As luzes da cidade não chegam as estrelas sem
antes me buscar.
Na medida do impossível tá dando pra se viver.
Na cidade de São Paulo, o amor é imprevisível
Como você e eu e o céu.
Na medida do impossível tá dando pra se viver.
Na cidade de São Paulo, o amor é imprevisível
Como você e eu e o céu.
Lá vou eu – Zélia Duncan
Como diziam os antigos, que alívio ter onde desaguar. Dois prazeres complementares, pois decorrem um do outro: livrar-se do desprazer da sede e livrar-se, depois, do desprazer de uma bexiga pedindo alívio. Por sorte caminhava pelas proximidades do jardim da Luz quando do aperto. Há nele um banheiro público que poupa o necessitado do constrangimento de pedir autorização para uso de sanitário em bares e restaurantes, uso esse quase sempre condicionado a algum consumo.
Jardim
da Luz ou Parque da Luz? Como queira. Parque da Luz é denominação mais recente,
mas o lugar é o mesmo, e ao lado da estação Luz, lindamente concebida e
edificada pelos ingleses no final do século XIX, e por onde embarcavam e
desembarcavam passageiros da então São Paulo Railway. Hoje tem movimentação bem
maior, mas pelos pobres e sofridos usuários da Companhia Paulista de Trens
Metropolitanos. Os suburbanos, que é o que são os passageiros restantes do que
um dia foi a invejável malha ferroviária paulista. Até mesmo a linda estação quase
se foi, e mais uma vez, por conta de incêndio recente. Os sucessivos governos tucanos que há mais de
duas décadas ocupam o Palácio dos Bandeirantes definitivamente não gostam de
trens.
Para
mim continua sendo o jardim da Luz, que um dia foi jardim botânico, e onde
ainda se encontra um sanitário público, providencial ao menos para velhos que com
o passar dos anos vão perdendo o controle sobre a micção. Desanimador saber que
o próximo passo será o uso de fralda.
-
Ridículo!
Quem
lembra isso é velho amigo que se tornou atleta depois de sobreviver a um
enfarte, mas garante que essa fase pode ser evitada por meio de exercícios dos
músculos que sustentam a bexiga. Talvez, mas parece-me desproporcional
exercitar sistematicamente um feixe de músculos apenas para ter o benefício do
controle sobre um órgão. O banheiro da praça está à mão, e isso me parece
suficiente. Também é assim no parque da Água Branca.
Eu
conheci esse jardim quando ainda criança. Tenho uma vaga lembrança de por ele
passar com minha mãe. Não me recordo se meu pai estava junto, e o que me sugere
essa possibilidade é o lume de memória de uma foto tirada por lambe-lambe em
algum jardim. Talvez não fosse esse, e nem mesmo a ocasião.
Apesar
de ter nascido em São Paulo, capital, passei toda a minha infância em um bairro
despovoado e pobre da periferia de Santo André, uma cidade suburbana. As
lembranças de São Paulo na infância, portanto, apenas em virtude das poucas
vezes que vinha para a metrópole. No restante, pouco do que lembrar.
Não
vou ao jardim da Luz apenas pelo sanitário público, evidentemente. Quando a
namorada está em São Paulo costumamos passear por ele. Ela o adora, principalmente
depois de por lá termos passado em um dia de chuva e na ocasião saudados por um
noia com expressão de inesquecível simpatia:
-
O amor é lindo, disse.
O
jardim não está abandonado, mas também não está devidamente cuidado. Já foi
mais exuberante. Lá estão muitas das velhas árvores, mas a vegetação rasteira
pede por zelo, assim como os espaços aquáticos. Tudo seco, e antes mesmo da
crise hídrica pela qual passa a cidade e o estado de São Paulo. À mostra os
leitos cimentados. Isso torna mais toscas do que já são as passarelas
igualmente de concreto, com parapeitos e corrimãos imitando troncos e galhos de
árvores. Padrão estético de outro tempo.
Ainda
lá está o inesquecível e lindo coreto, todo trabalhado em madeira, e coberto
com uma bela e ornamentada cúpula de cobre. Deve ter perdido completamente o seu
valor de uso. Incrível, mas ainda sou do tempo de bandas e coretos, embora
nunca tenha residido perto de nenhum.
Próxima
ao coreto outra cobertura, sob a qual velhos passam a tarde reunidos, ao que
parece jogando dama ou dominó. Não sei o que jogam, pois nunca me aproximei.
Embora eu tenha falado em um noia, não é praça de noias. Eles preferem
frequentar e morar nas proximidades da estação Julio Prestes, no passado da
Estrada de Ferro Sorocabana, agora também da Companhia Paulista de Trens
Metropolitanos, e perto da estação Luz.
Os
frequentadores habituais do jardim da Luz, assim como dos entornos da estação
Luz, são as prostitutas. Caracterizam-se pela idade avançada para o ofício. Se
eu fizer emprego desses ridículos termos inventados para disfarçar a dura realidade,
diria que são prostitutas da terceira idade, ou mesmo prostitutas da melhor
idade. São senhoras, literalmente senhoras, e a identificação de trabalho
percebida pelos trajes absolutamente em desacordo com o estado das formas das
anciãs. Curtos, demasiadamente juntos, chamativos, além da atitude de
disponibilidade. Provocam transeuntes com olhares e expressões que entendem
representar atrativo a eventuais clientes.
Confesso
que a primeira vista a impressão é estranha, pois muito bizarra. Em certa
medida chega a ser desoladora. As mais provocantes, digamos assim, ficam nas
entradas e passagens internas da estação Luz. No jardim da Luz, propriamente,
circulam senhoras mais discretas, sendo algumas rigorosamente discretas.
Uma
vez conheci uma delas, e não faz muito tempo. Eu estava sentado em um dos
bancos do jardim para descansar de um passeio pelas redondezas, e após mais uma
das incansáveis visitas à Pinacoteca - onde passaria dias admirando as obras de
Almeida Júnior -, quando surgiu uma senhora e perguntou-me com gentileza se
poderia também sentar-se no mesmo banco. Também com educação sugeri, por meio
de um gesto, que ficasse a vontade.
A
senhora bem vestida, e dotada de elegância nos modos, tão logo que se acomodou
abriu uma sacola de compras de onde tirou um tricô – agulhas e novelos de lã - que passou a manusear. Bonita, a seu modo, e
discretissimamente maquiada, passou a tricotar com movimentos suaves, mas
precisos. Imaginei
tratar-se de alguma aposentada, com residência próxima, e que vez ou outra
frequentava o jardim para escapar da rotina de casa. E era, mas não apenas
isso.
Sem
que eu esperasse, sem tirar a atenção do tricô, e sem olhar em minha direção,
perguntou-me se eu costumava frequentar o jardim.
Respondi
que não. Contei a história de lá ter estado pela primeira vez na infância, e
depois apenas mais recentemente por conta da namorada que nele gosta de
passear, principalmente para sessão de fotos de plantas, pássaros, construções,
etc. Disse-lhe que fazemos isso todas as vezes que vamos à Pinacoteca, e eu algumas
vezes quando de passagem por aquela parte da cidade para uso do sanitário
público.
Demonstrando
muito conhecimento, a senhora falou-me da Pinacoteca – que um dia foi o Liceu
de Artes e Ofícios - do Museu da Língua Portuguesa, do Museu da Arte Sacra, das
mudanças ocorridas no jardim ao longo dos anos, das alterações nos bairros
circundantes, nos públicos frequentadores e até mesmo nos riscos da atualidade.
Uma conversa interessante, instrutiva, e muito agradável. Uma prosa elegante, na
qual nenhum dos dois invadiu uma vez sequer a privacidade do outro com
perguntas invasivas.
Algum
tempo depois e disse-me a senhora o que de fato fazia no jardim – “programa” –
e com muita delicadeza colocou seus serviços a minha disposição, caso fosse meu
desejo.
Agradeci
a oferta, mas disse não ser outro meu interesse que não uma pausa na caminhada
para descanso. Aproveitei para dizer-lhe que não deveria prender-se a minha
companhia, uma vez que definitivamente não iria dela tornar-me cliente, e de
nenhuma outra que estivesse no jardim. Tranquilizou-me quanto a isso, afirmando
que a simpatia do encontro e da conversa era por si um prêmio. E era mesmo.
Pouco
depois me levantei e sai, e apenas em virtude do adiantado da hora. Na calçada
externa da estação muitas centenas de pessoas caminhavam apressadas em direção
as bilheterias. Hora de regressar para o subúrbio, para suas casas, mas antes se
sujeitando ao arriscado e sufocante embarque nos trens. Um serviço de segunda
classe para gente que, na concepção do governo, é igualmente de segunda classe.
Não vi velhos na marcha dos apressados que se amontoavam nas plataformas.
Certamente não sobreviveriam.
-
Inclusão, dizem os políticos.
As
velhas prostitutas da estação ficam ainda mais evidentes em meio à multidão com
suas roupas extravagantes. Em nada se parecem com a discreta colega do jardim,
embora a atividade seja a mesma. Interessante que adotam diferentes aparências
e abordagens, segundo as características de cada público.
-
Bem, é assim em qualquer serviço, pensei.
Às
mais degradadas os interessados igualmente degradados, e isso nota-se pelo
estado dos homens que delas se aproximam. Velhos e pobres, como elas.
Como
nunca tive interesse, mas também nenhum desprezo por elas, minhas interações
são sempre cordiais. É assim desde a adolescência, quando a repressão da
sexualidade era acentuada e as casas de prostituição tinham poder iniciático
para a juventude, no mínimo para alimentar o imaginário masculino. Nunca,
porém, fiz uso de serviço de prostituição. Sempre me pareceu estranha a ideia
de pagar por sexo. Posso até ter dormido com mulher que fosse prostituta, mas
jamais com a prostituta. Não fiz isso nem mesmo quando jovem adulto,
marinheiro, e residente em Rotterdam e Hamburgo, duas cidades portuárias.
Fiz
amizade com uma delas no bar de esquina de meu apartamento, e relativamente
perto do jardim da Luz. Ela nunca sai de lá, e tem para isso um forte motivo:
meu prédio é cercado por hotéis pequenos e baratos, e os hóspedes frequentam o
bar para nele comprar cigarros, ou mesmo para beber algo ou fazer um lanche.
Como
ela sempre me via comprar cigarros, e da mesma marca, brincava comigo
adiantando meu pedido ao caixa do bar. Cumprimentava, sorria, e eu me
comportava da mesma forma.
Uma
noite resolvi sentar-me junto ao balcão e pedi um lanche. Ela tomou a liberdade
de sentar-se ao lado e iniciar conversa. Sabia em qual prédio eu morava, e que
morava só. Me observava, a exemplo do que devia fazer com muita gente.
Uma
mulher de meia idade, mais jovem do que as da Luz, discreta e simpática. Depois
de algum tempo perguntou-me se eu não queria companhia para aquela noite. Agradeci
a oferta e disse que não. Brinquei, ainda, dizendo que antes só. Rimos.
Perguntou se eu não tinha mulher. Disse que tinha, mas que morava fora do Estado
de São Paulo, e que nos encontrávamos quando possível. Ela sorriu e disse que
talvez fosse melhor assim, pois não havia como um se cansar do outro. Antes que
eu deixasse o bar perguntou-me se eu não poderia pagar-lhe um lanche, pois
estava com fome, e pelo jeito não haveria cliente para aquela noite. Paguei
sim, e de muito boa vontade. Aliás, paguei algumas outras vezes.
Em
uma das vindas da namorada para São Paulo, e óbvia hospedagem em meu
apartamento, não é que a amiga do bar notou a presença? Quando novamente só e
no bar para comprar cigarros, dela ouvi elogios à namorada e à bela figura do
casal.
Nunca
tive problemas com nenhuma delas. Recentemente um jornalista bochechudo,
diretor de jornalismo de uma emissora de televisão e metido a debatedor, empregou
o termo “mulher honesta” para contrapor ao de prostituta.
-
Imbecil.
Tudo
no centro velho é explícito e diversificado. Os noticiários gostam de mostrar o
que ali tem de ruim, enquanto plantam ilusão da existência de bolsões de
segurança. Os velhos que moram e frequentam esta zona sabem disso, e de como lidar
com isso. Ora, muitos deles são traficantes, falsificadores e principalmente
golpistas, cujo disfarce de velho é perfeito para aparentar bondade e
fragilidade. Não importa, uma vez que velho nada mais é do que uma pessoa
qualquer.
Sendo
meu quarteirão o do comércio de motos e bicicletas, vejo aos montes velhos que
se mantêm fiéis aos tempos em que motociclistas eram rebeldes, e lá estão em
bandos com roupas de couro sob as motos potentes e caras. No apelo ao
politicamente correto, também estão velhos a procura de bicicletas para que
possam com elas desfilar pelas novas ciclovias ou ciclofaixas. Em alguns
lugares estão velhos que preservam costumes hippies, ou mesmo de roqueiros
radicais. O centro velho é verdadeiramente uma fauna.
Aquela
parte da cidade tem forte ingrediente sexual, inclusive dentre os velhos. Demonstração
disso está nas muitas farmácias e drogarias, que anunciam uma indisfarçável
competição na venda do comprimido azul para ereção. Nunca vi isso em outro
lugar, onde a venda evidentemente existe, mas discreta como tudo que diga
respeito à sexualidade.
Ali
é exemplo de tudo que moralistas condenam, talvez de onde a ocupação do mesmo
espaço público por pastores e suas pregações histéricas ao lado de travestis
fazendo ponto. Não gosto deles. Parecem-me degenerados no espírito. Homens
insatisfeitos com si mesmos, desafiadores em relação a tudo e a todos, e mal
acomodados dentro da forma de mulher.
Bem,
há quem goste. Esse é o lado bom da diversidade, inclusive para os velhos. Vejo
um ou outro entrando e saindo de boates, e mesmo dos antigos cinemas que se
tornaram locais de shows eróticos. A velhice por si não melhora e nem piora
nada. Exacerba o que as pessoas sempre foram ou tiveram vontade de ser, e isso
é verdadeiro também para suas taras e fantasias.
O
centro velho é repleto de surpresas. Qual não foi o susto, chegando uma tarde
ao apartamento, e encontrar um gato deitado na poltrona. Um gato cinza, grande
e gordo. Interessante que não esboçou nenhuma reação com a minha presença. Ficou
como se ali estivesse a vida toda. Fiquei eu sem ação.
Certamente
havia entrado pela área de serviço e devia circular entre apartamentos pelo
parapeito externo do edifício. De quem seria aquele gato, afinal?
Abri
a porta que dá acesso ao estreito e sombrio corredor na esperança de encontrar
algum vizinho que soubesse dizer do gato. Havia um menino limpando sua
bicicleta.
E
não é que ele sabia? Bastou descrever para que ele identificasse.
-
Anastácia.
Ora,
nem mesmo um gato era, mas uma gata. Animal de ninguém, mas ao mesmo tempo de
toda a gente. Disse-me que era alimentada coletivamente, e que circulava
livremente entre os apartamentos. Disse-me que era castrada.
Como
eu estava por ir ao supermercado, aproveitei para comprar um pequeno pacote de
ração, dois pequenos vasilhames para servir alimento e água, e descobri um saco
contendo um tipo de pedriscos, cujo conteúdo servia para que a gata fizesse uso
como sanitário. Desconhecia isso, mas conhecia a prática de areia dentro de uma
caixa. Afinal, sou de um tempo que gato era apenas gato, e cachorro apenas
cachorro.
Quando
voltei das compras a gata estava no mesmo lugar, e não moveu um músculo sequer
com minha presença. Guardei o que havia comprado, cuidei de colocar ração em um
dos vasilhames e água no outro, e os deixei em um dos cantos da área de
serviço. Fiz o mesmo com o material absorvente, acondicionando dentro de uma
caixa de uvas que consegui junto ao caixa do supermercado, e depois revestida
no interior por um plástico preto. Como a gata não se movesse, tomei a
iniciativa de tirá-la da poltrona, carrega-la sob o braço e coloca-la ao lado
da ração. Cheirou, abaixou-se e começou a comer com a delicadeza própria dos
gatos. Liguei a televisão para assistir o primeiro jornal da noite e sentei-me
na poltrona agora vaga. Notei, quando fui preparar um café, que ela havia
desaparecido. Bem, ela agora tinha comida, água e mesmo onde fazer suas necessidades
caso resolvesse voltar. Tive uma sensação agradável: a de ter um bicho de
estimação, mas sem sentir-me responsável pela manutenção dele.
Nunca
fui fanático por animais de estimação.
Causa-me espanto ver no que isso se transformou: pets, clínicas
veterinárias e toda sorte de produtos inimagináveis em passado não muito
distante.
Aquela
área é muito diversificada. Talvez nenhum outro lugar de São Paulo seja tão
plural. Encontra-se de tudo, e normalmente convivendo harmônica e
pacificamente.
Há
uma senhora bastante idosa que muitas vezes cruza comigo na calçada do prédio
do apartamento. Ela deve morar perto. Magrinha, bem magrinha, tem um andar
lento pelos passos curtos, embora determinados. Costuma vestir calça justa de
moletom e sobre ela um vestido estampado que vai até a altura dos joelhos.
Cabelos curtos, mal cortados e mal cuidados. Quase sempre me cumprimenta com um
sorriso quando passamos um pelo outro.
Um
dia desses e ela parou, ficou me olhando como se quisesse dizer-me algo quando
dela me aproximasse. E foi o que aconteceu.
-
O senhor assiste Tv?
-
Às vezes, respondi.
-
Como se chama o ator do filme Uma Bela Dona?
Eu
sabia de que filme ela falava. Não era esse o título e não me lembrava do nome
do ator.
-
Vou pesquisar e direi à senhora na próxima vez que nos encontrarmos.
Ela
concordou, agradeceu, e seguiu o caminho. Pesquisei na internet e lá estavam os
dados: Uma linda mulher, com Richard Gere. Era isso. No encontro seguinte
fiquei eu parado esperando que ela se aproximasse para passar-lhe a informação.
-
Uma linda mulher, com Richard Gere.
Ela
agradeceu e continuou na caminhada. Não foi a última vez que me fez perguntas.
Bem, parecia claro que ela apreciava palavras cruzadas, e também claro que não
pesquisava em fontes impressas ou digitais.
Lembrei-me
agora do escritor, poeta e filósofo do quarto andar. Bem, é assim que ele se
apresenta no folheto afixado no quadro de avisos da portaria, bem como na
contracapa do pequeno livro de que é autor, e deixado para consulta de quem
queira conhecê-lo na portaria do prédio, mas amarrado à mesa por um barbante
grosso para que não seja desviado. Não conheço a pessoa, mas tive a curiosidade
de folhear a pequena obra. Nem pensar na compra autografada de um volume, tal
como anunciado a quem por isso se interessar. O homem escreve mal, e em todos
os sentidos. É daqueles que constroem frases bonitinhas pelos arranjos de
palavras, mas que não dizem nada para o intelecto e tampouco para as emoções. Escreve
de modo superficial sobre coisas superficiais, e faz depois emprego de algum
dicionário de sinônimos para dar a cada expressão a aparência de algo solene.
Quanto ao lado filósofo, nada além de bobagens sem nexo, mas com fumaças de
profundidade. Um modelo igual a esses tantos que se encontra às dúzias pelas
redes sociais. Não deixa, porém, de ser o homem culto do edifício e creio que
isso envaidece os demais moradores, na maioria pessoas simples e ao que parece
distante do mundo das letras.
Encontro
com filosofia, naquela região, apenas uma vez e com um noia que me pediu uma
moeda para almoço no Bom Prato mais próximo, um programa da Secretaria do
Desenvolvimento Social do Governo do Estado. Disse que noias somos nós, os chamados
normais, pois não conhecia paranoia maior do que vender o tempo de vida no
trabalho e apenas para sustentar a própria vida. Bem, algo sobre o que pensar
com seriedade, uma vez ser essa a condição da grande maioria de nossa gente.
Vem-me
também à lembrança uma cena sui generis. Ferroviários promoviam assembleia na
frente da estação Júlio Prestes, quando uma jovem noia pediu para fazer uso do
microfone. Os ferroviários deram a ela a palavra, e não é que imitando a eles
propôs um “encaminhamento”? Queria que fosse votada a proposta que a estação Júlio
Prestes passasse a se chamar estação Cracolândia. A proposta não foi votada,
mas a moça muito aplaudida pelos presentes – ferroviários e usuários de trens.
Como
é gratificante visitar um sebo que fica próximo à praça da República, onde se
encontra um grande acervo de obras raras, e ser atendido por livreiro que conhece seu negócio, seu público e
boa parte dos títulos e autores pelos quais seus exigentes clientes –
colecionadores e pesquisadores - vivem à procura. Nada ali lembra o comércio genérico
de livros seminovos e atendentes que desconhecem livros e autores, embora façam
emprego do pretencioso slogan “posso ajudar”. Nunca ajudam, pois nada sabem.
Também
gratificante passar momentos agradáveis na cadeira do barbeiro que trabalha no
mesmo lugar há mais de trinta anos e mantém os mesmos cortes e métodos.
Verdadeiramente um barbeiro. Um retorno ao passado, e com a cortesia de
atendimento do passado. Trata-me por cavalheiro. Como escapar da Berinjela a
Parmegiana do tradicional La Farina – sem que isso desmereça o churrasco grego
da esquina ou o tempurá da barraquinha de alimentos - e do sempre agradável
encontro aos domingos na praça da República com meu amigo, o artista plástico
peruano Hugo Espiritu Escobar, autor de maravilhosas pinturas sacras no mais
autêntico estilo barroco cusquenho (acima a esquerda)? Não importa se o bolso não alcança o
terraço do Edifício Itália ou as mesas do Bar Brahma, pois o velho centro tem
atrativos para todos os bolsos, e nem por isso menos encantadores.
Muita
coisa ali surpreende. Não faz muito tempo e precisei acamar-me por conta de um
fortíssimo resfriado. Na primeira noite sob as cobertas e senti a presença de algo que se movimentava com extrema leveza sobre a
cama. Com o pouco de luz que ainda entrava no quarto vindo da iluminação da
rua, vi que era a gata – Anastácia – que me olhava com atenção enquanto
pisoteava o local em que pretendia deitar-se, como que ajeitando um ninho.
Terminado o pisoteio ela deitou-se, continuou me olhando por algum tempo e em
seguida dormiu encostada em minha coxa esquerda. Bem, também eu resolvi dormir.
Para
meu espanto Anastácia ficou me fazendo companhia por três dias seguidos, tempo
que fiquei recolhido até o desaparecimento dos sintomas. Ia comigo dormir
quando eu me recolhia sob as cobertas. Acordava quando em acordava, levantava
quando eu levantava, deitava na poltrona e de lá ficava me olhando enquanto eu
estava à frente do computador e se deitava em meu colo quando eu me sentava na
poltrona para assistir programas de televisão. Quando me senti melhor e pude
sair para cuidar de atividades externas Anastácia foi-se, e não mais voltou
para dormir ao meu lado. Não gosto de pensar em animais de forma
antropomórfica, mas desta vez fui tentado a crer que Anastácia, a gata, tenha cuidado
de mim durante esse tempo. Nunca imaginei isso, ainda mais lembrando que somos seres
independentes e desconhecidos. Afinal, somos ambos paulistanos: discretos e
silenciosos.
Rogério Centofanti
São Paulo, junho de 2016