Quanto mais eu
ando,
Mais vejo
estrada
E se eu não
caminho,
Não sou é nada.
O Plantador –
Geraldo Vandré
Não
creio que seja literato, mas morro de inveja de quem é. Porém, tenho esboçado
passos na tentativa de escrever alguma coisa que possa merecer tal nome, e olhe
que nesta fase nem mesmo penso em qualidade. Certamente eu poderia procurar ajuda
e sair deste penoso caminho de ensaio e erro, inevitável no autodidatismo, mas
parece que a teimosia é maior do que o desejo de acertar. Vai também nesta
bagagem o prazer da descoberta, o lado aventureiro.
Não
tenho ideia nem mesmo de quais sejam os princípios fundamentais da escrita
literária, se é que existam tais princípios. Sou analítico. Sou muito explícito
e talvez grosseiro para lidar com sutilezas. Não é falta de sensibilidade e de imaginação,
garanto, mas apenas limite no modo áspero de lidar com elas. Falta-me poesia,
talvez? Sou muito objetivo para tornar-me contador de histórias, sejam elas inventadas
ou verdadeiras? Talvez.
É
possível que os condicionantes de filho único e pobre tenham me empurrado do
imaginário para o real. O mundo do faz de conta tinha sempre contrapartida no concreto.
A selva era o mato próximo e o rio um córrego que passava no fundo do quintal.
Nem livros, nem cadernos de desenho e nem lápis coloridos. Eu sempre gostei de caminhar
e de descobrir coisas. Sempre fui bom aluno de geografia, embora não estudioso,
e ainda hoje tenho fascínio por mapas e histórias de culturas. Nunca me
conformei em viver dentro dos limites do que está ao alcance da vista e tampouco
me rendi ao que me condicionasse à rotina de tempo e lugar. Foi essa inquietude
que me fez errante. .
Meu
primeiro e grande salto do plano do mapa para a tridimensionalidade do terreno foi
uma viagem internacional quando completei a maioridade. Comecei grande. A
migração do imaginário para os sentidos. Consegui um passaporte e com mochila
nas costas contendo alguns pares de meias, meia dúzia de camisetas, cuecas, sabonete,
desodorante, creme e escova dental e parti para La Paz, capital da Bolívia. Dinheiro
para passagens de trem e ônibus, e algum para não passar fome. No corpo uma
calça jeans, uma camiseta branca de algodão, um par de botas e um casaco de
veludo. Por que Bolívia? Por ser na época uma conhecida rota econômica de
mochileiros. Não havia algo que eu quisesse lá conhecer. Apenas queria para lá
viajar, dentre pouquíssimos motivos pela necessidade de embarcar no lendário
“trem da morte”. Ocorre-me agora que talvez esse fosse o motivo. Eu não tinha
conhecimentos, mas não me faltava vontade e coragem.
O
tempo corrói também a memória. Lembro-me do embarque no trem em território
boliviano. Carro de madeira, bancos fixos também de madeira sem revestimento, e
locomotiva a vapor. Um degrauzinho a mais na pobreza, pois em território
brasileiro a locomotiva era a diesel. Lembro-me de soldados descalços e das vozes
que chegavam aos ouvidos, indicando que eu estava em meio de outra gente. No
restante a paisagem era praticamente a mesma dos muitos últimos quilômetros no
Brasil, pantaneira, assim como o mesmo ataque em bando de mosquito pólvora. Um
desespero, pois não havia como evitar suas investidas. O calor era intenso.
Nas
muitas paragens para abastecer de água a caldeira da locomotiva, normalmente no
meio do praticamente nada, mulheres se aproximavam com cestos vendendo
empanadas, empanadas calientes, como gostavam de anunciar. Empanada é uma
espécie de empada, talvez melhor comparada ao risoles, e as centenas que devo ter
comido eram todas de frango. Tem sabor que também lembra o das empadas, empadas ou risoles de
frango. Não me recordo de ter comido na Bolívia outra coisa que não fosse
empanada. Evidente que havia, mas não para o meu bolso. Como estavam em todo
canto e baratas, e eis o motivo de perseverar nessa escolha. A sede era aplacada
com Chicha, uma bebida fermentada feita a base de milho e outros cereais. Um
refresco adocicado e de certo modo agradável quando fresco ou gelado. Não me
recordo de nada similar no Brasil. Essa foi minha dieta básica durante a
viagem: empanadas e chicha.
Passei
o Ano Novo no trem, em um lugar que me vem à mente como sendo Roboré. O
maquinista não quis seguir viagem, pois decidira comemorar a data e bebeu além
do devido. Sentei-me no primeiro degrau da escada do carro que servia para
embarque e desembarque de passageiros se ali houvesse alguma plataforma, de
onde fiquei olhando a pequena concentração de pessoas em torno de algumas
barracas mal iluminadas e uma empobrecida queima de fogos de artifício.
Dois
degraus abaixo e a minha frente sentou-se um rapaz que deveria ter algo em
torno de quinze anos, três a menos do que eu, portanto. Era franzino e tinha o
biotipo dos caboclos pantaneiros. Chamou minha atenção a sua roupa, pois me fez
lembrar a figura do mexicano pobre sempre explorada em filmes dos gringos. Uma
bata branca, uma calça branca amarrada na cintura com uma tira do mesmo tecido
e um par de sandálias com trama de couro cru sobre solado feito de pneu. Ah, agora
de perto e eu podia notar: a bata e a calça eram feitas com emprego de tecido
de saco de farinha de trigo. As sandálias também eram manuais. Agora entendia
porque tudo tão igual. Era o mais barato para fazer, pois o que havia à mão. Sentou-se
sem nada dizer e como eu olhava para os festejos desanimados do terreiro.
Uma
das senhoras que vendia empanadas passou à frente da escada do carro, e com fome
comprei duas. Eram saborosas. O garoto não se mexeu, mas ocorreu-me que talvez
estivesse com fome. Toquei em seu ombro e quando se virou para mim lhe ofereci
uma das empanadas. Pegou-a com timidez, agradeceu, e mesmo com delicadeza nos
modos não deixou dúvida de sentia fome. Aproveitei o passar de outra vendedora,
comprei mais duas e novamente dei uma para ele. Tomou de meus dedos, agradeceu
e comeu com modos elegantes. Continuamos onde e como estávamos. Novamente
toquei em seu ombro e perguntei se ainda tinha fome.
-
No señor. Gracias.
Era
a primeira vez, desde que estava em território boliviano, que alguém se dirigia
diretamente a mim em espanhol.
Chamava-se
Eduardo e morava perto de onde o trem estava estacionado, Não era de muita
conversa. Fez duas ou três perguntas sobre minha vida e voltamos ao silêncio.
Talvez uma hora depois e disse-me que precisava se ir. Que iria buscar o pai em
uma barraca próxima, onde homens bebiam, e com ele voltar para casa. Eu
entendi. Cuidava do pai. Levantou-se, agradeceu, desejou-me boa viagem e
partiu. Nunca esqueci essa cena.
Na
manhã seguinte o trem seguiu viagem. Cheguei a Santa Cruz de la Sierra, mas
pouco fiquei na cidade. Tão logo possível fui-me para Cochabamba, de onde para
La Paz, meu objetivo inicial. Ah, gostei de Cochabamba. Que maravilhosa
arquitetura espanhola e que surpreendente feira popular abriu-se diante de meus
olhos quando lá estive. Dentre curiosidades foi ver à venda um charango,
pequeno instrumento de corda assemelhado ao cavaquinho, cuja caixa era feita
com a armadura do tatu, e flauta-de-pã andina, que se bem recordo feita de
bambu. Tem outro apelo ver e ouvir esses instrumentos sendo tocados na Bolívia
por seus nacionais. Nada que lembre o artificialismo daqueles mesmos
instrumentos, ainda que com os mesmos nacionais, na São Paulo da praça da Sé ou
da República.
Na
época e com aquela idade eu não tinha curiosidade intelectual para deter-me no
que passava pelos sentidos. Por outro lado, ficava encantado com todo aquele
universo que por eles, sentidos, me entrava na alma. Reagia como criança em
parque de diversões. Tudo era diferente. As pessoas, a arquitetura, as roupas,
o idioma, os frutos. Tudo, absolutamente tudo, e eu naquele mundo novo. A
glória para um jovem pobre e quase nada habituado a viagens, mas sem medo do
desconhecido e disposto a fazer da vida movimento. Diferentemente de zumbis que
vagueiam por ai, meus sentidos têm poder amplificador do que a eles chega.
A
manchete de jornal exposta em mural deixou-me apreensivo. Dizia que na noite
anterior havia despencado das montanhas, e sem deixar sobreviventes, um ônibus
da Flota Copacabana. Ônibus da mesma empresa com o qual eu iria subir a
cordilheira algumas horas depois, e também à noite. Bem, eu não fazia e menor
ideia do que era o ônibus, a estrada, e tampouco sair de 2.500 metros de
altitude para 3.600 metros. Ainda bem que viajei a noite toda, pois só vi o ônibus.
Um micro ônibus muito parecido com aquele usado para condução de escolares e que
vemos em filmes americanos. O que sei é que ele subia e subia em curvas após
curvas, mas como sou bom de sono em qualquer meio de transporte acordei em uma
paragem de descanso, onde senti um frio intenso, e depois em La Paz, onde a sensação
de frio foi muito maior. Primeira descoberta foi que eu não tinha roupa para
fazer frente à temperatura ambiente, e a segunda depois de meia dúzia de passos
ao sair do ônibus é que eu não tinha hemoglobinas para fazer frente àquele ar rarefeito.
Sentado e ofegante me explicaram que eu deveria andar bem devagar, e que em
alguns dias meu organismo teria desenvolvido mais hemoglobinas para fazer
frente às poucas moléculas de oxigênio presentes no ar. Interessante, não fosse
um problema a mais: La Paz está literalmente na encosta da cordilheira. Portanto,
quando não se está descendo certamente se está subindo, e no meu caso sempre a
pé.
Era
meio de uma manhã e caminhei lentamente. Em uma rua estreita e cercada de prédios
baixos, encostados uns nos outros, antigos e dos dois lados, parei diante de
uma espécie de bar, com duas mesas na calçada, e ocupei uma delas para
recuperar o fôlego. O proprietário, um senhor de meia idade, moreno, alto e de
bigodes bem cuidados, aproximou-se e perguntou se eu desejava alguma coisa. Indaguei
por café com leite e pão. O senhor sorriu com tolerância, pois deve ter pensado
onde eu imaginava estar, mas disse-me que traria alguma coisa para comer. Um
pouco mais tarde voltou com café, copo com suco de alguma fruta que não
identifiquei e um pão diferente na aparência e no sabor daquele a que estava
acostumado no Brasil. De milho, creio. O café não era bom, pois aguado e
queimado, mas o conjunto era agradável. Mesmo depois da pequena refeição não me
animava a continuar caminhando.
O
simpático senhor aproximou-se e puxou conversa. Perguntou-me se era a primeira
vez em La Paz, e falou dos efeitos do ar rarefeito no organismo, mas
assegurou-me que melhorava em um dia. Sugeriu que eu repousasse e ofereceu-me
um quarto quer ficava no piso superior de seu bar, e onde ficava também a sua
casa. Para a ele chegar subia-se por uma estreita escada lateral, e com isso
tinha-se acesso a um corredor. Era um quarto pequeno com uma janela grande que
se abria para a rua. Paredes largas, muito largas, e porta e janela de madeira
rústica e aparentemente pesada. O piso também era de madeira, todo feito de
tabuas encostadas umas nas outras, e que servia de forro para o térreo, para o
bar. No interior algo que se assemelhava a um colchão de palha de milho
diretamente sobre o assoalho, uma pequena mesa e uma cadeira, igualmente
toscas, e isso era tudo que havia. O banheiro ficava no corredor.
Enquanto
olhava o pequeno quarto junto ao proprietário aproximou-se a mulher dele, uma
senhora também de meia idade e como ele simpática. Viu minha mochila e
perguntou-me se eu tinha cobertor. Diante de minha negativa saiu e voltou em
seguida com uma manta nas cores vermelha, amarela e verde – cores da bandeira
da Bolívia – e feita com pelagem de lhama. Uma manta pesada, rústica e com odor
não muito agradável, mas uma gentil e providencial oferta. A senhora fez ainda
melhor. Saiu com a manta e com ela voltou, agora com possibilidade de uso como
poncho. Como a manta era costurada ao meio no sentido longitudinal, com tesoura
ela soltou a costura do centro, o que me permitia vestir a manta pelo pescoço. Ganhei
também uma touca de lã colorida. Gostei e adotei o visual naquele mesmo
instante, embora ainda sem a touca. Vestindo jeans, botas e agora poncho, e eu me
sentia o próprio Clint Eastwood em algum bang bang.
Fiquei
com o quarto, mesmo porque barato, sem contar a simpatia do casal que não tinha
preço. Eles saíram e fiquei na janela observando as proximidades e a pouca
movimentação da pequena rua, que subia do lado direito, como que escalando a
cordilheira. Apenas naquele momento notei que ela era mesmo muito alta, e que
em alguns de seus cumes havia gelo ou neve, coisas que eu desconhecia. Suspirei,
pois finalmente a consciência de que lá estava, de que havia chegado ao
destino. Uma agradável sensação.
Cena
inesquecível desse dia foi ver, pela janela do quarto, um velho que a passos
muito lentos e penosos subia pela rua. Praticamente a escalava. Um indígena que
se vestia como o jovem Eduardo, de Roboré, carregava nas costas um guarda
roupas de dimensões duas vezes a de seu corpo, e a ele preso por correias de
couro, inclusive na testa para que também empregasse a força do pescoço. O
pobre homem caminhava curvado, e pareceu-me que o emprego de tração humana para
aquele tipo de transporte deveria ser bastante comum.
Deitei-me
como estava vestido e fui acordar no início da noite. Podia ter dormido no
ônibus durante a viagem, mas o corpo sofria os efeitos por muitas horas de um
assento duro e de ângulo reto, sem encosto para a cabeça e sem espaço para
esticar as pernas. De qualquer forma, naquele horário e já era possível
imaginar o frio que iria sentir na madrugada. Apesar de tudo a temperatura
dentro do pequeno ônibus era confortável, pois no tamanho diminuto e com os
vidros fechados o calor dos corpos dos passageiros se acumulava. Agora era
apenas um corpo em espaço pouco maior do que o do ônibus, em ambiente vazio e
repleto de frestas para entrada do ar frio vindo do exterior.
Havia
gente no bar. Muitas vozes, risadas e talvez cantoria. Resolvi descer as
escadas de ver de perto aquela movimentação. Havia mesmo gente, e cantoria. O
senhorio cumprimentou-me de longe e veio a meu encontro trazendo uma pequena
cadeira. Agradeci, sentei-me e fiquei apreciando. Eram jovens, um pouco mais
velhos do que eu, e que se acomodavam ao redor das poucas mesas. Tinham dois
violões e certamente iriam beber e cantar. Eu estava um pouco a distância, e
eles me olhavam com certa curiosidade. Foi quando um deles olhou-me e disse:
-
Ah, un imperialista de Brasil!
O
senhorio imediatamente repreendeu o provocador e foi acompanhado da desaprovação
dos demais jovens que ali estavam.
Interessante
é que com esse mesmo tratamento fui recebido muitos anos mais tarde no Peru,
Colômbia, Equador e Venezuela, nos países chamados bolivarianos. Afinal, se
pouco ou nada sabemos sobre eles, pois temos as costas voltadas para o
Pacífico, também eles pouco ou nada sabem sobre nós, de onde não entenderem a
razão de não falarmos espanhol e de não termos a Simon Bolivar na condição de
grande libertador. Além, é claro, do fato de o Brasil ter se expandido no
passado sobre terras dos vizinhos. Imperialista, portanto. Para sorte nossa
odeiam os argentinos mais do que a nós. Parece tratar-se de unanimidade.
Esquecido
o rápido incidente, e também o foco em minha presença, e os jovens bebiam e
cantavam. Creio que cerveja. Gostei de uma das músicas a ponto de no Brasil
aprendê-la. Chama-se La culpable:
La culpa de mi
locura
La culpa tienes
tu
Me trataste com
dulzura
Com paciência
solo tu
Insomnio tengo
en la vida
Nomas por ti
mujer
Tu tienes,
tienes la culpa de mi horrible padecer
Tus labios, tu
ojos, tu dulce mirar
Han hechizado mi
alma y no hago mas que llorar
Interessante
que hoje me parece uma música sem graça, mas não o era naquela ocasião, naquela
noite e naquele bar. Bem, resolvi me
recolher. Vesti todas as meias, todas as camisetas e as cuecas, além da roupa
do corpo incluindo a bota, é claro, mais o poncho e a touca, e ainda assim na
madrugada cheguei a pensar que iria morrer congelado, principalmente por conta
do frio que subia pelos vãos das tábuas do assolho.
Praticamente
sem dormir naquela noite sai cedo para andar pela cidade. Bonita, mas acima de
tudo curiosa. Correto ou não, sai de lá com a impressão de que as pessoas se
dividiam em dois grupos étnicos: brancos e indígenas. Embora tenham me falado
em mestiçagem, me pareceu que havia entre indígenas o mestiço de hábitos, isto
é, o indígena com hábitos de branco. Indígenas estavam por todos os cantos. As
cholas com seus trajes típicos, suas tranças, o pequeno chapéu coco inclinado sobre
a cabeça e circulavam por todos os lados, quase como se simulassem uma dança
som o andar pesado. Disseram-me que o traje delas deveu-se à estilização da
obrigatoriedade que os espanhóis impuseram às indígenas para que se vestissem
como as camponesas de Espanha. Essas cenas já estavam dadas desde Cochabamba,
mas como aqui eu estava no destino observava com mais vagar. Os indígenas
conversavam entre si em idioma próprio, e não pareciam ter muita interação com
os minoritários brancos de origem e de escolha. Dedicavam-se ao pequeno
comércio de rua, na maior parte das vezes vendendo artesanatos, frutos, raízes
e ervas. Lembro-me de uma chola que vendia a garra seca de condor. Algo
similar, no Brasil, às barracas populares de nordestinos, mesmo em alguns
lugares de São Paulo, como no Brás.
Caminhei
muito e vi muita coisa. Empanadas, chicha e caminhadas. Na segunda noite meus
senhorios haviam ficado com dó do brasileiro e puseram um pedaço de encerado
entre o colchão e as tábuas do assoalho. Confesso que melhorou.
Poucos
dias depois e não havia muito mais para ver, mas principalmente dinheiro para
gastar. Hoje, é claro, com minha idade
atual, e encontraria o que ver e saber por muito tempo.
De
qualquer forma, estava ficando incomodando de ver neve e não poder nela tocar.
Compartilhei com o senhorio o desejo de vê-la de perto. Disse que não era um
desejo difícil de ser realizado, e falou-me de Chacaltaya, um pico da
cordilheira relativamente perto de
La Paz. Verdade que eu iria para 5.400
metros de altitude. A temperatura certamente seria mais baixa e o ar ainda mais
rarefeito, mas conclui que seria um desperdício voltar sem aproveitar
oportunidade tão rara. Ah, e se eu subisse um pouco mais, aos 5.800 metros, e
poderia chegar ao Observatório Astrofísico de Chacaltaya. Animador! Descobri
que a forma mais barata de lá chegar era pedindo carona para caminhoneiros na
estrada. Ainda bem que antes me contaram que na Bolívia carona era paga, embora
com valor bem menor do que os praticados por transportes de passageiros. Bem, o
conforto também era bem menor, é verdade. Quanto à segurança – ou a falta dela
– e eu diria que praticamente a mesma.
Chacaltaya |
Fui
ao ponto de encontro dos caminhoneiros e acertei-me com um que iria ao
Chacaltaya. Paguei pela carona, mas soube que a cabine estava ocupada e que eu
viajaria na carroceria. Bem... Tratava-se de um caminhão como os que aqui
conhecemos por transportar areia ou brita. Quando finalmente consegui embarcar
descobri que havia muita gente sentada no fundo da caçamba. Todos indígenas.
Cumprimentei e sentei-me onde foi possível. Não demorou e o caminhão partiu
pela estreita e sinuosa estrada descalça. Dessa viagem tenho até hoje a
lembrança de uma das maiores gafes que cometi em toda a minha vida.
Foi
o seguinte. Não sei quem me disse que mascar folhas de coca era um santo
remédio para combater a sensação de frio e atenuar os efeitos da altitude.
Acreditando nesse sábio conselho e um dia antes da viagem havia eu comprado de
uma chola um pequeno saco de papel cheio de folhas de coca. Bem, levei comigo
esse saquinho na viagem a Chacaltaya e mal o caminhão começou a mover-se
resolvi dar início à mastigação das folhas. Um sabor horrível, diga-se de
passagem. Como todos os indígenas voltaram atenção para mim, imaginei que
talvez também quisessem as folhas, e com o que me parecia ser um gesto elegante
ofereci a eles. Um que estava próximo de mim pegou algumas folhas, mas
imediatamente as devolveu ao saco, tamanho foi o olhar indignado dos demais.
Não sei o que fiz, mas o que for que tivesse feito era algo muito constrangedor
para eles. Imagino que ofensivo. Continuaram conversando entre eles em idioma
que me era completamente incompreensível, e fizeram de conta que eu não
existia. Foi assim até o meu desembarque no observatório. Claro que durante a
viagem e sem movimento do corpo não senti os efeitos ainda mais rarefeitos do
ar, mas que se fez sentir depois do segundo ou terceiro passo depois do
desembarque. A paisagem era linda, e a exposição direta à luz e ao vento uma
fonte de emoção aos sentidos.
Não
foi a primeira vez que me senti estrangeiro, mas naquele momento me sentia
duplamente estrangeiro: não era boliviano e nem indígena. Imagino que eles
poderiam ter-me oferecido folha de coca se quisessem, mas jamais eu a eles. Eu
estava lidando com um povo dentro de uma convenção política chamada país, e não
tinha notado isso com o devido cuidado, motivo do desrespeito involuntário.
Depois
daquele incidente fico inconformado com a presunção ignorante de quem imagina
que compreende a alma chinesa porque leu algum livrinho de provérbios. Vale o
mesmo para árabes, japoneses, berberes, malaios ou para qualquer outra formação
de espírito que seja diferente daquela do pretencioso. Falasse eu aimará e
quíchua e nada saberia da alma daquela gente. Quando muito iria traduzir as
palavras, isto é, escolher as que me parecessem equivalentes, mas talvez não
soubesse traduzir o sentido, o significado, pois é possível que não conseguisse
apreende-los.
Essa
aprendizagem me foi importante para lidar com muitas situações na vida, mas
principalmente para não dar ouvidos a leitores e críticos de culturas sobre as
quais não têm a menor noção, uma vez que a própria etnocentria é vira-lata, e
isso sem falar no egocentrismo igualmente vira-lata. Como pode gente sem berço
pretender o entendimento, compreensão e crítica aos que têm e conservam alguma tradição?
Talvez dessa diferença abismal a benção dos religiosos que acompanhavam os
conquistadores espanhóis às práticas de servidão e morte daqueles nativos, pois
não lhes reconhecia algo que pudessem chamar de alma no sentido cristão do
termo. Bem, hoje é em nome da civilização ocidental.
Vi
e toquei a neve. Vi o mundo a partir de uma altura incrível. Eu havia chegado
até lá. Usei os óculos de sol que meu anfitrião havia-me emprestado para
proteger os olhos do reflexo dos raios solares na neve. No observatório conheci
uma jornalista canadense e seu cinegrafista. Queriam falar um pouco sobre
Brasil depois de saberem que eu era brasileiro, mas devem ter notado que eu não
era propriamente uma boa fonte. Mesmo assim foram gentis e me deram carona agora
gratuita na volta para La Paz, pois estavam com uma caminhonete. Eram bem
informados e interessados em América Latina.
Bem,
a volta é o caminho inverso, e dele a lembrança de uma cena durante a descida
para Cochabamba. Despertei e passei a mão no vidro da janela para desembaçar e
olhar a paisagem. Estava tudo branco. Perguntei ao passageiro que estava ao meu
lado se era neve.
-
Nube, señor.
Nuvem...
O ônibus descia a cordilheira no meio de uma nuvem. Imaginei a difícil
visibilidade para o motorista e pareceu-me melhor voltar ao sono.
Não
regressei com muitas informações, mas seguramente com muitos conhecimentos,
pois em mim a viagem promoveu diferenças no modo de pensar, sentir e agir.
Educou-me.
Poucos
anos depois e a oportunidade de viajar para a Europa. Com o mesmo passaporte,
pois ainda válido, a mesma mochila, a mesma e pequena quantidade de roupas, e
agora duzentos dólares no bolso, e dei um jeito de conseguir uma viagem de ida
para a Europa a bordo de um navio de carga de bandeira brasileira. Dessa viagem
fiquei dois anos em vários países da Europa e África, ganhando a vida com
atividades inimagináveis e algumas vezes inconfessáveis. A volta ao Brasil foi
de avião, e pela primeira vez. Muitas coisas ficam estampadas na lembrança, mas
nenhuma como a travessia do Atlântico em cargueiro. Convenhamos que não seja
comum.
Interessante,
mas minha primeira chegada em três continentes foi pela porta dos fundos: trem
de segunda classe e navio de carga. Nem aeroportos, nem taxis, nem hotéis, nem
restaurantes e nem lojas de luxo. Sempre pelo lado pobre e distante das paisagens
e serviços inventados para turistas. A isso dou o nome de conhecer. De que
outra forma eu teria, e no porto de Luanda, a oportunidade de conhecer um negro
alto e forte se apresentando para carregar minha mala, de perguntar se eu era
inglês, de imaginar-se enganado quando eu disse que era brasileiro, de falar
comigo em um idioma incompreensível, de rir com ironia quando eu disse que não
havia entendido nada, e de me dizer em tom de desforra que se eu fosse
brasileiro entenderia palavra por palavra? No imaginário dele brasileiros eram
negros e falavam ou entendiam quimbundo. Ainda não havíamos invadido o mundo
com novelas. Bem, fiquei por lá bom tempo para entender um pouco melhor a gente
daquele homem. Também conheci seus inimigos.
O
mar, o mar. Embarquei no porto de Santos dois dias antes que o navio partisse.
Subi a bordo e apresentei-me ao imediato, que me levou até a que seria minha
cabine, mostrou-me as áreas do navio pelas quais eu poderia circular, e
ensinou-me regras básicas do que chamou de boa convivência a bordo. Uma delas
era a de não entrar na cabine de quem quer que fosse sem ser convidado. Não
demorou muito para que eu entendesse. Eles não gostavam de estranhos, e suas
cabines eram redutos sagrados de suas individualidades, mesmo se a cabine fosse
coletiva. Entender, mesmo, apenas em Hamburgo, quando fiquei hospedado em
albergue da Katholische Seemannsmission Stella
Maris, um serviço social do Vaticano voltado ao atendimento de marinheiros
desempregados ou em dificuldades. Dividia meu quarto com Herlando, um
marinheiro. Gente boa Herlando, e entre nós a facilidade do idioma, pois sendo
filipino falava espanhol. Pois bem: quando ia dormir Herlando tinha um ritual
incomum. Trazia para perto de sua cama um pequeno banco de madeira que havia no
quarto, e nele espetava uma faca de campanha. Além disso, me parecia dormir com
um olho aberto. Amigo, me convidava para com ele sair à noite, pagava as contas
inclusive dos estragos que fazia por onde passávamos, mas não abria mão da faca
espetada no banquinho. Um dia me propôs a troca de nossos cintos. Como o meu
era grosseiro e o dele trabalhado, eu disse que não seria bom negócio para ele em
virtude da diferença de qualidade. Ele insistiu na troca, e disse-me o motivo apenas
depois que trocamos: o meu tinha fivela grande e pesada, e ele poderia usar
como soco inglês. Disseram-me que violência era comum entre tripulantes de
navios de bandeiras sem regulamentação, dentre eles os de origem liberiana. Os
de bandeira grega também não tinham boa fama.
Não era o caso do navio de bandeira brasileira no qual eu havia
embarcado. Toda a tripulação era brasileira, constante no navio e no mesmo rumo
por muitos anos. Mesmo assim a cabine era santuário. Interessante que naquele
navio da série Ita-liners, da marinha mercante, mesmo com pouco mais de dez
homens a bordo, e restava preservada a antiga hierarquia. Talvez seja assim até
hoje, pois tradição. Oficiais de náutica, oficiais de máquinas e o restante, a
marujada, os moços de convés, dentre eles cozinheiro e enfermeiro. Nenhum
glamour, absolutamente nenhum. Operários do mar.
Nada, absolutamente nada em comum com navios de passageiros,
mas eu não trocaria a travessia em cargueiro por um de passageiros. Os de carga
são perfeitos para quem gosta de conviver consigo mesmo, e descobri isso
durante os treze dias e treze noites de travessia, e isso apenas na primeira
viagem. Eu ficaria mais, Um lugar perfeito para quem gosta de escrever ou
compor, por exemplo. Para dizer que não havia incômodos, lembro-me do balanço e
do caturro constantes, da vibração gerada pelos motores e do cheio de diesel.
Em alguns momentos o desejo de por os pés em terra firme, ainda que apenas por
instantes para sentir o mundo parar.
Igualmente incontornável o andar de bêbado. Como em mar
aberto a superfície das águas se move em várias direções, e ao mesmo tempo, o
navio está o tempo todo sujeito a esses movimentos concomitantes nos sentidos
proa-popa, través-través e bochechas-alhetas. Observei nos marinheiros que nem
mesmo com muitos anos de mar perde-se o andar de bêbado.
Impossível esquecer-me dos instantes de sol nascente, sol
poente, o mar espelhando em prata a lua cheia, e o espetáculo celestial das
estrelas nas noites limpas.
Nada em terra se compara àquilo. A sensação de
fragilidade de um navio que no cais parecia uma fortaleza, nos momentos que o
mar se revolta e as imensas ondas varrem o convés, da mesma forma que as
pequenas que se quebram na praia varrem as areias. Impossível esquecer as aves
aquáticas que pegavam carona na embarcação, empoleiradas nos paus-de-carga, com
certeza para descanso antes de voltarem para a pesca, para a costa, ou para algum
pesqueiro, que além de também servir de poleiro costuma ter sobras de peixes
lançadas ao mar. Interessante, mesmo, a presença de pequenos pássaros que
pousavam no convés, e muito cansados, praticamente exaustos. Talvez perdidos,
pois isso acontece mesmo quando o navio não está tão perto de terra. Um de nós
fornecia água, fruta e farelos de pão. Poucos os que sobreviviam.
Ilustraçao do autor |
Bem, eu havia agora saltado do mapa para a carta náutica, e
dela para o oceano. No mapa a gente vê a terra como paisagem e o mar como
fundo. Na carta náutica a situação se inverte. Vemos o mar em detalhes:
contornos, profundidades, acidentes, distâncias, etc., e a terra em volta é
fundo. Eu havia passado com o navio sobre águas cuja profundidade era mais do
que duas vezes a altitude do Chacaltaya. Muitas vezes tinha mais água sob o
casco do navio do que ar sob a fuselagem de grande jato em voo.
Amigos? Apenas dois moços de convés: Chumbinho e Jonas. Chumbinho
era um nordestino de mais de cinquenta anos, baixinho e tinha residência no Rio
de Janeiro. Orgulhava-se de manter um filho na faculdade de medicina. Jonas era
um mulato alto e forte, e tinha duas mulheres. Uma no Rio de Janeiro e outra em
Roterdam. Tinha os nomes delas tatuados nos braços, um em cada braço. Disse-me
que se conheciam. O que sei deles é porque me contaram voluntariamente. Nunca
perguntaram nada sobre a minha vida. Pessoas rústicas, mas educadas.
Era muito bom junto a eles sentar-me e ouvir as histórias dos
compadres, como se tratavam. Eu não tinha e não tenho muito que contar, mas
eles tinham inúmeras histórias, e nos quatro mares. Uma vida metida em
confusões, mas na maior parte das vezes pela ignorância dos reflexos das
próprias ações, como eu com a cena das folhas de coca com os indígenas do
caminho para Chacaltaya. Foram presos em porto árabe pela guarda de revistas de
mulheres nuas em suas cabines. Presos na Cidade do Cabo, em pleno apartheid,
por puxarem um riquixá transportando sobre ele um negro pelas ruas da cidade. Não
contavam essas histórias com vaidade e nem com vergonha. Algumas vezes nem
mesmo entendiam os motivos das confusões. Não sabiam viver e conviver fora do
navio. Seguramente não acertariam uma sequer no atual mundo hipócrita do
politicamente correto, pois desenhado para gente sem espontaneidade. Diplomacia
não era o forte dos compadres. Gente movida pelos impulsos do coração. Gente
que é o que é, e que não tem desejo de parecer o que não é.
Foi essa dupla que garantiu meu desembarque na Europa, pois
eu ainda não tinha cidadania italiana. Minha entrada foi negada na Holanda por
falta de dinheiro, mas foram eles que viabilizaram meu visto de entrada na
Alemanha emprestando todo o dinheiro que tinham para que eu mostrasse às
autoridades alfandegárias como se meu fosse. Ah, se além de bater ferrugem
soubessem ou gostassem de escrever... A vida deles era literatura.
Rogério Centofanti
São Paulo – junho de 2016