sábado, 18 de junho de 2016

Da serra e do mar

Quanto mais eu ando,
Mais vejo estrada
E se eu não caminho,
Não sou é nada.

O Plantador – Geraldo Vandré

Não creio que seja literato, mas morro de inveja de quem é. Porém, tenho esboçado passos na tentativa de escrever alguma coisa que possa merecer tal nome, e olhe que nesta fase nem mesmo penso em qualidade. Certamente eu poderia procurar ajuda e sair deste penoso caminho de ensaio e erro, inevitável no autodidatismo, mas parece que a teimosia é maior do que o desejo de acertar. Vai também nesta bagagem o prazer da descoberta, o lado aventureiro.

Não tenho ideia nem mesmo de quais sejam os princípios fundamentais da escrita literária, se é que existam tais princípios. Sou analítico. Sou muito explícito e talvez grosseiro para lidar com sutilezas. Não é falta de sensibilidade e de imaginação, garanto, mas apenas limite no modo áspero de lidar com elas. Falta-me poesia, talvez? Sou muito objetivo para tornar-me contador de histórias, sejam elas inventadas ou verdadeiras? Talvez.

É possível que os condicionantes de filho único e pobre tenham me empurrado do imaginário para o real. O mundo do faz de conta tinha sempre contrapartida no concreto. A selva era o mato próximo e o rio um córrego que passava no fundo do quintal. Nem livros, nem cadernos de desenho e nem lápis coloridos. Eu sempre gostei de caminhar e de descobrir coisas. Sempre fui bom aluno de geografia, embora não estudioso, e ainda hoje tenho fascínio por mapas e histórias de culturas. Nunca me conformei em viver dentro dos limites do que está ao alcance da vista e tampouco me rendi ao que me condicionasse à rotina de tempo e lugar. Foi essa inquietude que me fez errante. .

Meu primeiro e grande salto do plano do mapa para a tridimensionalidade do terreno foi uma viagem internacional quando completei a maioridade. Comecei grande. A migração do imaginário para os sentidos. Consegui um passaporte e com mochila nas costas contendo alguns pares de meias, meia dúzia de camisetas, cuecas, sabonete, desodorante, creme e escova dental e parti para La Paz, capital da Bolívia. Dinheiro para passagens de trem e ônibus, e algum para não passar fome. No corpo uma calça jeans, uma camiseta branca de algodão, um par de botas e um casaco de veludo. Por que Bolívia? Por ser na época uma conhecida rota econômica de mochileiros. Não havia algo que eu quisesse lá conhecer. Apenas queria para lá viajar, dentre pouquíssimos motivos pela necessidade de embarcar no lendário “trem da morte”. Ocorre-me agora que talvez esse fosse o motivo. Eu não tinha conhecimentos, mas não me faltava vontade e coragem.

O tempo corrói também a memória. Lembro-me do embarque no trem em território boliviano. Carro de madeira, bancos fixos também de madeira sem revestimento, e locomotiva a vapor. Um degrauzinho a mais na pobreza, pois em território brasileiro a locomotiva era a diesel. Lembro-me de soldados descalços e das vozes que chegavam aos ouvidos, indicando que eu estava em meio de outra gente. No restante a paisagem era praticamente a mesma dos muitos últimos quilômetros no Brasil, pantaneira, assim como o mesmo ataque em bando de mosquito pólvora. Um desespero, pois não havia como evitar suas investidas. O calor era intenso.

Nas muitas paragens para abastecer de água a caldeira da locomotiva, normalmente no meio do praticamente nada, mulheres se aproximavam com cestos vendendo empanadas, empanadas calientes, como gostavam de anunciar. Empanada é uma espécie de empada, talvez melhor comparada ao risoles, e as centenas que devo ter comido eram todas de frango. Tem sabor que também lembra o das empadas, empadas ou risoles de frango. Não me recordo de ter comido na Bolívia outra coisa que não fosse empanada. Evidente que havia, mas não para o meu bolso. Como estavam em todo canto e baratas, e eis o motivo de perseverar nessa escolha. A sede era aplacada com Chicha, uma bebida fermentada feita a base de milho e outros cereais. Um refresco adocicado e de certo modo agradável quando fresco ou gelado. Não me recordo de nada similar no Brasil. Essa foi minha dieta básica durante a viagem: empanadas e chicha.

Passei o Ano Novo no trem, em um lugar que me vem à mente como sendo Roboré. O maquinista não quis seguir viagem, pois decidira comemorar a data e bebeu além do devido. Sentei-me no primeiro degrau da escada do carro que servia para embarque e desembarque de passageiros se ali houvesse alguma plataforma, de onde fiquei olhando a pequena concentração de pessoas em torno de algumas barracas mal iluminadas e uma empobrecida queima de fogos de artifício.

Dois degraus abaixo e a minha frente sentou-se um rapaz que deveria ter algo em torno de quinze anos, três a menos do que eu, portanto. Era franzino e tinha o biotipo dos caboclos pantaneiros. Chamou minha atenção a sua roupa, pois me fez lembrar a figura do mexicano pobre sempre explorada em filmes dos gringos. Uma bata branca, uma calça branca amarrada na cintura com uma tira do mesmo tecido e um par de sandálias com trama de couro cru sobre solado feito de pneu. Ah, agora de perto e eu podia notar: a bata e a calça eram feitas com emprego de tecido de saco de farinha de trigo. As sandálias também eram manuais. Agora entendia porque tudo tão igual. Era o mais barato para fazer, pois o que havia à mão. Sentou-se sem nada dizer e como eu olhava para os festejos desanimados do terreiro.

Uma das senhoras que vendia empanadas passou à frente da escada do carro, e com fome comprei duas. Eram saborosas. O garoto não se mexeu, mas ocorreu-me que talvez estivesse com fome. Toquei em seu ombro e quando se virou para mim lhe ofereci uma das empanadas. Pegou-a com timidez, agradeceu, e mesmo com delicadeza nos modos não deixou dúvida de sentia fome. Aproveitei o passar de outra vendedora, comprei mais duas e novamente dei uma para ele. Tomou de meus dedos, agradeceu e comeu com modos elegantes. Continuamos onde e como estávamos. Novamente toquei em seu ombro e perguntei se ainda tinha fome.

- No señor. Gracias.

Era a primeira vez, desde que estava em território boliviano, que alguém se dirigia diretamente a mim em espanhol.

Chamava-se Eduardo e morava perto de onde o trem estava estacionado, Não era de muita conversa. Fez duas ou três perguntas sobre minha vida e voltamos ao silêncio. Talvez uma hora depois e disse-me que precisava se ir. Que iria buscar o pai em uma barraca próxima, onde homens bebiam, e com ele voltar para casa. Eu entendi. Cuidava do pai. Levantou-se, agradeceu, desejou-me boa viagem e partiu. Nunca esqueci essa cena.

Na manhã seguinte o trem seguiu viagem. Cheguei a Santa Cruz de la Sierra, mas pouco fiquei na cidade. Tão logo possível fui-me para Cochabamba, de onde para La Paz, meu objetivo inicial. Ah, gostei de Cochabamba. Que maravilhosa arquitetura espanhola e que surpreendente feira popular abriu-se diante de meus olhos quando lá estive. Dentre curiosidades foi ver à venda um charango, pequeno instrumento de corda assemelhado ao cavaquinho, cuja caixa era feita com a armadura do tatu, e flauta-de-pã andina, que se bem recordo feita de bambu. Tem outro apelo ver e ouvir esses instrumentos sendo tocados na Bolívia por seus nacionais. Nada que lembre o artificialismo daqueles mesmos instrumentos, ainda que com os mesmos nacionais, na São Paulo da praça da Sé ou da República.

Na época e com aquela idade eu não tinha curiosidade intelectual para deter-me no que passava pelos sentidos. Por outro lado, ficava encantado com todo aquele universo que por eles, sentidos, me entrava na alma. Reagia como criança em parque de diversões. Tudo era diferente. As pessoas, a arquitetura, as roupas, o idioma, os frutos. Tudo, absolutamente tudo, e eu naquele mundo novo. A glória para um jovem pobre e quase nada habituado a viagens, mas sem medo do desconhecido e disposto a fazer da vida movimento. Diferentemente de zumbis que vagueiam por ai, meus sentidos têm poder amplificador do que a eles chega.

A manchete de jornal exposta em mural deixou-me apreensivo. Dizia que na noite anterior havia despencado das montanhas, e sem deixar sobreviventes, um ônibus da Flota Copacabana. Ônibus da mesma empresa com o qual eu iria subir a cordilheira algumas horas depois, e também à noite. Bem, eu não fazia e menor ideia do que era o ônibus, a estrada, e tampouco sair de 2.500 metros de altitude para 3.600 metros. Ainda bem que viajei a noite toda, pois só vi o ônibus. Um micro ônibus muito parecido com aquele usado para condução de escolares e que vemos em filmes americanos. O que sei é que ele subia e subia em curvas após curvas, mas como sou bom de sono em qualquer meio de transporte acordei em uma paragem de descanso, onde senti um frio intenso, e depois em La Paz, onde a sensação de frio foi muito maior. Primeira descoberta foi que eu não tinha roupa para fazer frente à temperatura ambiente, e a segunda depois de meia dúzia de passos ao sair do ônibus é que eu não tinha hemoglobinas para fazer frente àquele ar rarefeito. Sentado e ofegante me explicaram que eu deveria andar bem devagar, e que em alguns dias meu organismo teria desenvolvido mais hemoglobinas para fazer frente às poucas moléculas de oxigênio presentes no ar. Interessante, não fosse um problema a mais: La Paz está literalmente na encosta da cordilheira. Portanto, quando não se está descendo certamente se está subindo, e no meu caso sempre a pé.

Era meio de uma manhã e caminhei lentamente. Em uma rua estreita e cercada de prédios baixos, encostados uns nos outros, antigos e dos dois lados, parei diante de uma espécie de bar, com duas mesas na calçada, e ocupei uma delas para recuperar o fôlego. O proprietário, um senhor de meia idade, moreno, alto e de bigodes bem cuidados, aproximou-se e perguntou se eu desejava alguma coisa. Indaguei por café com leite e pão. O senhor sorriu com tolerância, pois deve ter pensado onde eu imaginava estar, mas disse-me que traria alguma coisa para comer. Um pouco mais tarde voltou com café, copo com suco de alguma fruta que não identifiquei e um pão diferente na aparência e no sabor daquele a que estava acostumado no Brasil. De milho, creio. O café não era bom, pois aguado e queimado, mas o conjunto era agradável. Mesmo depois da pequena refeição não me animava a continuar caminhando.

O simpático senhor aproximou-se e puxou conversa. Perguntou-me se era a primeira vez em La Paz, e falou dos efeitos do ar rarefeito no organismo, mas assegurou-me que melhorava em um dia. Sugeriu que eu repousasse e ofereceu-me um quarto quer ficava no piso superior de seu bar, e onde ficava também a sua casa. Para a ele chegar subia-se por uma estreita escada lateral, e com isso tinha-se acesso a um corredor. Era um quarto pequeno com uma janela grande que se abria para a rua. Paredes largas, muito largas, e porta e janela de madeira rústica e aparentemente pesada. O piso também era de madeira, todo feito de tabuas encostadas umas nas outras, e que servia de forro para o térreo, para o bar. No interior algo que se assemelhava a um colchão de palha de milho diretamente sobre o assoalho, uma pequena mesa e uma cadeira, igualmente toscas, e isso era tudo que havia. O banheiro ficava no corredor.

Enquanto olhava o pequeno quarto junto ao proprietário aproximou-se a mulher dele, uma senhora também de meia idade e como ele simpática. Viu minha mochila e perguntou-me se eu tinha cobertor. Diante de minha negativa saiu e voltou em seguida com uma manta nas cores vermelha, amarela e verde – cores da bandeira da Bolívia – e feita com pelagem de lhama. Uma manta pesada, rústica e com odor não muito agradável, mas uma gentil e providencial oferta. A senhora fez ainda melhor. Saiu com a manta e com ela voltou, agora com possibilidade de uso como poncho. Como a manta era costurada ao meio no sentido longitudinal, com tesoura ela soltou a costura do centro, o que me permitia vestir a manta pelo pescoço. Ganhei também uma touca de lã colorida. Gostei e adotei o visual naquele mesmo instante, embora ainda sem a touca. Vestindo jeans, botas e agora poncho, e eu me sentia o próprio Clint Eastwood em algum bang bang.

Fiquei com o quarto, mesmo porque barato, sem contar a simpatia do casal que não tinha preço. Eles saíram e fiquei na janela observando as proximidades e a pouca movimentação da pequena rua, que subia do lado direito, como que escalando a cordilheira. Apenas naquele momento notei que ela era mesmo muito alta, e que em alguns de seus cumes havia gelo ou neve, coisas que eu desconhecia. Suspirei, pois finalmente a consciência de que lá estava, de que havia chegado ao destino. Uma agradável sensação.

Cena inesquecível desse dia foi ver, pela janela do quarto, um velho que a passos muito lentos e penosos subia pela rua. Praticamente a escalava. Um indígena que se vestia como o jovem Eduardo, de Roboré, carregava nas costas um guarda roupas de dimensões duas vezes a de seu corpo, e a ele preso por correias de couro, inclusive na testa para que também empregasse a força do pescoço. O pobre homem caminhava curvado, e pareceu-me que o emprego de tração humana para aquele tipo de transporte deveria ser bastante comum.

Deitei-me como estava vestido e fui acordar no início da noite. Podia ter dormido no ônibus durante a viagem, mas o corpo sofria os efeitos por muitas horas de um assento duro e de ângulo reto, sem encosto para a cabeça e sem espaço para esticar as pernas. De qualquer forma, naquele horário e já era possível imaginar o frio que iria sentir na madrugada. Apesar de tudo a temperatura dentro do pequeno ônibus era confortável, pois no tamanho diminuto e com os vidros fechados o calor dos corpos dos passageiros se acumulava. Agora era apenas um corpo em espaço pouco maior do que o do ônibus, em ambiente vazio e repleto de frestas para entrada do ar frio vindo do exterior.

Havia gente no bar. Muitas vozes, risadas e talvez cantoria. Resolvi descer as escadas de ver de perto aquela movimentação. Havia mesmo gente, e cantoria. O senhorio cumprimentou-me de longe e veio a meu encontro trazendo uma pequena cadeira. Agradeci, sentei-me e fiquei apreciando. Eram jovens, um pouco mais velhos do que eu, e que se acomodavam ao redor das poucas mesas. Tinham dois violões e certamente iriam beber e cantar. Eu estava um pouco a distância, e eles me olhavam com certa curiosidade. Foi quando um deles olhou-me e disse:

- Ah, un imperialista de Brasil!

O senhorio imediatamente repreendeu o provocador e foi acompanhado da desaprovação dos demais jovens que ali estavam.

Interessante é que com esse mesmo tratamento fui recebido muitos anos mais tarde no Peru, Colômbia, Equador e Venezuela, nos países chamados bolivarianos. Afinal, se pouco ou nada sabemos sobre eles, pois temos as costas voltadas para o Pacífico, também eles pouco ou nada sabem sobre nós, de onde não entenderem a razão de não falarmos espanhol e de não termos a Simon Bolivar na condição de grande libertador. Além, é claro, do fato de o Brasil ter se expandido no passado sobre terras dos vizinhos. Imperialista, portanto. Para sorte nossa odeiam os argentinos mais do que a nós. Parece tratar-se de unanimidade.

Esquecido o rápido incidente, e também o foco em minha presença, e os jovens bebiam e cantavam. Creio que cerveja. Gostei de uma das músicas a ponto de no Brasil aprendê-la. Chama-se La culpable:

La culpa de mi locura
La culpa tienes tu
Me trataste com dulzura
Com paciência solo tu
Insomnio tengo en la vida
Nomas por ti mujer
Tu tienes, tienes la culpa de mi horrible padecer
Tus labios, tu ojos, tu dulce mirar
Han hechizado mi alma y no hago mas que llorar

Interessante que hoje me parece uma música sem graça, mas não o era naquela ocasião, naquela noite e naquele bar.  Bem, resolvi me recolher. Vesti todas as meias, todas as camisetas e as cuecas, além da roupa do corpo incluindo a bota, é claro, mais o poncho e a touca, e ainda assim na madrugada cheguei a pensar que iria morrer congelado, principalmente por conta do frio que subia pelos vãos das tábuas do assolho.

Praticamente sem dormir naquela noite sai cedo para andar pela cidade. Bonita, mas acima de tudo curiosa. Correto ou não, sai de lá com a impressão de que as pessoas se dividiam em dois grupos étnicos: brancos e indígenas. Embora tenham me falado em mestiçagem, me pareceu que havia entre indígenas o mestiço de hábitos, isto é, o indígena com hábitos de branco. Indígenas estavam por todos os cantos. As cholas com seus trajes típicos, suas tranças, o pequeno chapéu coco inclinado sobre a cabeça e circulavam por todos os lados, quase como se simulassem uma dança som o andar pesado. Disseram-me que o traje delas deveu-se à estilização da obrigatoriedade que os espanhóis impuseram às indígenas para que se vestissem como as camponesas de Espanha. Essas cenas já estavam dadas desde Cochabamba, mas como aqui eu estava no destino observava com mais vagar. Os indígenas conversavam entre si em idioma próprio, e não pareciam ter muita interação com os minoritários brancos de origem e de escolha. Dedicavam-se ao pequeno comércio de rua, na maior parte das vezes vendendo artesanatos, frutos, raízes e ervas. Lembro-me de uma chola que vendia a garra seca de condor. Algo similar, no Brasil, às barracas populares de nordestinos, mesmo em alguns lugares de São Paulo, como no Brás.

Caminhei muito e vi muita coisa. Empanadas, chicha e caminhadas. Na segunda noite meus senhorios haviam ficado com dó do brasileiro e puseram um pedaço de encerado entre o colchão e as tábuas do assoalho. Confesso que melhorou.

Poucos dias depois e não havia muito mais para ver, mas principalmente dinheiro para gastar.  Hoje, é claro, com minha idade atual, e encontraria o que ver e saber por muito tempo.

De qualquer forma, estava ficando incomodando de ver neve e não poder nela tocar. Compartilhei com o senhorio o desejo de vê-la de perto. Disse que não era um desejo difícil de ser realizado, e falou-me de Chacaltaya, um pico da cordilheira relativamente perto de
Chacaltaya
La Paz. Verdade que eu iria para 5.400 metros de altitude. A temperatura certamente seria mais baixa e o ar ainda mais rarefeito, mas conclui que seria um desperdício voltar sem aproveitar oportunidade tão rara. Ah, e se eu subisse um pouco mais, aos 5.800 metros, e poderia chegar ao Observatório Astrofísico de Chacaltaya. Animador! Descobri que a forma mais barata de lá chegar era pedindo carona para caminhoneiros na estrada. Ainda bem que antes me contaram que na Bolívia carona era paga, embora com valor bem menor do que os praticados por transportes de passageiros. Bem, o conforto também era bem menor, é verdade. Quanto à segurança – ou a falta dela – e eu diria que praticamente a mesma.

Fui ao ponto de encontro dos caminhoneiros e acertei-me com um que iria ao Chacaltaya. Paguei pela carona, mas soube que a cabine estava ocupada e que eu viajaria na carroceria. Bem... Tratava-se de um caminhão como os que aqui conhecemos por transportar areia ou brita. Quando finalmente consegui embarcar descobri que havia muita gente sentada no fundo da caçamba. Todos indígenas. Cumprimentei e sentei-me onde foi possível. Não demorou e o caminhão partiu pela estreita e sinuosa estrada descalça. Dessa viagem tenho até hoje a lembrança de uma das maiores gafes que cometi em toda a minha vida.

Foi o seguinte. Não sei quem me disse que mascar folhas de coca era um santo remédio para combater a sensação de frio e atenuar os efeitos da altitude. Acreditando nesse sábio conselho e um dia antes da viagem havia eu comprado de uma chola um pequeno saco de papel cheio de folhas de coca. Bem, levei comigo esse saquinho na viagem a Chacaltaya e mal o caminhão começou a mover-se resolvi dar início à mastigação das folhas. Um sabor horrível, diga-se de passagem. Como todos os indígenas voltaram atenção para mim, imaginei que talvez também quisessem as folhas, e com o que me parecia ser um gesto elegante ofereci a eles. Um que estava próximo de mim pegou algumas folhas, mas imediatamente as devolveu ao saco, tamanho foi o olhar indignado dos demais. Não sei o que fiz, mas o que for que tivesse feito era algo muito constrangedor para eles. Imagino que ofensivo. Continuaram conversando entre eles em idioma que me era completamente incompreensível, e fizeram de conta que eu não existia. Foi assim até o meu desembarque no observatório. Claro que durante a viagem e sem movimento do corpo não senti os efeitos ainda mais rarefeitos do ar, mas que se fez sentir depois do segundo ou terceiro passo depois do desembarque. A paisagem era linda, e a exposição direta à luz e ao vento uma fonte de emoção aos sentidos.

Não foi a primeira vez que me senti estrangeiro, mas naquele momento me sentia duplamente estrangeiro: não era boliviano e nem indígena. Imagino que eles poderiam ter-me oferecido folha de coca se quisessem, mas jamais eu a eles. Eu estava lidando com um povo dentro de uma convenção política chamada país, e não tinha notado isso com o devido cuidado, motivo do desrespeito involuntário.

Depois daquele incidente fico inconformado com a presunção ignorante de quem imagina que compreende a alma chinesa porque leu algum livrinho de provérbios. Vale o mesmo para árabes, japoneses, berberes, malaios ou para qualquer outra formação de espírito que seja diferente daquela do pretencioso. Falasse eu aimará e quíchua e nada saberia da alma daquela gente. Quando muito iria traduzir as palavras, isto é, escolher as que me parecessem equivalentes, mas talvez não soubesse traduzir o sentido, o significado, pois é possível que não conseguisse apreende-los.

Essa aprendizagem me foi importante para lidar com muitas situações na vida, mas principalmente para não dar ouvidos a leitores e críticos de culturas sobre as quais não têm a menor noção, uma vez que a própria etnocentria é vira-lata, e isso sem falar no egocentrismo igualmente vira-lata. Como pode gente sem berço pretender o entendimento, compreensão e crítica aos que têm e conservam alguma tradição? Talvez dessa diferença abismal a benção dos religiosos que acompanhavam os conquistadores espanhóis às práticas de servidão e morte daqueles nativos, pois não lhes reconhecia algo que pudessem chamar de alma no sentido cristão do termo. Bem, hoje é em nome da civilização ocidental.

Vi e toquei a neve. Vi o mundo a partir de uma altura incrível. Eu havia chegado até lá. Usei os óculos de sol que meu anfitrião havia-me emprestado para proteger os olhos do reflexo dos raios solares na neve. No observatório conheci uma jornalista canadense e seu cinegrafista. Queriam falar um pouco sobre Brasil depois de saberem que eu era brasileiro, mas devem ter notado que eu não era propriamente uma boa fonte. Mesmo assim foram gentis e me deram carona agora gratuita na volta para La Paz, pois estavam com uma caminhonete. Eram bem informados e interessados em América Latina.

Bem, a volta é o caminho inverso, e dele a lembrança de uma cena durante a descida para Cochabamba. Despertei e passei a mão no vidro da janela para desembaçar e olhar a paisagem. Estava tudo branco. Perguntei ao passageiro que estava ao meu lado se era neve.

- Nube, señor.

Nuvem... O ônibus descia a cordilheira no meio de uma nuvem. Imaginei a difícil visibilidade para o motorista e pareceu-me melhor voltar ao sono.  

Não regressei com muitas informações, mas seguramente com muitos conhecimentos, pois em mim a viagem promoveu diferenças no modo de pensar, sentir e agir. Educou-me.

Poucos anos depois e a oportunidade de viajar para a Europa. Com o mesmo passaporte, pois ainda válido, a mesma mochila, a mesma e pequena quantidade de roupas, e agora duzentos dólares no bolso, e dei um jeito de conseguir uma viagem de ida para a Europa a bordo de um navio de carga de bandeira brasileira. Dessa viagem fiquei dois anos em vários países da Europa e África, ganhando a vida com atividades inimagináveis e algumas vezes inconfessáveis. A volta ao Brasil foi de avião, e pela primeira vez. Muitas coisas ficam estampadas na lembrança, mas nenhuma como a travessia do Atlântico em cargueiro. Convenhamos que não seja comum.

Interessante, mas minha primeira chegada em três continentes foi pela porta dos fundos: trem de segunda classe e navio de carga. Nem aeroportos, nem taxis, nem hotéis, nem restaurantes e nem lojas de luxo. Sempre pelo lado pobre e distante das paisagens e serviços inventados para turistas. A isso dou o nome de conhecer. De que outra forma eu teria, e no porto de Luanda, a oportunidade de conhecer um negro alto e forte se apresentando para carregar minha mala, de perguntar se eu era inglês, de imaginar-se enganado quando eu disse que era brasileiro, de falar comigo em um idioma incompreensível, de rir com ironia quando eu disse que não havia entendido nada, e de me dizer em tom de desforra que se eu fosse brasileiro entenderia palavra por palavra? No imaginário dele brasileiros eram negros e falavam ou entendiam quimbundo. Ainda não havíamos invadido o mundo com novelas. Bem, fiquei por lá bom tempo para entender um pouco melhor a gente daquele homem. Também conheci seus inimigos.

O mar, o mar. Embarquei no porto de Santos dois dias antes que o navio partisse. Subi a bordo e apresentei-me ao imediato, que me levou até a que seria minha cabine, mostrou-me as áreas do navio pelas quais eu poderia circular, e ensinou-me regras básicas do que chamou de boa convivência a bordo. Uma delas era a de não entrar na cabine de quem quer que fosse sem ser convidado. Não demorou muito para que eu entendesse. Eles não gostavam de estranhos, e suas cabines eram redutos sagrados de suas individualidades, mesmo se a cabine fosse coletiva. Entender, mesmo, apenas em Hamburgo, quando fiquei hospedado em albergue da Katholische Seemannsmission Stella Maris, um serviço social do Vaticano voltado ao atendimento de marinheiros desempregados ou em dificuldades. Dividia meu quarto com Herlando, um marinheiro. Gente boa Herlando, e entre nós a facilidade do idioma, pois sendo filipino falava espanhol. Pois bem: quando ia dormir Herlando tinha um ritual incomum. Trazia para perto de sua cama um pequeno banco de madeira que havia no quarto, e nele espetava uma faca de campanha. Além disso, me parecia dormir com um olho aberto. Amigo, me convidava para com ele sair à noite, pagava as contas inclusive dos estragos que fazia por onde passávamos, mas não abria mão da faca espetada no banquinho. Um dia me propôs a troca de nossos cintos. Como o meu era grosseiro e o dele trabalhado, eu disse que não seria bom negócio para ele em virtude da diferença de qualidade. Ele insistiu na troca, e disse-me o motivo apenas depois que trocamos: o meu tinha fivela grande e pesada, e ele poderia usar como soco inglês. Disseram-me que violência era comum entre tripulantes de navios de bandeiras sem regulamentação, dentre eles os de origem liberiana. Os de bandeira grega também não tinham boa fama.

Não era o caso do navio de bandeira brasileira no qual eu havia embarcado. Toda a tripulação era brasileira, constante no navio e no mesmo rumo por muitos anos. Mesmo assim a cabine era santuário. Interessante que naquele navio da série Ita-liners, da marinha mercante, mesmo com pouco mais de dez homens a bordo, e restava preservada a antiga hierarquia. Talvez seja assim até hoje, pois tradição. Oficiais de náutica, oficiais de máquinas e o restante, a marujada, os moços de convés, dentre eles cozinheiro e enfermeiro. Nenhum glamour, absolutamente nenhum. Operários do mar.

Nada, absolutamente nada em comum com navios de passageiros, mas eu não trocaria a travessia em cargueiro por um de passageiros. Os de carga são perfeitos para quem gosta de conviver consigo mesmo, e descobri isso durante os treze dias e treze noites de travessia, e isso apenas na primeira viagem. Eu ficaria mais, Um lugar perfeito para quem gosta de escrever ou compor, por exemplo. Para dizer que não havia incômodos, lembro-me do balanço e do caturro constantes, da vibração gerada pelos motores e do cheio de diesel. Em alguns momentos o desejo de por os pés em terra firme, ainda que apenas por instantes para sentir o mundo parar.

Igualmente incontornável o andar de bêbado. Como em mar aberto a superfície das águas se move em várias direções, e ao mesmo tempo, o navio está o tempo todo sujeito a esses movimentos concomitantes nos sentidos proa-popa, través-través e bochechas-alhetas. Observei nos marinheiros que nem mesmo com muitos anos de mar perde-se o andar de bêbado.

Impossível esquecer-me dos instantes de sol nascente, sol poente, o mar espelhando em prata a lua cheia, e o espetáculo celestial das estrelas nas noites limpas.
Ilustraçao do autor
Nada em terra se compara àquilo. A sensação de fragilidade de um navio que no cais parecia uma fortaleza, nos momentos que o mar se revolta e as imensas ondas varrem o convés, da mesma forma que as pequenas que se quebram na praia varrem as areias. Impossível esquecer as aves aquáticas que pegavam carona na embarcação, empoleiradas nos paus-de-carga, com certeza para descanso antes de voltarem para a pesca, para a costa, ou para algum pesqueiro, que além de também servir de poleiro costuma ter sobras de peixes lançadas ao mar. Interessante, mesmo, a presença de pequenos pássaros que pousavam no convés, e muito cansados, praticamente exaustos. Talvez perdidos, pois isso acontece mesmo quando o navio não está tão perto de terra. Um de nós fornecia água, fruta e farelos de pão. Poucos os que sobreviviam.

Bem, eu havia agora saltado do mapa para a carta náutica, e dela para o oceano. No mapa a gente vê a terra como paisagem e o mar como fundo. Na carta náutica a situação se inverte. Vemos o mar em detalhes: contornos, profundidades, acidentes, distâncias, etc., e a terra em volta é fundo. Eu havia passado com o navio sobre águas cuja profundidade era mais do que duas vezes a altitude do Chacaltaya. Muitas vezes tinha mais água sob o casco do navio do que ar sob a fuselagem de grande jato em voo.

Amigos? Apenas dois moços de convés: Chumbinho e Jonas. Chumbinho era um nordestino de mais de cinquenta anos, baixinho e tinha residência no Rio de Janeiro. Orgulhava-se de manter um filho na faculdade de medicina. Jonas era um mulato alto e forte, e tinha duas mulheres. Uma no Rio de Janeiro e outra em Roterdam. Tinha os nomes delas tatuados nos braços, um em cada braço. Disse-me que se conheciam. O que sei deles é porque me contaram voluntariamente. Nunca perguntaram nada sobre a minha vida. Pessoas rústicas, mas educadas.

Era muito bom junto a eles sentar-me e ouvir as histórias dos compadres, como se tratavam. Eu não tinha e não tenho muito que contar, mas eles tinham inúmeras histórias, e nos quatro mares. Uma vida metida em confusões, mas na maior parte das vezes pela ignorância dos reflexos das próprias ações, como eu com a cena das folhas de coca com os indígenas do caminho para Chacaltaya. Foram presos em porto árabe pela guarda de revistas de mulheres nuas em suas cabines. Presos na Cidade do Cabo, em pleno apartheid, por puxarem um riquixá transportando sobre ele um negro pelas ruas da cidade. Não contavam essas histórias com vaidade e nem com vergonha. Algumas vezes nem mesmo entendiam os motivos das confusões. Não sabiam viver e conviver fora do navio. Seguramente não acertariam uma sequer no atual mundo hipócrita do politicamente correto, pois desenhado para gente sem espontaneidade. Diplomacia não era o forte dos compadres. Gente movida pelos impulsos do coração. Gente que é o que é, e que não tem desejo de parecer o que não é.

Foi essa dupla que garantiu meu desembarque na Europa, pois eu ainda não tinha cidadania italiana. Minha entrada foi negada na Holanda por falta de dinheiro, mas foram eles que viabilizaram meu visto de entrada na Alemanha emprestando todo o dinheiro que tinham para que eu mostrasse às autoridades alfandegárias como se meu fosse. Ah, se além de bater ferrugem soubessem ou gostassem de escrever... A vida deles era literatura.

Rogério Centofanti


São Paulo – junho de 2016