sábado, 11 de junho de 2016

O encosto


É mala esse cara é mala
É mala é uma pedra no sapato
É mala essa cara é mala


O mala – Caviar com rapadura


Ainda digo que um dos problemas daquela criatura é ser membro de igreja com feitio de seita, certamente formatada para congregar pessoas sem tradição na vida familiar, profissional, intelectual, científica, artística ou mesmo religiosa. Não é sem razão que essa gente se sente atraída por essas espécies de agremiações – e não apenas religiosas -, uma vez que elas trazem em si a promessa de superação de vassalagem pessoal e social de grande número de pessoas, pois lhes empresta um clima de importância. Tornam-se nelas, como gostam de dizer, “alguém”. Não se tornam nada, evidentemente, mas parece muito para quem literalmente aspira por alguma identidade social.

A lógica é mais ou menos a seguinte: melhor lugar cativo no banco de alguma igreja na periferia da periferia do que ser apenas mais um em alguma grandiosa catedral. Não é, portanto, uma disputa de crenças, mas de oportunidades pessoais e sociais dentro de suas representações.

O que dizer de uma seita na qual o “ninguém” é convencido de que será guiado pelo Espírito Santo, na qualidade de eleito e aceito em uma irmandade apartada dos ímpios pelo desejo de Deus? Não é difícil imaginar do que seja capaz uma criatura que se fez convencer de que tudo que pensa, sente e faz é produto da inspiração divina, de uma revelação. A criatura acredita ter intimidade com o altíssimo, mas pratica humildade para não atrair a ira invejosa dos fariseus. Ah, como ser superior, o crente tem o poder do perdão. Afinal, os descrentes não têm “o” entendimento, e dessa forma não sabem o que fazem.

É movido por uma soberba desmedida, embora da boca para fora seja o protótipo da humildade. Afinal, quem não tem o que apresentar de si, apresenta filiação a entidades que imagina com prestígio como se isso pudesse lhes impregnar com a mesma importância. Clubes, igrejas, confrarias, partidos e o que mais lhes parecer dotado de poder.

Parte do que sei desse personagem chegou-me por pessoa que com ele trabalha em uma mesma empresa por mais de duas décadas. Foi irresistível perguntar. Como sei onde trabalha? Porque se veste com uniforme da empresa o tempo todo. Foi definido pelo colega como chato e inconfiável.

Não sei o que quis dizer com isso, mas o sujeito sempre me passou essa sensação: a de inconfiável. Nunca me convenceu aquela roupagem de modéstia: o andar lento e recatado das ovelhas, olhar baixo dos bovinos, falar mole de “gente simples do interior” e movimentos medidos. O cabelo curto e cortado sempre no mesmo tamanho e estilo, as mesmas roupas com o mesmo feitio e mesma cor cinza, os mesmos cumprimentos e assuntos, a teatralidade dos gestos e das expressões, e o repisar das piadas sem graça. Literalmente sem graça, diga-se de passagem. Figura insonsa que em nada encanta.

Presença desagradável, pois não passa nenhuma sensação de honestidade de propósitos. Nunca diz a que veio, e nunca se sabe para onde vai. Não consigo imaginá-lo diferente nem mesmo na adolescência. Talvez com alguma espontaneidade, mas pouca. É exemplo de embotamento afetivo, embora aprecie demonstrar indignação quando diante de clamores vulgares, piegas. Bem, tudo nele é superficial, de onde a compensação teatral das expressões, gestos e atitudes, embora canastrão.

Descobri mais tarde que é aspirante a camaleão, embora sem talento suficiente para algum sucesso na roupagem daquele bichinho. Não convence, pois ninguém acredita em seus propósitos. Quer frequentar, aparecer e ser aceito em meios de destaque político, social, econômico, intelectual, científico e artístico – de onde os recursos de camaleão -, mas lhe falta enzima para vestir-se de qualquer uma daquelas formas. Empenha grande esforço, ainda que sempre sem resultado. De fato, inconfiável. A rigor não tem outros ambientes que não sejam os de sempre: família, trabalho e igreja. Como no trabalho é isolado, parece que restou família e religião. Parece. Não tem amigos, colegas e muito menos mulher, exceto a mãe, é claro. Tem parentes, muitos parentes. Bem a clássica dupla: deus e família. Pátria e propriedade apenas para quem tem alguma tradição nesses apelos, e não é o caso dele.

Sou vizinho da criatura. Na verdade vizinho da mãe da criatura, e soube mais tarde, com a qual vive nos cinquenta anos de vida. A criatura nunca conseguiu dar um passo longe da progenitora. Mesmo viagens de férias apenas para lugares onde tem parente. Tem medo e desconfia de estranhos, inclusive de lugares estranhos. Afinal, convencido de suas qualidades superiores, imagina-se sempre vigiado por pessoas e forças que sabem do poder de suas ideias e de seus conhecimentos. Um paranoico, portanto, e na percepção dele deixado de lado das grandes oportunidades da vida por ação dos que temem pelo brilho da luz de seus incomparáveis talentos. O homem está mesmo convencido de que é superior a tudo e a todos. Um doente.

Meu primeiro contato com esse personagem deu-se exatamente no dia de mudança para o apartamento, infelizmente no mesmo andar ao da mãe dele. Ainda ajeitando as poucas mobílias deixei aberta a porta do corredor para melhor movimentar-me no pequeno espaço. Estava pregando para pendurar meus quadros quando ouvi:

- O senhor é católico?

Era o sujeito parado na porta e observando a movimentação da mudança. Olhei para ele rapidamente e voltei minha atenção para o que estava fazendo.

- Não, respondi. De onde saiu essa ideia?

- Das imagens dos quadros e dos santos que estão sobre a mesa.

- Não são imagens de santos nos quadros e nem nas esculturas. São obras de arte.

Surpreso com a resposta, pois imagino que em nenhum momento tenha pensado nisso, despediu-se e sumiu. Lembro-me até hoje da cena e da sensação: não gostei do sujeito. Não causou boa impressão, mesmo porque invasivo. Do lado dele, porém, parece que despertei curiosidade, pois sou diferente das pessoas com as quais estava acostumado a conviver. Hoje entendo melhor: tentou entrada pela porta da religião, mas minha resposta mostrou que deveria procurar outro caminho, outra cunha. É o que fez: dois dias depois e havia deixado para mim, aos cuidados do porteiro, uma revista com matérias sobre arte sacra. O camaleão dava início a suas metamorfoses.

Chatice minha? Intolerância de minha parte? Não nego que gosto de minha privacidade e que me comporto como peixe de toca, territorialista, mas a intuição dizia que aquele sujeito iria trazer desprazeres. Como um sujeito que confunde objeto de arte com símbolo de adoração aparece me oferecendo uma revista com conteúdos de assunto que ele desconhece? Escrevi um pequeno bilhete agradecendo, o prendi com mini clipe na capa da revista e deixei para ele na portaria, tal como havia recebido.

Chato, como definido pelo colega de trabalho, não é que bate em minha porta no início da tarde de um sábado? O pior é que não me deu oportunidade para saída educada, pois se adiantou em dizer a razão da presença:

- Visita de vizinho.

Apontei com a mão o caminho da entrada e também o da poltrona bergere solitária, embora de quase nada servisse, pois o personagem foi diretamente para os quadros e esculturas. Invadido fiquei preparado para novas deselegâncias, em particular para que passasse os dedos nas telas ou tocasse nas esculturas. Ficou de pé diante das obras, com as mãos cruzadas nas costas, e com expressão de quem sabia apreciar e avaliar.

- Leu a revista? – perguntou-me.

- Não, respondi da cadeira giratória de que faço uso em minha mesa de trabalho.

- Devia ter lido, disse-me o arrogante, pois trás muitas informações sobre arte sacra.

Bem, diante disso perdi o controle, e não mais me senti obrigado a ser gentil com a inoportuna visita.

- Quem não é capaz de diferenciar santinhos de igreja de obras de arte, respondi, não sou eu. Embora minha cultura artística não seja das melhores, continuei, está bem acima da ignorância da maioria.

O sujeito absorveu, cinicamente fez de conta que não era com ele, e sentou-se na poltrona que lhe foi indicada. Cruzou as pernas como um cavalheiro, assumiu ares professorais e deu início a um longo e impreciso monólogo sobre arte sacra. Evidente que havia decorado o discurso regado a “crasse”, “pobrema”, “menas”, “percas” e outras pérolas que agrediam os ouvidos, enquanto a figura bizarra agredia os olhos. Descobri mais tarde que a fonte da criatura para fartar-se de tamanha erudição era a Wikipédia. Fiquei quieto. Abismado diante daquele espetáculo grotesco, mas agora com calma para ver até onde aquilo tudo iria. E não é que foi longe?

Esgotado o repertório do espetáculo degradante para o qual havia se preparado, levantou-se e foi ver de perto os livros de minha pequena estante. Tudo isso, é claro, como se dotado de liberdade e autoridade para todas as movimentações.

- O senhor é nazista?

- Não, respondi. De onde saiu essa ideia?

- Aqui tem livros sobre nazismo.

- Tem, respondi, inclusive Mein Kampf do próprio Hitler, mas não sou nazista. Apenas estudioso quando algum assunto me interessa, e na medida de meu interesse. Aliás, se olhar para o lado direito da estante, notará uma pequena, mas boa coleção de livros de arte, inclusive sacra.

Imaginei que com mais essa e ele decidisse voltar para seu apartamento. Ledo engano. Voltou para a poltrona como se nada tivesse acontecido e iniciou um longo, errôneo e cansativo discurso sobre episódios da segunda guerra mundial. Estava decidido a impressionar-me, e por ensaio e erro procurava um caminho para tal.

Quando finalmente se foi ele sabia algumas coisas a meu respeito. Que não sou católico, não sou nazista e que gosto de pesquisar assuntos de meu interesse.  Que moro só e que sou relativamente bem formado. Pelo menos bem melhor formado do que pessoas que ele tenta impressionar com a extensa cultura wikipediana. Para meu azar essas características atraíram a figura como açúcar atrai formiga, pois imaginou ter por perto um colega no plano da intelectualidade, pois é assim que se imagina. Como confunde informação com conhecimento, acredita-se muito culto. Tornei-me para ele um achado, um feliz achado, e ele para mim um tormento, um infeliz tormento.

Pois bem: no final da tarde da segunda-feira seguinte à última visita, e eis que o porteiro me entrega mais uma revista, agora com matérias sobre o nazismo. Desta vez minha tolerância caiu à zero, mesmo porque ficou fácil imaginar o que seriam meus dias naquele apartamento, o tempo todo assediado pelo indivíduo. Novamente escrevi um bilhete, desta vez dizendo que estranhava não ter notado que minha curiosidade pelo nazismo foi satisfeita pela leitura de livros especializados, e não pela superficialidade de revistas de apelo popular. Além disso, disse que não gosto de ser pautado em minhas leituras, mesmo porque sei discernir o que me interessa e onde buscar informações. Prendi o bilhete na revista e deixei outra vez aos cuidados do porteiro. A figura sumiu por uma semana e imaginei ter-me livrado daquele incômodo, daquele chato, daquela mala sem alça. Não me livrei. Vergonhoso, considerando minha formação acadêmica, que eu tenha imaginado ser possível afastar um paranoide com tanta facilidade.

Duas semanas depois e eis a minha espera uma carta sob a porta do apartamento. Longa, muito longa, impressa, e dentro de um envelope lacrado. Endereçada a mim com nome completo. O sujeito havia descoberto meu nome e sobrenome, possivelmente junto à portaria do edifício. Deixei sobre a mesa para a ela dedicar atenção depois de reconfortante banho seguido de café expresso.  Ainda bem que me preparei para a leitura, pois nunca estive diante de uma apresentação tão descuidada, tão deselegante, tão grosseira e esteticamente tão porca. A figura desconhece ponto, vírgula, dois pontos, ponto e vírgula e parágrafo. Creio que nunca soube o que concordância verbal e nominal. Emprega diferentes fontes e de diferentes tamanhos em um mesmo texto, além de tratar o leitor como se fosse cego, analfabeto ou imbecil, a considerar o número de vezes que escreve em maiúsculo ou grifa palavras ou frases inteiras que deseja destacar. É grosseiro na escrita como grosseiro nos demais modos. Não haveria problema algum, não fosse ele metido a culto, letrado e intelectual, não tivesse ele tais pretensões. É apenas leitor de jornais. Um analfabeto informado, e nada mais do que isso. Seu cavalheirismo – pois imagina ter hábitos nobres – é tão verdadeiro como uma nota de três reais e tão espontâneo como discurso de Aécio Neves.

Ele havia mudado de tática. Afinal, se eu me interessava pela Mein Kampf, de Hitler, por que não iria interessar-me pela Mein Kampf dele? Evidente que as diferenças eram abismais, mas não pela perspectiva da igual megalomania do vizinho. Em favor de Hitler posso afirmar que ao menos sabia escrever, o que é um grande alento para o leitor. O vizinho não tinha essa qualidade. Além de não ter o mínimo domínio sobre as regras do idioma, não tem o mínimo de disciplina para dissertar sobre o que quer que seja. Nenhum parágrafo tem relação com o anterior. O que escreve é literalmente um samba do crioulo doido. Uma bela peça para estudo de caso sobre desequilíbrio mental. O sujeito estava bem pior do que eu poderia ter imaginado.

Tentava agora uma porta de entrada pelo coração, pois sua carta traçava a biografia de uma pessoa dotada da mais alta integridade moral, e por isso discriminada e perseguida ao longo de toda uma vida. Nivelou por baixo minha inteligência, mais uma vez, ao imaginar que eu seria sensibilizado por apelos tão piegas.

Filho de pobres, na adolescência trabalhou na venda de serviços aos arrogantes e prepotentes moradores de um bairro rico de São Paulo. Frequentou curso superior, mas abandonou antes do término por não suportar a arrogância dos professores. Pensou em cursar engenharia, mas julgou melhor continuar atuando como técnico, uma vez que engenheiros são incompetentes e esnobes. Os irmãos da igreja são hipócritas e os colegas de trabalho vagabundos e alienados. Jornalistas são lacaios a serviço dos interesses dos donos das mídias e políticos entregues aos interesses do capital. Em resumo, o homem é um poço de virtudes morais, religiosas, científicas e políticas, mas sem o devido reconhecimento de pessoas e instituições marcadas pela incapacidade e prepotência. 

Claro que ele, ao reclamar para si a majestade dessas qualidades todas, se apresenta como exemplo de humildade e modéstia. Bem, não é reconhecido socialmente, pois os serviços de segurança das potências mundiais sabem e muito bem de seus poderes, motivo pelo qual é seguido e vigiado o tempo todo, razão do modo camaleão de ser. Em resumo, esses são os pontos principais de suas muitas e confusas páginas. Iria eu abrir mão de uma amizade de tamanho quilate, e ao mesmo tempo discriminá-la como fazem todos os esnobes? Sim, iria, e precisava encontrar uma forma eficaz, pois isso tinha jeito de ir longe. Decidi não manifestar-me sobre a carta. Não pretendia reforçar esse relacionamento. Encontrei-o algumas poucas vezes pelas áreas comuns do prédio, mas como se nem mesmo tivesse tomado conhecimento daqueles papéis. Afinal não pedi aquilo e não tinha porque manifestar-me. Único problema, e não pensado, é que meu silêncio poderia ser por ele interpretado como desdém, o mesmo dos prepotentes do bairro rico, dos professores, dos engenheiros e de quantos mais quiseram ver a criatura pelas costas. Era mesmo desdém, oras. Afinal, nunca vi um tipo tão chato. Literalmente um encosto.

Não foi fácil identificar e reunir os pontos importantes naquelas páginas todas. Os poucos se faziam acompanhar de uma verdadeira viagem de regresso pelos caminhos da história, e como de costume sem nenhuma relação entre os episódios citados. Afinal, na cabeça do infeliz tratava-se de demonstrar erudição – wikipediana, logicamente -, embora sem nenhum nexo. A Guerra do Peloponeso e o Império Otomano. Queda do Império Romano e a quebra da bolsa de valores de Nova York no início do século passado. A Revolução Russa e a dinastia Han da China Imperial. A biografia do infeliz outra coisa não é do que a síntese rediviva da história universal. Tivessem os Césares conhecido e ouvido tão distinta personalidade, e o mundo teria trilhado caminhos diversos dos conhecidos. Descobri finalmente: o sonho da criatura é tornar-se um consultor, um conselheiro, um guru, um ser capaz de influenciar os influentes, uma eminência parda de poderosos. Eis a razão do apontamento da arrogância em professores, políticos, empresários, engenheiros, jornalistas, etc. Essas figuras são o que ele não conseguiu e não consegue ser. Pior: não reconhecem a ele como a um igual.   

Bem, ele sumiu de minha porta. Nem presencial e nem por meio de revistas e textos deixados na portaria e sobre minha porta. Por outro lado descobriu meu endereço eletrônico,  e com isso a presença virtual se tornou possível. Descobriu também pela internet parte de minhas atividades, e dentre elas algumas publicações. Sabia agora de minha formação e áreas de interesse e pesquisa. Sem nunca imaginar que eu pudesse ter uma forma peculiar de pensar, sentir e agir, pois não conhece outras dimensões do viver a não ser a dele e a de seus familiares, acreditou que a mim teria acesso pela Política e pela Psicologia. Afinal, para ele o mundo é meramente temático, bem como as relações. Nunca lhe ocorreu, porém, que eu pudesse estar interessado por Psicologia Política, isto, pelo estudo do comportamento político, e não pelos espetáculos midiáticos dos políticos.

Não tendo percebido isso, resolveu incluir-me no mailing de pessoas para as quais todos os dias envia links ou mesmo cópia de notícias sobre assuntos relativos à política nacional. Não bastasse essa prática que reputo odiável, ainda grifa, destaca trechos que ele considera de importância, como se o leitor não soubesse ler e discernir o que lhe parece relevante. Some-se que resolve ele próprio - e com o quase analfabetismo característico – registrar seus comentários, as preciosidades de suas opiniões. Em resumo: decidiu abordar-me pelas práticas que mais abomino nas redes sociais: opinionistas de plantão cacarejando sobre as quireras que os meios de comunicação atiram no terreiro para que as galinhas, histéricas, se digladiem por elas. Nunca, em nenhum momento enviou-me um único texto que fosse dele.

- Ah, é assim que vive, pensei.

Quando não estava no trabalho se enfiava no computador. Bem, também eu fazia o mesmo, mas no meu caso para escrever crônicas, artigos e mesmo livro, baixar obras raras que estão em domínio público, trabalhar imagens e comunicar-me com os poucos amigos. Ele fazia uso do computador para bisbilhotar os noticiários e sobre eles formar opiniões, depois enviadas para quem não as pediu e possivelmente por elas não tivesse interesse. Como ele também eu sou solitário, mas diferente dele, por escolha. Está cheio de gente assim, e que se comporta com as tecnologias modernas como se comportavam as antigas Marocas a partir das janelas de suas casas que se abriam para a rua: cuidavam da vida dos outros.

O sujeito confunde informação com conhecimento, e ao passar horas caçando informações acredita que está ampliando seus conhecimentos. Como se imagina a cereja do bolo acredita que formar opiniões sobre informações seja uma forma de produzir conhecimentos, depois compartilhados com pobres coitados que ele incluiu em uma lista de escolhidos para merecer a luz do que deve chamar de seus “saberes”.

Fiquei quieto. As mensagens chegavam quase todos os dias e eu simplesmente as apagava junto com as cansativas propagandas. Diante do silêncio a criatura resolveu elogiar meus poucos artigos disponíveis na internet. Como não podia sobre eles opinar por conta do mais completo desconhecimento dos conteúdos, restringia-se aos elogios. Como era atenção ao meu trabalho, educadamente eu respondia com o devido agradecimento, mas apenas isso.

Como poucos eram os textos disponíveis, poucos foram os elogios no intuito de demonstrar atenção ao meu trabalho. Sendo assim, perguntou-me por e-mail se eu não tinha ou não estava escrevendo mais alguma coisa. Respondi que sim, e que estava todo voltado para isso. Bem, por que fiz essa besteira? Recebi uma mensagem nos seguintes termos:

- Então vamos conversar pessoalmente sobre esse livro.

Foi demais, pois agora passou de todos os limites aceitáveis. O sujeito imaginou-se em condição de igualdade dentro de um campo com o qual não tem nenhuma familiaridade, ou viu-se sentado em minha poltrona enquanto eu narrava o que estava pesquisando para seu conhecimento e talvez avaliação.

Não houve conversa alguma, logicamente, e não imaginei outra forma de por fim naquele assédio que não fosse com coice envolvendo as quatro patas. Respondi que não haveria a tal conversa e pelos seguintes motivos: não converso sobre o que estou escrevendo, principalmente com pessoas que nada tem em comum comigo, com o tema sobre o qual estou me dedicando e menos ainda com quem não tem traquejo para lidar com métodos de pesquisa e redação de textos de natureza acadêmica.

Funcionou, pois em resposta chamou-me de arrogante, de esnobe.


Que maravilha, pois saiu do meu caminho. Houve conversa entre moradores do prédio que vizinhos de parede haviam se indisposto com ele por conta de barulho. Soube que havia resolvido se dedicar à música e que estava aprendendo a tocar tuba. A saber se tenor, baixo ou contrabaixo, mas tuba. Bem, como não tem história e vocação para arte e estética, pois dotado da sensibilidade de uma ostra, resta deduzir que pretende fazer parte da orquestra da igreja. Por sorte moro no lado oposto do corredor. 

Rogério Centofanti
São Paulo - Junho de 2016