes anterior estava só, enquanto as demais meninas
saíssem aos pares, trios ou bandos. Me aproximei sem ser visto:
- Oi!
- Oi, Pedro,
respondeu surpresa. O que faz por aqui?
- Vim lhe
buscar, disse-lhe com coragem, embora temeroso pela reação.
- Nossa! Exclamou
com sorriso discreto.
Ah, que alívio!
Ela havia gostado, e eu estava envaidecido pela própria coragem. Começamos a
andar pelo caminho de sempre. Lentamente, como de costume, ao menos para o
costume dela. No trajeto falei sobre o episódio do vizinho encontrado morto, e
do encontro, em casa, com os amigos de minha mãe. Ela ouvia. Como eu continuava
tagarelando quando da chegada ao prédio onde ela morava, apontou-me para uma
mureta na entrada do edifício, sugerindo que devêssemos sentar. Apenas quando
nos sentamos, e ela se manteve quieta e delicada como sempre, notei que estava
falando demais, mas a ansiedade me empurrava para movimentos, como se o
silêncio representasse algum prejuízo, alguma perda na iniciada relação. Esse
não era eu.
- E você? O que
fez neste final de semana?
- Nada de
diferente dos demais. Fomos com meu tio para uma chácara que ele tem na Serra
da Mantiqueira.
Voltamos à
mudez. Eu poderia ter feito várias perguntas, mas a resposta sintética da lourinha
e um alarme interior me disseram para fechar a boca. Eu não queria saber. Em
verdade nem mesmo queria ter falado sobre meu final de semana. Acho que nunca
falei tanto. Queria apenas estar em companhia de Astrid, mas não sabia como as
pessoas se comportam nessa circunstância. De boca fechada fiquei como ela
olhando para os próprios pés, para a calçada e para o movimento da rua. Me
sentia bem. Ficamos assim por pelo menos quinze minutos, quando ela disse que
precisava entrar, pois a mãe a esperava com o almoço a mesa.
- Posso buscá-la
amanhã?
- Se você
quiser...
Ah, a verdade
estava me libertando. Poderia buscá-la sem inventar motivos. Aliás, nem mesmo
precisava explicar porque desejava buscá-la. Como me sentia bem com isso, como
me sentia bem com sua presença. Como ela eu também não gostava de falar, não
gostava de bandos, não gostava de perguntas. Éramos parecidos justamente por
sermos diferentes da maioria das pessoas de nossa idade. Não precisávamos ser
como eles para continuar sendo nós mesmos, ainda que agora como um par. Segui
para meu apartamento esquentar minha refeição, trocar-me e seguir para as
aulas. Estava confiante de ter incorporado a alemãzinha em minha vida. Essa
condição deve ter refletido em minhas rotinas, pois minha mãe continuava
indagando:
- O que está
acontecendo com você, hein? Alguma novidade?
Eu sempre
respondia que não, embora soubesse o que ela queria ouvir. Entendia que era
assunto meu, da mesma forma que a vida afetiva dela assunto que não me dizia
respeito. Ela só satisfez a curiosidade meses depois, quando Astrid apareceu em
casa após dois dias seguidos sem buscá-la na escola. Eu estava acamado por
conta de uma gripe tão forte que minha mãe não foi trabalhar para cuidar de
mim. No início da tarde ouvi a campainha tocar, minha mãe abrir a porta, e a
voz da alemãzinha:
- Bom tarde. Sou
Astrid, e como não vejo Pedro há dois dias, imaginei que pudesse estar
doente.
- Ah, Astrid!
Entre, entre, disse minha mãe com efusiva cordialidade. Sim, ele está gripado e
me pareceu melhor permanecer em casa, mas ficará muito feliz com sua visita.
Espere só um pouquinho.
Entrou em meu
quarto e com sorriso malicioso disse:
- Você tem
visita. Astrid. Prepare-se para recebê-la.
Ajeitou uma
cadeira perto de minha cama e voltou para a sala.
- Venha querida.
Tão logo a
alemãzinha entrou no quarto ela apontou a cadeira.
- Fique à
vontade. Aliás, fiquem à vontade. Vou sair para deixá-los em paz.
Saiu, com o
mesmo ar malicioso, e fechou a porta atrás de si.
Astrid
sentou-se, e como de costume fiquemos quietos. Ela trazia nas mãos um pequeno
embrulho, que me deu depois de certo tempo.
- O que é isso?
– perguntei enquanto abria o pacote.
- Um livro.
- É seu?
- Não. Um
presente. Imaginei que estivesse de cama, e que talvez gostasse de um livro
para ajudar a passar o tempo.
- Volte sempre,
querida. Foi um prazer conhecê-la.
Astrid agradeceu
e foi-se. Minha mãe, é claro, correu para o meu quarto.
- Linda a Astrid,
não é? – afirmou com o mesmo olhar.
Para meu azar
viu o livro sobre a cama e quis saber dele.
- Ganhei da Astrid.
- Um livro de
presente? Albert Camus? Além de tudo Astrid é intelectual? Ah, agora entendo as
mudanças das últimas semanas. Bonita, elegante, culta... Interessante! Gostei.
Fiz de conta que
não dei importância aos comentários para que a descoberta não rendesse mais do
que já estava rendendo, mas parece que não deu certo. Os amigos que
frequentavam nosso apartamento passaram a perguntar por Camus e Astrid. Havia
simpatia em meio às malícias, mas confesso que eram desconfortáveis. Astrid era
assunto meu. Mãe, porém, estava envaidecida com o que deveria entender como
namoro do filho, do único filho. Deve ter noticiado para toda a redação. Por
sorte não publicou no jornal.
Mal recuperado e
fui buscar Astrid na escola.
- Bonita sua
mãe.
- É, ela também
achou você bonita. Aliás, bonita, elegante e culta.
- Culta?
- Sim. Ela viu o
livro e eu disse que ganhei de você.
- Ah!
Bem, esse foi o
único diálogo do dia. No final da caminhada nos sentamos na mureta de entrada
do prédio de Astrid, olhamos para o chão, e repetimos tudo novamente no dia
seguinte. Era assim de segunda a sexta, com sol ou chuva, frio ou calor.
Ilustração do autor |
Apresentei-me ao
porteiro como colega de escola da Astrid e perguntei pelo andar e apartamento.
Quinto andar. Apartamento cinquenta e um. Apreensivo apertei a campainha e
esperei ser atendido. E fui, por uma jovem senhora alta, magra e loira como
Astrid, que abriu a porta e sorriu-me a espera que eu dissesse alguma coisa.
- Bom dia. Meu
nome é Pedro, colega da Astrid, e vim saber se está tudo bem com ela.
- Pedro, repetiu
a senhora, com um sotaque carregado e que me parecia alemão.
Da porta e em
voz alta falou para o interior do apartamento, uma frase da qual só conseguir
entender Pedro, e ainda assim sofrivelmente. Ouvi Astrid responder naquele
mesmo e estranho idioma.
- Venha,
disse-me a senhora que pôs a mão sobre meu ombro e guiou-me ao dormitório da lourinha,
onde colocou uma cadeira perto da cama, e continuou com o mesmo sorriso
amigável enquanto saia e fechava a porta. Sentei-me com o estojo da flauta nas
mãos e fiquei olhando para a aparência abatida de Astrid.
- Gripe?
- Sim. Desta vez
sou eu.
Sorrimos e
continuamos quietos. A lourinha olhava para as próprias mãos juntas sobre a
coberta, e eu para o estojo da flauta.
- O que tem
nessa caixa? - perguntou.
- Minha flauta.
Trouxe para você ver.
Como ela
mostrou-se interessada abri o estojo e montei o instrumento.
- Bonita. Você
vai tocar para mim?
Com certa
timidez dei início a uma partita para flauta solo, de Bach. Foi o que me
ocorreu. Astrid alegrou-se e ergueu o corpo na cabeceira da cama. Não executei
muitas notas antes que a porta se abrisse e por ela entrasse a sorridente mãe
de Astrid, agora acompanhada de um homem da mesma idade, também loiro, alto,
magro, de barba ruiva e igualmente simpático. Surpreso e desconcertado parei de
tocar. Na língua estranha o homem falou com Astrid, que traduziu:
- Meu pai quer
saber por que parou, e se não conhece músicas tipicamente brasileiras.
Enquanto eu
pensava o que tocar, pai e mãe sentaram-se a margem da cama da loirinha e
esperavam atenciosamente pela minha performance. Bem, eu conhecia músicas
tipicamente brasileiras, e me ocorreu uma que sempre fazia sucesso: André de sapato novo. Tomei fôlego e dei de mim o melhor. Afinal, já
havia tocado inúmeras vezes aquela música.
Não conseguiam
esconder o encantamento e com o corpo acompanhavam o ritmo compassado do
chorinho. Astrid estava radiante. Afinal, não conhecia meu talento musical e,
decerto, estava envaidecida perante os pais. Aplaudiram ao final e o pai de Astrid
fez a ela novas perguntas naquele idioma que ainda me parecia próximo do
alemão.
- Meu pai quer
saber o nome e gênero da música.
- É um choro e
chama-se André de sapato novo.
- Agora ele quer
saber por que André de sapato novo.
- Dizem que o autor,
chamado André, deu esse nome à música depois de ir a um baile com sapato novo,
apertado, desconfortável.
Riram da
história. Agradeceram a audição e saíram do quarto. Simpáticos, amáveis e o
tempo todo sorridentes. Muito afetivos.
- Obrigada, disse-me
Astrid.
- Pelo que?
Gostei muito de tocar para você e seus pais. Espero que tenham mesmo gostado.
Aliás, vocês são alemães? Não entendo palavra do que dizem.
- Somos
noruegueses, Pedro, disse-me com a paciência dos compreensivos.
Escandinava, nórdica,
viking... Como eu poderia saber. Perto do horário do almoço expliquei que
precisava me preparar para as aulas da tarde. Astrid chamou a mãe para dela
despedir-me. Com um português sofrível a jovem senhora agradeceu a visita e
convidou-me para voltar outras vezes. O pai não apareceu na minha partida, como
também não tinha aparecido na chegada.
Tempo depois
estive novamente na casa de Astrid. O motivo, desta vez, não é lembrança muito
agradável.
De tanto
comparecer na porta da escola, acabei por me fazer notar por alunas. Pois não é
que uma delas, uma moreninha mais volumosa, digamos assim, resolveu puxar
conversa comigo todos os dias, antes que Astrid aparecesse no portal do
edifício? Me fazia perguntas e falava sobre ela, ainda que eu nada perguntasse.
Reconheço que era atraente, e foi por conta dessa qualidade que devo ter me aberto
ao jogo da sedução. A vaidade, a vaidade, mas a carreira de pavão durou pouco, pois
à distância Astrid saiu a tempo de ver parte da cena. Como consequência deve
ter saído às pressas e me deixado a ver navios. Esperei até a saída da última
aluna, andei apressado pelo nosso caminho de sempre, e nada de Astrid. Fiz
besteira e fui tomado de súbita consciência disso. Como consertar? Como
explicar? Como me desculpar?
No dia seguinte
e a mesma coisa: nada de Astrid no horário e local de saída. Esperei, me
apressei, e nada de Astrid. Me ocorreu que a besteira foi maior do que eu havia
imaginado. Eu feri Astrid, e com alguém que não tinha para mim nenhuma
importância. Por mero exercício de vaidade masculina, e que nem mesmo fazia
parte de meu repertório de valores. Por conta disso feri alguém que me era
importante, muito importante. A sensação de idiotice era maior do que a da
possibilidade de perda de Astrid. A reação da viking mostrou algo que eu não
havia percebido: eu era para ela mais importante do que pensava. Percebi,
também, que ela era mais importante para mim do que eu imaginava.
Voltei para casa
arrasado, e não encontrei outra solução que não fosse a ir ao apartamento dela
e de alguma forma demonstrar meu mais profundo arrependimento. Foi o que fiz.
Pela primeira vez faltei às aulas da tarde e fui bater na porta de Astrid. A
mãe dela abriu a porta.
- Boa tarde.
Astrid está?
- Sim. Entre.
Minutos depois
apareceu a lourinha. Nos sentamos na sala, eu em um sofá e ela em uma poltrona.
Não falamos nada. Ficamos olhando para os próprios pés. Depois de certo tempo
dei-lhe um pequeno envelope de papel celofane colorido. Ela pegou sem demonstrar
interesse e perguntou:
- O que é isso?
- Um presente.
Abriu e
encontrou a moeda de mil réis que havia apreciado em minha coleção.
- Não posso
aceitar. É a moeda mais valiosa de sua coleção.
Fiquei
desconcertado e só me ocorreu dizer que não era a mesma. Que essa eu havia comprado
para ela. Ela ficou olhando para a moeda de prata polida, e só depois de bom
tempo, sem levantar a cabeça, agradeceu e guardou. Ficamos mais um tempo sem
nada dizer, quando me pareceu prudente inventar uma desculpa para sair. Disse
que precisava pagar algumas contas para minha mãe. Antes da porta fechar-se
atrás de mim, fiz a coisa mais temerária de que me lembro:
- Posso buscar
você amanhã?
- Se quiser...
Ah, que alívio.
Eu havia conservado minha Astrid. Tenho certeza de que a nórdica não acreditou
que eu havia comprado aquela moeda, pois sabia que eu não tinha dinheiro para
isso. Para se ter ideia, comprei agora, nesta passagem pela cidade, na feirinha
que acontece aos domingos no vão aberto sob Museu de Arte de São Paulo, a mesma
moeda por trezentos e cinquenta reais. Passaram cinquenta anos para que
conseguisse repor. Em nenhum momento, porém, me arrependi do gesto. Em nenhum
instante. Teria presenteado com o que tivesse. Não foi, porém, pela moeda em si
que ela me perdoou, embora por conta do orgulho caprichoso eu não tivesse
pedido perdão. Ela entendeu que eu havia dado a coisa que tinha de mais valor
para resgatar a pessoa que eu tinha de mais valor. Ela entendeu. Também não
acreditou que eu iria pagar conta para minha mãe. Apenas julgou que o constrangimento
estava de bom tamanho para reparar o gesto tolo. Sabíamos, agora, o quanto
representávamos um para o outro.
Poucas foram as
vezes que nos encontramos fora do percurso entre escola e casa. O fato de
estudarmos em horários diferentes tornava nossa relação parecida com a do Sol e
da Lua. Finais de semana ela ia para o sítio do tio, que soube mais tarde
tratar-se de irmão do pai. Não lamentávamos, pois o que pouco que tínhamos era
o bastante para alimentar uma relação muito importante para ambos. Saímos
juntos em alguns feriados de meio de semana. Fomos a cinemas, na época
abundantes na região central de São Paulo, e a exposições de arte, sempre
gratuitas. Não tínhamos dinheiro e nem idade para teatros. Minha mãe, que declaradamente
tinha simpatia por meu vínculo com Astrid, dava-me dinheiro para pagar os ingressos
e comprar pipocas. Não precisávamos mais do que isso. Afinal, tínhamos a nós.
Trocávamos
livros, discos, e textos que tratavam da história da cidade de São Paulo. Estávamos
o tempo todo presentes um na vida do outro. Mesmo em meus devaneios não
conseguia ver-me sem Astrid. Qualquer que fosse o cenário e o enredo das mais
diversas fantasias, e lá estava eu buscando a nórdica em algum lugar. Eu
cuidava, protegia. Fazia isso também na realidade cotidiana, como quando a
cavalaria dispersou com cassetetes passeata de estudantes na avenida Ipiranga,
que protestavam contra a ditadura militar instalada no país. Em meio a
violência indescritível, e sem refúgio, entrei com a lourinha na entrada de um
prédio que havia fechado as portas internas, e fiz de meu corpo franzino um
escudo valente. Nada nos aconteceu. Não poderia ser diferente com Pedro e
Astrid.
A situação que
se mostrava estável, porém, foi ameaçada no final de tarde de um sábado, quando
minha mãe entrou em meu quarto com uma carta aberta na mão. Contou-me que era
de meu pai, querendo que eu fosse continuar meus estudos em Paris e morar com
ele. Ela estava animada com a notícia, mas eu não. Afinal, meu pai era uma
história sem nome e sem cores. Embora tivesse desejo de conhecer outros países,
nunca me ocorreu viver em nenhum deles. Além, e mais importante do que isso, do
fato de eu não querer apartar-me de minha mãe, e tampouco de Astrid.
Minha mãe, entretanto,
via-me visitando o Louvre, morando no Quartier Latin, passeando às margens de
la Seine, estudando no Collège de France e sabe-se lá mais o que. Como bem a
conheço, certamente embalada, também, pela ideia de o filho viver na cidade
luz, e distante da ditadura no que chamava de quintal dos fundos dos Estados
Unidos. Como notou que eu não havia ficado propriamente entusiasmado com a
notícia, resolveu dar tempo para que fosse a ideia fosse assimilada.
- Bem, é um
convite. Algo sobre o que pensar. Vou deixar a carta com você.
Deixou e saiu.
Fiquei olhando sobre minha escrivaninha aquele manuscrito e o envelope com
listas azuis e vermelhas nas bordas laterais. Tomei nas mãos e fui ver mais de
perto, manusear... Uma caligrafia elegante, em tinta azul, e terminada por
Henry.
- Ah, chama-se
Henry.
Nem isso eu
sabia dele, mas também nunca tive curiosidade. Vez ou outra, quando muito, como
a de conhecer o sabor de uma fruta exótica de que se ouve falar. Nem imaginava
como ele poderia ser. Letra elegante, entretanto. No restante, de pouco me
servia a carta ali deixada, pois a exemplo de norueguês não lia e não entendia
francês. Reconheci meu nome em três ou quatro trechos, mas apenas isso. Dobrei
os papéis e guardei na gaveta do móvel. Não se falou mais nisso. Na segunda
contei esse episódio para Astrid. Foi quando ela soube de meu pai, da gravidez
de minha mãe, etc. Ouviu com atenção e ao final de minha fala perguntou:
- E o que você
pretende fazer?
- Nada.
E era isso
mesmo. Eu não pretendia fazer nada em relação a isso.
Astrid e eu
gostávamos de passear no jardim da Luz e no parque da Água Branca. Íamos mais à
Luz por ficar perto de nossas residências, mas fizemos até piquenique na Água
Branca. Minha mãe e a mãe de Astrid preparam os sanduiches que levamos em
cestas de vime. Um dia ensolarado, quente, luminoso. Muito bonito. Depois de
passear pelas ruelas, observar as plantas e os pequenos animais soltos pelo
parque, nos sentamos em um banco sob a sombra de uma árvore enorme, fizemos
nosso lanche e lemos parte de O Muro,
livro de Jean-Paul Sartre - a época ainda em vida - desta vez por indicação de
minha mãe, e que o comprou para que eu presenteasse Astrid. Agora nos
alternávamos na leitura de alguns dos cinco contos do livro, ao menos naquela
edição, dos quais O Muro era um
deles, o primeiro. O conto narra a experiência existencial de três prisioneiros
nas masmorras de Franco, na guerra civil espanhola, então sabendo que seriam
executados na manhã do dia seguinte. O muro do fuzilamento... Não apenas esse,
porém. O muro que separa a vida da morte, que separa a pessoa de outras, que
separa as coisas e a nossa consciência. Minha mãe falou-me um pouco sobre
existencialismo, e eu estava compartilhando com Astrid. Tenho certeza de que
não entendemos a questão filosófica do existencialismo, talvez nem mesmo identificado
sua presença nas revelações dos personagens, mas pensávamos, refletíamos sobre
elas, e lembro-me de nos encantarmos com algumas passagens. Filosofávamos,
enfim. Lembro-me de termos compreendido que a vida está repleta de muros, que
existir é caminhar entre muros, inclusive os interiores.
Se eu dei as
costas para a ideia de Paris, minha mãe e Henry não haviam dado. Desta vez
apelaram para a imaginação por meio de meus sentidos. Henry enviou uma coleção
de fotos, que minha mãe fez questão de mostrar, uma a uma, em meio a
comentários empolgados. Vistas internas e externas do apartamento de Henry que,
como minha mãe, se mantinha solteiro. Imagens da escola na qual lecionava
literatura, e onde pretendia que eu estudasse. Imagens dos alunos e alunas da
escola. Do comércio das ruas no entorno do prédio de seu apartamento. Dos
pratos, dos doces, dos sorvetes. Como da vez anterior minha mãe deixou todo
esse material sobre minha escrivaninha, recomendando que eu apreciasse com
calma. Bem, ela e meu pai estavam mesmo executando um plano de sedução. Hum...
Estaria ela pensando em voltar para Paris e talvez viver com Henry, de onde a
necessidade de minha ida? Afinal, estavam ambos desimpedidos. Só havia um jeito
de saber: fui até seu quarto e perguntei:
- Você está
pensando em se mudar para Paris?
- Imagina. De
onde tirou essa ideia? Gostaria que você se mudasse, pois terá mais
oportunidades do que aqui. Além disso, vivendo com Henry, que afinal é seu pai,
eu ficaria tranquila, pois sei que estaria em segurança.
Sai satisfeito
com a resposta e voltei para meu quarto, onde deitado fiquei vendo as fotos. Henry
lembrou-me um pouco o pai da nórdica. Mesmo típico físico, e do qual também eu não
escapava. Parecia simpático. Um bairro residencial, repleto de sobrados, mas
sem prédios, cortado por ruas estreitas com pouco movimento. A escola tinha
certa semelhança arquitetônica com o Caetano de Campos, mas alunos não faziam
uso de uniformes. Tudo muito parisiense, tal como nos filmes e revistas, e que
forma nosso imaginário.
Mostrei para
Astrid, que fez um comentário e uma pergunta:
- Você se parece
mais com seu pai do que com sua mãe.
- E o que você
pretende fazer?
- Ora, nada!
Eu não pretendia
nada. Queria que as coisas ficassem como estavam. Morando com minha mãe naquele
apartamento, estudando ginasial no Caetano de Campos e flauta com o maestro
Alfredo, e sentir o tempo todo a presença da lourinha.
Sentados no
murinho de costume, Astrid disse que também ela queria contar-me uma
coisa.
- Tenho uma tia
que reside em Oslo, irmã de minha mãe, e que insiste para que eu me mude para
lá morar com ela e estudar em alguma escola local.
- E seus pais?
- Eles aprovam a
ideia de minha tia, pois dizem que terei mais oportunidades na Noruega e
região.
- E você? O que
acha?
- Eu estive para
ir, mas mudei de ideia depois que ingressei no Caetano de Campos e começamos a
conviver. Eu não saberia o que fazer lá. Não sei se quero estar lá. Somos
estrangeiros, lembra-se?
- Sim, somos,
mas estrangeiros a dois formamos uma nação, respondi.
Sorrimos diante
da descoberta que estávamos em situação muito assemelhada. Estávamos ligados
pela unidade que havíamos construído a partir de nós mesmos.
A vida continuou
na mesma corrente até que algo incontornável, um muro imenso se ergueu a nossa
frente. O pai de Astrid, que em São Paulo representava uma empresa norueguesa,
foi chamado de volta para a matriz. Sendo assim, a lourinha não tinha outra
escolha que não fosse mudar-se para Oslo.
Lembro-me do dia
que contou isso, sentados na mureta em frente ao prédio, como acontecia no
final da manhã de todos os dias. Ficamos muito tristes, mas tomados pela
sensação de impotência, como os prisioneiros de O Muro que seriam fuzilados na manhã do dia seguinte. Nem mesmo
podíamos dizer que estávamos sendo atropelados pelo imponderado, pois era uma
possibilidade na vida de um homem que se mudou com a família para pais
distante, mas na condição de empréstimo. O que podem fazer dois adolescentes
diante de uma força dessa magnitude?
Choramos.
Choramos muito.
Astrid se foi
para Oslo nos primeiros dias do mês de julho, e eu para Paris nos últimos dias
do mesmo mês. Até hoje sou apaixonado pela viking, pois isso não há muro que
impeça.
Rogério Centofanti
São Paulo - 22 de abril de 2018